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José Alcides Pinto
 

Ivan e seus mortos inquilinos

Diário do Nordeste, Fortaleza, Ceará, Brasil
12.9.1999
 

Ivan Junqueira lança sua obra poética sob o título de Poemas reunidos (Rio, Record, 1999), compreendendo os livros publicados entre 1956 e 1994.

Ensaísta, crítico literário e tradutor, atividades que exerce simultaneamente. Ivan é um nome dos mais importantes das letras brasileiras. Sua poesia é o reflexo dos conflitos existenciais de nosso tempo, sendo, por outro lado, um poeta de vanguarda, inventivo, no que toca mais de perto à essencialidade do poema.

No que pese, embora, o sentido agônico de sua obra, toda ela voltada para o absurdo existencial e para a morte, essa mesma visão obsessiva encontrada em Álvares de Azevedo e Augusto dos Anjos não o abandona.

Desde Os mortos (1964) seu livro de estréia, questiona ele os valores estéticos de sua escritura, sempre preocupado com a unidade do poema: forma, estrutura, linguagem - elementos que se somam à técnica de montagem de seus versos, alguns experimentais, que por vezes se identificam com o concretismo, deflagrado na década de sessenta, em plena efervescência da construção de seu primeiro livro.

Mas Ivan não se deixaria levar pelo entusiasmo do evento, que dava as costas à Semana Paulista de 22 e se propunha a uma ruptura na poética nacional.

Em verdade, o concretismo que cedo ganhou a pecha de neoconcreto e que teve ampla divulgação no Supl. Literário do “Jornal do Brasil” e revistas nacionais e estrangeiras, surgiu paralelamente com o praxismo de Mário Chamie e o poema processo de Wladimir Dias Pinto, o mais radical dos experimentalistas, não foi tão vazio quanto se possa imaginar, deixou resíduos benéficos na disciplina de sua poemática. Essa foi, sem dúvida, sua maior contribuição às letras. O saldo positivo ficou mesmo para as artes plásticas.

Mas não se pode negar o fascínio que exerceu entre os mais novos, e até alguns veteranos foram arrastados por essa correnteza, como Cassiano Ricardo, Manuel Bandeira, Joaquim Cardozo e poucos outros, Ivan Junqueira passou de raspão por esse redemoinho, mas antes deixou a marca de sua inteligência viva em “Cançoneta Urbana” e outros poemas sem título.

Sua estréia foi assinalada pelos melhores críticos do País como uma verdadeira revelação na poesia. A comprovação do que ora afirmamos está na rica “fortuna crítica” que o autor juntou ao volume.

Os livros de Ivan Junqueira sempre acontecem com a distância dos eclípses, o que significa dizer que a sofreguidão não é a menina dos seus olhos. Vejamos a correspondência tempo-espaço entre o primeiro e o segundo livros, e isso se repete entre os demais.

Felizmente, surge agora esta bela edição que a Record entrega ao público e que sem dúvida vai dá uma visão panorâmica de toda a sua poemática.

Os mortos, sempre assíduos, que aparecem em seus livros são, de um certo modo, seus inquilinos. Ele não os pode evitar. São mortos de todos os tempos, todas as idades, confidentes de todas as horas; mortos alheios e familiares, mortos que de tanto prezá-los são seus amigos íntimos. E por mais estranho que pareça, por uma singularidade que não se explica, seus mortos passam também a ser nossos. Mortos de todas as classes sociais: tépidos, úmidos, itinerantes; mortos que vigiam das esquinas das ruas e espreitam sob o alarme da chuva e o clamor do trovão nossos ossos gelados.
 

Assim Ivan os descreve:
 

Os mortos sentam-se à mesa
mas sem tocar na comida:
ora fartos, já não comem
senão côdeas de infinito. (p. 25).

