João Alves das
Neves
Escritos sobre Fernando Pessoa:
Outras facetas da obra de Pessoa - nesta página
O misticismo em Fernando Pessoa
Pessoa & Lorca
in jornal A TARDE,
5/12/98
Outras diversas facetas da obra do
múltiplo Fernando Pessoa
Três livros recentemente lançados sobre o poeta da trazem
novas e
importantes interpretações a respeito dos escritos e da vida
do escritor
português mais famoso deste século
Por João Alves das Neves
Três livros foram recentemente lançados no Brasil, sugerindo
cada um dos
autores diferentes ângulos da obra do poeta da Mensagem.
Um dos estudos, Fernando Pessoa: o Espelho e a Esfinge (Cultrix, 244 pags.,
R$ 22,00), é da autoria de Massaud Moisés e aparece em 2ª
edição, “revista e
aumentada”, embora 11 dos 16 textos hajam saído (sem alterações
sensíveis)
no primeiro lançamento. Aliás, cinco dos trabalhos abordam
diretamente a
heteronímia, tema que é aflorado também em outros
capítulos de uma análise
que não pode ser ignorada.
Relativamente à 1ª edição, as novidades referem-se
a “O banqueiro anarquista”,
“Livro do Desassossego”, “Alberto Caeiro” (II), “O Marinheiro” e “Fernando
Pessoa e a cantiga trovadoresca”. Os estudos reunidos nesta 2ª edição
já
tinham sido divulgados inicialmente sob a forma de conferências,
comunicações e artigos do autor.
O texto mais antigo é datado de 1956 e o mais recente é de
1996 – isto é, há
uma distância de 40 anos entre os vários trabalhos, mas a
atualidade
mantêm-se, ainda que o “heterônimo” C. Pacheco seja mantido
como tal – e
não deve sê-lo. Na Correspondência Inédita, a
investigadora Manuela Parreira
da Silva demonstrou que esse Pacheco foi de carne e osso, assinava J.
Coelho Pacheco, era comerciante e poeta bissexto, mas interessado pelas
artes e letras, pois foi redator da revista Renascença, na qual
Pessoa
colaborou. No prefácio, salienta Teresa Rita Lopes que a carta (de
20-2-1935) é
verdadeira – “destinatário explícito e destinatário
implícito tendem a coincidir”
–, acrescentando que a missiva “pode ajudar a refazer ou recompor a história”
da geração de Orpheu. Manuela Parreira da Silva esclarece
que ela foi redigida
em papel timbrado da firma J. Coelho Pacheco. o C. Pacheco existiu, fez
o
poema “Para além de outro oceano” e provavelmente mais alguns, devendo
ser
excluído, portanto, de heteronímia pessoana.
É com insistência que Massaud Moisés analisa os heterônimos,
uma das
facetas mais perturbadoras da obra literária de Fernando Pessoa.
E ao admitir
que “Pessoa criou os heterônimos para ser diferente, autorizadamente,
contraditório”, Massaud destaca também que com essa criação
o poeta
“deixava de ser contraditório, uma vez que não é contradição
o fato de cada
heterônimo pensar por conta própria, diferentemente dos outros,
como se
fossem personalidades vivas e autônomas.” A interpretação
é hábil, mas nem
todos os pessoanos a aceitarão.
Do que não se duvida é de que a obra tão múltipla
do poeta português atrai um
número cada vez maior de leitores e analistas. O problema é
que alguns falam
de complexidade e não a estudam, ao contrário de Massaud
Moisés, que há
longos anos se interessa pelo tema. Até mesmo na aproximação
do poeta
contemporâneo e da cantiga trovadoresca o ensaísta encontra
paralelos, ao
referir-se aos “fingimentos” dos poetas das cantigas de amor, de amigo
e de
mal-dizer, quando lembra a comentadíssima “Autopornografia”: a atração
e a
repulsão, a dispersão e o desdobramento estariam no caminho
heteronímico
que Fernando Pessoa percorreu “até o mais agudo delírio de
olhos abertos e o
mais sibilino histrionismo intelectual, máscara polifórmica
sob a qual se
escondia e, a um só tempo, se dava a conhecer”.
Todas as deduções são possíveis desde que partam
mais do texto pessoano
do que das hipóteses formuladas sobre o que o poeta pretendia, mas
não é
explícito. Curiosamente, os labirintos mais complexos são
freqüentemente
levados ao extremo, ainda que contrariem o que Fernando Pessoa confessou
nas suas diversas autobiografias. As demoradas leituras que fez de centenas
de autores são citadas em algumas autobiografias e assim se explica
que as
influências literárias hajam sido admitidas por ele. No entanto,
até nas cartas a
alguns amigos e confidentes Pessoa recomendava o silêncio em torno
do
ocultismo, por exemplo, como se depreende da carta a Casais Monteiro sobre
a gênese da heteronímia.
Não pode haver opiniões definitivas acerca da obra pessoana
enquanto ela não
estiver toda publicada e é preciso cuidado com a visão de
certas trilhas, como
faz Massaud Moisés: em seu estudo, ele evita o dogmatismo dos que
se
julgam donos exclusivos de uma obra que tem de ser pública. E quanto
mais
análises, melhor.
