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José Alcides Pinto
 

Poesia e fúria
 

Fiz o que o autor pediu na abertura do livro: Não leia agora. Aguarde a solidão tomar conta de você. E fiel a essa convocação, de uma assentada e toda uma noite de vigília, me debrucei sobre seus poemas (copa de carvalho centenário, pico e cume de serra cordilheira, metamorfose pré-histórica de astros e atrozes albatrozes, hemisfério de luz e fogo e vento e tempestade de pó e ácido solar). Seus poemas tomaram-me e eis-me aqui cativo e escravo, em transe por noite afora, como já disse.

Inundado e sufocado de tanta luz e som e ritmo e imagens jamais vistas, pude contemplar a beleza, como Rimbaud: “Um dia sentei a Beleza em meus joelhos, injuriei-a. Ó misérias, ó ódio, ó feiticeiros, a vós está confiado o meu tesouro.” (in Uma estação no Inferno). Perdido e preso nesse antro feiticeiro, sob o convívio de fantasmas e duendes, ante o riso das pombas e das ave[zinha]s, pude, no entanto, vislumbrar que a vida é porca e bela, e nesse miasma flutuam os deserdados e os inocentes.

Sua poesia é feita disso: imolação, sandice, anjos e discórdia de si mesmo, demônios e ascetas, bruxas e pretos-velhos, crença-descrença — tudo volteia por essas páginas gloriosas de Como se, o último livro de poesia de Luís Antonio Cajazeira Ramos, como se não tivessem fim nem começo.

Temos às nossas mãos um clássico moderno, na expressão mais legítima do termo. Logo no primeiro poema encontramos esta passagem de sons e eternidade: Enviei o Messias para anunciar a velha boa nova:/ eterna é a morte, inesgotável ceia do Senhor./ Para que sentissem na pele o arrepio da verdade,/ preguei na cruz o corpo vivo e disse: “Morra!” (in Palavras da Salvação, pg. 15).

Luís Antonio Cajazeira Ramos mapeia a cidade da Bahia: bruxo e santo, escada de Jacó e carro de Elias. Vejamos: Protegida por fortes, faróis igrejas e ebós, é santa/ a baía de tolos e santos e quantas ilhas e mais adornos,/ sereia prometida sobre o promontório recôncavo,/ vestida como um V de colo decotado e enfeitado/ de balangandãs e de um presépio de invasões (in Elegia, pg. 17).

Numa fusão e profusão de cores, ladainhas e procissões, a cidade onde o Barão de Preto Velho usa terno de linho e saia rendada cresce seu estro no assombro de suas metáforas, carrossel do tempo: Salvador de ouro, meu berço e sarcófago,/ minha trincheira e horizonte, minha guerra e paz,/ fidelidade única de minha inconstância tanta. Uma densa latitude de poesia e memória flui em toda a obra, a cidade da Bahia e sua história, sob o veludo de pretos-velhos, pais-de-santos, escravos, junto à cal das escrituras.

O livro de Cajazeira é tão grande que não há lugar para coisas pequenas. Há um pouco-muito de tudo no livro, desde o poema social às baladas de um Querido Diário. Habilidade e talento não faltam ao autor. Ele faz da poesia o que quer: Poesia! E o que mais se cobra da poética nacional: linguagem nova, forma, estrutura, técnica de composição e montagem.

Elementos integrantes da palavra-signo de espaço gráfico-visual são encontrados também no imenso poeta da contemporaneidade, Soares Feitosa, com quem Cajazeira guarda, por vezes, certa identidade em seus textos: imagens inusitadas e metáforas surpreendentes. Esses dois poetas se encontram e se reconhecem na soberania da poesia de cada qual.

A musicalidade dos poemas de Como se, o ritmo, a cor, a transcendência e as nuanças são partes integrantes de seus versos: Trago o segredo das conchas guardado no peito,/ numa volta de contas de tantos desejos (in Conchas, pg. 29).
Lírico por vezes, telúrico e até bucólico por outras, a vanguarda criativa está presente em sua poesia, que por vezes se mistura com a saga. Cajazeira é marcadamente um poeta da solidão, portanto intimista como Augusto dos Anjos, o poeta da morte, sem excluir o fascínio que ambos têm em seus poemas pelo encanto da vida.

Poesia insólita, de vôos metafísicos e integração espiritual, como em seu conterrâneo Gregório de Matos Guerra, entre o inferno e o paraíso paira, dança, volteia e voa sua musa.

Cajazeira inova sua poética por dentro da palavra, numa verdadeira metalinguagem, sem a preocupação estéril dos malabarismos verbais de grafismo ininteligível e oco. Claro que a beleza gráfica é importante no experimentalismo, mas quando esta se soma a conteúdo de invenção e grandeza. E diga-se, a bem da verdade, essas virtudes estão inteiras no poeta de Como se. E é nesse ponto que o pensamento agudo de André Seffrin penetra e encontra ressonância e afinidades com Augusto dos Anjos e até com Castro Alves — confluência, diríamos melhor.

Parece que a poesia de Luís Antonio Cajazeira Ramos em Como se, título que aparentemente nada diz ao leitor e menos ao crítico, afaste-se do texto ou deste se aproxime por vias jamais conhecidas. Em verdade, nada disso importa. Não está em julgamento aqui a verossimilhança de seus poemas, como se isso e aquilo fizesse diferença. O que vale mesmo é a sua maneira de expor seus sentimentos e idéias ao mundo, dizer de sua percepção do Belo ao seu modo e sem rodeios.

Esse caminho luminoso que elegeu toma conta do livro e livre convida o intérprete às alegrias e aos sofrimentos da vida. Sua visão sem barreiras e sem credo edifica a palavra e o símbolo que vão dar a dimensão de sua criatividade, por vezes num reino de sombras e sonhos, ante a cloaca e o lixo das almas que se perderam nos pântanos da vida. Mas tudo é válido nesse poeta que escreve com o barro de ouro da aurora e o fogo dos olhos supliciados, cuja dor vai de encontro à solidão do homem.

Poeta brasileiro, dos pés à cabeça, da terra que o viu crescer e em cujo ventre o alimentou e o reteve por nove, noventa ou novecentos meses e viu parir — homem, fruto maduro, já com a sabedoria em todo o conhecimento do mundo.

Assim vejo Luís Antonio Cajazeira Ramos, ele só, eclético, dono de uma imaginação invertebrada e superior, que se embalança como um galho, voa e trina — pássaro canoro —, que se levanta bárbaro e impetuoso, às vezes sereno, som perdido entre os acordes do próprio peito. Poeta em cujo amor a dor recrudesce a faz renascer a Fênix histórica.

Poeta de um canto dividido. A estranha forma de sua poesia sustenta, por vezes, o escatológico e amplia as divisas e os continentes de seu país. Sua cidade, Bahia, é seu modo de estar no mundo, o equilíbrio de sua palavra no tempo, o reino de sua arte nova, consubstanciada na alegria e na alegoria da Beleza, que floresce tanto no pântano como nas estrelas: A ave-maria enterra a tarde morta./ No incenso de seu cântico te-deum,/ o fel que sobe ao céu de minha boca (in Ocaso, pg. 66).

Nesse poema, Cajazeira celebra a tarde, com o derramamento melancólico e agônico dos grandes simbolistas. Assim também seus sonetos, de uma singularidade espantosa, vão-se sucedendo até fechar o livro, livro este que ficará ressoando na história e na memória dos seus leitores como prêmio à Beleza e à eternidade.
 



Luís Antonio Cajazeira Ramos
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