Izacyl Guimarães Ferreira
A Tecelagem de Alberto da Costa e
Silva
Alberto da
Costa e Silva é um poeta com valiosa fortuna crítica. Entre os
aspectos mais significativos de sua trajetória se ressalta o fato de
ter obra pouco extensa, só um tanto acima dos cem títulos de poemas,
agrupados em menos de dez livros, pequenos, reunidos há quatro anos
no que pareceria ser sua obra completa, se de fato cumpre a ameaça
que lhe ouvi, de silenciar em poesia.
Se olharmos bem
de perto seus “Poemas Reunidos”, distribuídos entre as décadas –
poemas dos 20, dos 30, dos 40 , dos 50 e dos 60 anos – veremos que a
partir dos 40 há menos versos, e uma tendência a poemas curtos entre
alguns longos e séries. O prosador das memórias, dos ensaios e da
história da África estará a ganhar o espaço do poeta?
Numa entrevista
a mim concedida para o jornal “O Escritor”, em 2003, Alberto declara
textualmente que passou a vida fugindo da poesia, só cedendo ao
verso quando inevitável escrever. Sua economia verbal é um daqueles
aspectos ressaltados por seus leitores críticos. Uma economia que
atribuo a seu extraordinário senso de medida, à sua exigência de
leitor dos outros, que se transforma em excessivo rigor diante de
seu próprios textos.
Desde sempre
foi assim. O que não sei, apesar de uma amizade de 40 anos durante
os quais jamais lhe perguntei o que suponho, é se só escreveu o que
publicou, ou se excluiu poemas a seu ver descartáveis. Da obra
liberada eu não eliminaria mais de uma dúzia para uma eventual
antologia. Porque os “Poemas Reunidos” já são uma antologia.
Veremos se o
magnífico prosador dos livros sobre a África, dos escassos mas
preciosos ensaios (“O pardal na janela” é exemplar coleção do
gênero), das emocionantes memórias (“Espelho do príncipe” é só o
começo) irá calar o poeta, de versos que não se escrevem todo dia e
a toda hora, como bem disse Ivan Junqueira, poeta-crítico de
comparável estatura e seu sucessor na presidência da Academia
Brasileira de Letras.
Versos
essenciais, sobre os grandes temas da poesia de sempre. A infância,
o amor e a amada, a morte, os bens de família, a duração. Alberto
declarou certa vez que sua obra toda seria o rascunho de um só
extenso poema, “que recuperasse uma determinada luz de sua
infância...a voz do pai poeta... e a descoberta do amor”. Que
tomasse “posse da lembrança”. Chamado de poeta da memória, Alberto
celebra a infância e dignamente lamenta suas perdas pessoais sem que
o particular vivido, o confessional, se sobreponha ao que é
universal nessas perdas, ao que é de todo homem nas recordações de
menino. Pensemos no que já nos disse Heidegger, que toda poesia
nasce da devoção da lembrança. Dessa devoção, extrema, deriva sua
poesia.
A infância, sua
lembrança dela ( “eu não quis ser senão menino”// “Vou pedir a meu
pai/que me esqueça menino”), só teria paralelo, no tratamento de
presentificação, nas memórias em verso de Drummond, nas em prosa de
Pedro Nava, e nas dele próprio, Alberto, no citado “Espelho do
príncipe”. Porque não há o usual lamento de um paraíso perdido. O
tom elegíaco que percorre toda sua obra, pela capacidade de
visualização de seu texto, faz-se de agora, desfila vivo e atual.
Assim, a lembrança que é dele se faz nossa, memória coletiva, pela
transcendência que imprime ao confessado.
Isso ocorre
desde um jovem texto de homenagem a Proust, até “Poemas de Avô”, que
se vê nos netos, textos com quatro décadas de intervalo. Aquele “cão
negro” da máquina de costura Singer de sua avó, que é jovem, a uma
janela pintada pelo Vermeer do título do poema e da memória visual
de todos nós, é ilustração precisa dessa concretude que Alberto dá
aos versos, seja quando alude ao conhecido, seja criando o quadro da
lembrança. Este soneto fecha admiravelmente: “e a vida não se exila
na beleza.”