 

Às vezes nosso poeta lembra Lamartine, Antonio Nobre, Augusto dos Anjos e mesmo Cruz e Souza pela nostalgia que se infiltra em sua alma:

O que há em mim é só tristeza,
uma tristeza úmida, que se infiltra
pelas paredes de meu corpo
e depois fica pingando devagar
como lágrima de olho escondido. (p. 35)

 

E quem sabe essa tristeza que vem da chuva e do “exausto caminhar dos santos martirizados” encontre identidade com o poema “Elegia Íntima”:

Minha mãe chorando no fundo da noite
rachou o silêncio do quarto adormecido. (p.40)

 

“Três Meditações da Corda Lírica” (1968), não apaga ainda os soluços dos mortos, pois estes são vertentes e estuários em toda a sua obra. Trata-se, em verdade, de um poema-livro, de ritmos estranhos e afinados, de uma seqüência em três tempos que não se fratura, pelo contrário, antes bloco inteiriço se amplia e se desdobra guardando uma unidade de sentido classicizante.

... O que se foi, e agora o mar resgata
na concha entreaberta de suas praias,
se é que o foi, não era o que pensavas,
mas só tumulto e escárnio, fria máscara
de escamas e despojos, altos mastros
estilhaçados, pragas em pedaços,
algas e esponjas, álgida mortalha
de velas onde a voz do vento jaz
sob os ossos do sol e o sal das vagas. (p.85)

 

Segue-se a este “Opus descontínuo” (1969-75), um pequeno grande livro, no qual Ivan Junqueira, por um momento, por um momento apenas, parece esquecer seus mortos, ou pelo menos deixá-los sossegados em seu reino de sombras. São poemas de temas diversos, onde não falta “a dura bênção desta hora”. O livro termina com este belíssimo “Haicai”.

Na gaiola jaz
o pássaro
sem espaço. (p.104)

 

Temos agora à nossa frente “A rainha arcaica” (1979), um livro de peso, e até certo ponto bem diferente dos já analisados. Guarda, no entanto, a mesma unidade, o mesmo sentido agônico, que vai se enriquecendo à proporção que os livros se sucedem. Aqui os reinos portugueses e espanhóis aparecem por inteiros, com um toque clássico, camoniano, por vezes, onde a história é contada e recontada em tempo de memória.

Amores, tragédias, conquistas, sofrimentos, são consignados em suas páginas. Toda a fidalguia daqueles reinos: rainhas, princesas, pájens, desfilam por suas páginas - o poder, a fama, a glória, tudo se junta e forma um painel, onde não faltam nem mesmo Afonso IV, seus amores e a bela Inês de Castro:

A rainha que vês, ora defunta,
já foi infanta e ela como tantas,
zelosa de suas franjas, suas tranças,
seus pés agílimos e inquietas ancas.
E tudo teve, como tantas: do âmbar
e do almíscar ao túmido testículo
dos reis que ungiram de saliva e sífilis
nos prados, pátios, adros e patíbulos.
(p. 112)

 

Finalmente chegamos ao último livro “A sagração dos ossos” (1989-94), e que fecha o volume como um diadema de luz. É inquestionavelmente uma obra-prima.

O certo é que “A sagração dos ossos” parece ter alcançado o ponto culminante de sua criatividade poética. Todas as suas experiências se amálgamam aqui. Vejamos então como joga o autor com palavras-símbolos no corpo do poema. A adequação é perfeita em sua essencialidade:

Meu filho sobe a escada
Seu passo é miúdo e rápido;
A voz, quase cantábile,
voz de pássaro, álacre.
As mãos logo de esgalham
e os dedos, duendes frágeis,
bailam sobre o teclado,
Ou então, com seu lápis,
conjuga cores e imagens.
Leva sempre nos braços
uma esfera terráquea
de que emergem, fugazes,
rios, montes e várzeas.
Meu filho é artista ou mágico? (p.239)

 

Como as transcrições se prolongam, não é mais possível mostrar aos leitores poemas como “Meu Pai”, que é um assombro, um verdadeiro abismo de luz, entre tantos outros.

O leitor terá que ler e reler os “Poemas reunidos” de Ivan Junqueira, e depois mergulhar na “fortuna crítica” para que possa ter uma idéia objetiva e real de um dos maiores poetas em todo mundo - um homem que dedicou toda a vida com amor, sonho,loucura, obsessão, perseguindo a beleza como um eremita em busca do Reino.
 



Ivan, 2003
Leia Ivan Junqueira