E eis outro
aspecto marcante de sua poesia. Seus poemas começam e terminam com
palavras inesquecíveis. Mais: cheias de emoção e ritmo, permeiam
seus poemas por inteiro. Ao acaso da mão que folheia: “que fazer
deste rastro sem sentido/ que vem ao homem e parte do menino?”
/“cantor da relva mínima e dos bois” / “entre muros de cinza,
solidão e cansaço” / “Vínhamos de ontem como quem da sorte”/ “- Não
creio, e rezo.” /“Tudo é eterno quando nós o vemos.”/“em que a
velhice apurou a beleza perfeita.” / “como a infância no amor e o
amor na morte”.
Não se deduza
daí que Alberto seja um formalista. Longe disso. A beleza intrínseca
do assunto constrói a beleza da forma, que Alberto da Costa e Silva
domina com mestria. Como alguns poucos poetas de hoje no Brasil, ele
sabe da sua responsabilidade de tecer na própria obra a herança da
língua recebida. Lembraria o citado Ivan Junqueira, o mais velho
Gerardo Mello Mourão, os mais moços Bruno Tolentino e Alexei Bueno.
Exemplos, só, entre outros, dessa linhagem de grandes poetas
responsáveis.
Tecer, eis um
verbo que lhe pertence. Sua obra, em que há um livro chama- do “O
tecelão” e outro chamado “Alberto da Costa e Silva carda, fia, doba
e tece”, é toda uma tecelagem. Não há fio solto, nada se esgarça,
porque suas mãos são firmes, este é um poeta consciente, que recolhe
na disciplina da tecelagem sua aflita vivência. Há pranto, há dor,
há sofrimento, mas a poesia que resulta dessa noção do encardido e
da ferrugem das cousas, da contemplação do padecimento de pessoas e
bichos, é uma poesia que seca as lágrimas que chora, graças à
qualidade do texto enxuto e atemporal.
Digo tecelagem
e retorno à visualidade dessa poesia. Se teve algo de diáfana e
subjetiva em sua essência nos dois primeiros livros, transita já
pela realidade contemplada dos dois seguintes, pequenos, e com o
esplêndido “Livro de linhagem” atinge a plena maturidade que vai
marcar o restante da obra. (Tive o privilégio de ler esse livro
ainda datilografado, em Caracas, concordando com sua mulher, Vera,
sobre a escolha do título, entre outras opções que Alberto
estudava.) O tecelão aqui se faz tapeceiro, de mural, na busca das
raízes familiares compondo uma poesia já personalíssima, liberta de
qualquer influência visível. A lírica portuguesa dominada, feita
própria, é que vai tecer-se nos seguintes títulos, dos poemas dos
40, 50 e 60 anos do poeta, então recém entrado nos 30.
“Livro de
linhagem” é também um corajoso corte entre a direta clareza dos
poemas dos 20 anos e a claridade madura dos poemas seguintes. Chega
a ser obscuro aqui e ali, por cifrado o recordar de antepassados,
quase uma narrativa de acontecimentos apenas esboçados, uma evocação
de estranha e incomum beleza. Tal adesão ao passado, seu e dos seus,
trazendo o ido para o corrente, dando-lhe o sopro do presente - já
que somos “deuses do tempo” - é uma constante de sua poesia.
Há nas
proximidades de Brasília uma área de preservação, já bonita no nome
( que usei num verso meu de 1971 e depois num título de livro em
1998): águas emendadas. No meu caso, a referência à continuidade
familiar. Mas se aplicaria à obra toda de Alberto: águas emendadas
são seus textos em que se ligam, se emendam, tecidos, o pai e a
infância , o amor e a amada, os filhos e os netos dos belos “poemas
de avô”. Como são belas e também emendáveis duas das obras primas de
Alberto: “O menino a cavalo” (ele e o pai que os desenha) e “A um
filho que fez dezoito anos”(ele e seu primogênito Antônio
Francisco). Recordemos antes que um verso do primeiro livro, de
1952, já dizia “o rosto de teu pai na face de teu filho”
Os dois poemas
a que me refiro são de “As linhas da mão”, livro escrito entre 1967
e 1977, parte dos “Poemas dos quarenta anos” da obra reunida. Neles,
alguns dos versos mais altos de nossa poesia, comoventes além de
absolutamente originais, emendando tempos (de novo a tecelagem),
tramando fundo e forma. Eis alguns dos momentos desses poemas.
“Jamais me achei depois. Foi minha ausência
o que salta no estribo, monta e parte./
E o potro pisa a marca de seus cascos.
.................................................................
A mão de meu pai sobre o papel desenha,
quase num só traço, o menino a cavalo.
..............................................................
no papel ele unia a mão que desenhava
à mão com que acenava ao menino a cavalo,
neste adeus em que estou, desde então, ao seu lado,
o menino que volta, a chorar, a cavalo.”
.............................................................
.............................................................
“Antônio,
os deuses pintam borboletas,
mas nós sabemos como
nos homens sonham
e sangram.
.............................................
Perdoa-me a tristeza,
como se fosses meu pai,
e não meu filho.
Usciamo
a riveder le stelle.
José Guilherme
Merquior, competente ensaísta e leitor atento de Alberto, fala de
“metafísica domesticada” e em domínio do físico nos versos do amigo,
onde as “lacrimae rerum” têm presença e voz. Assim é, pois sua
poesia não transita pela filosofia, irmã na busca do conhecimento
mas de outra natureza. A poesia de Alberto está mais perto da
pintura que da música ou da filosofia. Seu reino em poesia é o da
poesia mesma. Pois seu pensar e seu sentir são seu fazer. Como nesse
“Fragmento de Heráclito”:
“Todos
os dias são iguais – o grego
e o menino que fui
sempre o souberam.
Ele o pensava; eu o vivia,
amargo.
O sol
cegava, nos telhados.
Mas o menino de ontem, hoje,
cantava. “
Entendo que o
triângulo maior da obra de Alberto da Costa e Silva seja o formado
pelos dois títulos que já destaquei – “Livro de linhagem” e “As
linhas da mão”-, aos quais se junta “Ao lado de Vera”. O título é o
mesmo de um dos mais fortes poemas do livro, culminando todo um
tributo à amada, iniciado aqui com o belo “O amor aos sessenta”.
Se em textos
longos e especiais Alberto celebrou o pai, de constante presença -
no caso “As cousas simples”, “Rito de iniciação” e o antológico “O
menino a cavalo” -, sua mulher Vera, também uma presença constante
em toda a obra, surge de novo no longo poema de que destaco estes
versos realmente memoráveis:
“Usa o
meu coração, se o teu já tens gasto,
feito a pedra de mó que a faca alisa
.............................................................................
Usa o meu coração
para nos esconder, como aos olhos as pálpebras,
do cansaço do tempo, do bolor dos retratos
.............................................................................
pois sabemos o amor ser o que em nós
aspira ao oceano e às estrelas
e faz da morte um cisco sobre a mesa.”
É rara essa
ternura, feita de compreensão profunda do amor e do tempo. E é na
ternura que a “devoção da lembrança” em Alberto
se abriga para dar dignidade e calor à tristeza infinita que o
marca, ao
sentimento de perda a transitar ininterrupta por seus versos. Versos
cuja qualidade de tessitura e cuja verdade de vida lhe asseguram,
digo sem medo de errar, uma longa permanência na memória da língua.
Leia obra de Alberto da Costa e Silva
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