Veja-se caso do Livro do Desassossego, um dos mais significativos e mais
apressadamente lidos: dá-se às vezes por certo o que é
nebuloso, quando se
lê superficialmente. Para Massaud Moisés, a interrogação
está entre o
“livro-caixa” e o “livro-sensação”, não mais que simples
guarda-livros que
guardava, afinal, “sensações”. De modo muito especial, pior
que ele não
chegava a ser mais do que “semi”-heterônimo, conforme o definiu o
seu
criador. Isto é, não tinha personalidade autônoma,
a exemplo do que
aconteceu com Caeiro, Reis, Campos e mesmo um Raphael Baldaya ou o
recém-divulgado Alexander Search, o menos estudado até agora,
mas nem por
isso menos importante, porque foi o “companheiro” adolescente de Pessoa.
Indiscutivelmente, Bernardo Soares, se tivesse completado o Livro do
Desassossego, visto só haver deixado fragmentos, poderia ser o Mestre
dos
prosadores, do mesmo modo que Alberto Caeiro foi o Mestre dos Poetas. É
evidente que estamos no terreno das hipóteses, nem sempre boas
conselheiras de uma análise, por ter de ser incompleta. Não
obstante, pode
Bernardo Soares servir de modelo a ficcionistas, poetas em prosa e outros,
como observa Massaud Moisés.
Fernando Pessoa e Omar Khayyam: o Ruba’iyat na Poesia Portuguesa do
século XX, de Márcia Manir Miguel Feitosa (Ed. Giordano,
214 págs., R$
15,00), é um livro sobre as aproximações do poeta
persa com o português.
Conforme se deduz, o ponto de atração é o criador
dos heterônimos, pois que
são mais numerosas as páginas do capítulo pessoano
do que os outros dois
consagrados a Khayyam, tema que tem sido objeto de investigação
de outros
comentadores, entre os quais sobressaem Maria Aliete Galhoz e Alexandrino
Severino, este o primeiro a se referir ao esquecido poema “Rubayat”, publicado
na revista lisboeta Contemporânea em 1922, e que não figura
nas Obras
Completas de Pessoa.
D. Maria Aliete é antiga conhecida dos leitores, por ter sido a
qualificada
coordenadora do primeiro amplo volume da Obra Poética de Fernando
Pessoa,
editada em 1960 por José Aguilar. É dela, igualmente, o excelente
estudo
“Fernando Pessoa, Encontro de Poesia”, absurdamente expurgado das últimas
edições da Aguilar. É autora, ainda, de uma equilibrada
antologia poética
pessoana.
Dando primazia ao destaque de Alexandrino Severino, que ressuscitou o
poema “Rubayat”, Maria Aliete localizou outros “rubaiyat” em volumes
pessoanos editados em 1955, 1996, 1965 e 1973, apresentando-os no recente
volume das Canções de Beber 44 composições,
“entre éditos e inéditos”;
salienta que o escritor português se interessou particularmente pela
personalidade lendária do poeta/filósofo persa. E aponta
as tendências no
inacabado Livro do Desassossego, ao mesmo tempo que vê em Fernando
Pessoa “o amargo-doce amaríssimo do rubai segundo Omar Khayyam como
moldagem superior do verismo confidencial (existência), e sapencial
(meditação/vivência) que carreia a aparente abstração
atemporal da quadra
popular, donde o rubai de Omar Khayyam advém”.
Márcia Feitosa julga haver um “confronto” entre a poesia de Omar
Khayyam e
Fernando Pessoa, nomeadamente nos poemas ortônimos que seguiriam
os
moldes do ruba’i e nos neoclássicos de Ricardo Reis, incluindo os
“pontos de
aproximação e da diferenciação com os ruba’iyat
de Khayyam”. E, ao fazer o
paralelo da poesia ortônima e heterônima de Pessoa com Ruba’iyat
do persa,
engloba também o Livro do Desassossego, de Bernardo Soares, pretextando
que há fragmentos neste trabalho sobre a filosofia e a temática
de Khayyam.
Evidentemente, estes confrontos nas obras dos dois poetas não devem
traduzir-se por influência, pois tende a comprovar apenas que Fernando
Pessoa conheceu Ruba’iyat pela tradução inglesa de Edward
Fitzgerald, o que
é tanto possível como desimportante. Mas daqui viria o “vedo
orientalista” do
poeta português, embora falte uma averiguação completa
das datas, dificílima
porque alguns dos textos não as têm.
No fundo, o estudo vive principalmente do modismo pessoano – toda a relação
com Pessoa é explorada e especulada –, já que o poeta persa
é menos
conhecido: nascido em 1040, chamou-se Abdull/l-Fath Omar ibm Ibrahim
al-Khayyam e foi matemático e astrônomo, professor e adivinho,
“ganhando
notoriedade com as predições sobre o futuro”, antes de se
dedicar à poesia,
“cantando o vinho”. Nem tudo o que lhe atribuem pode ser confirmado: onde
começa e termina a influência de Khayyam sobre Pessoa?
Há que levar em conta que o vinho é também uma das
mais velhas tradições
lusitanas: no Cancioneiro do Vinho Português, de Azinhal Abelho,
afirma-se
que a cultura da videira em Portugal terá começado “aí
por 282” (isto é, bem
antes de Omar Khayyam). E após o domínio romano chegaram
os árabes (por
700 anos) , sem que a tradição haja sido interrompida. O
vinho está presente
na obra dos primeiros clássicos portugueses – e é natural
que neste número
se inclua o contemporâneo Fernando Pessoa.
A influência acaso recebida, literariamente, de Khayyam talvez haja
contribuído
para alicerçar na obra pessoana um antiqüíssimo hábito
português,
atribuindo-se ao vinho uma importância alimentar que não está
isenta de algum
prazer. Tudo isto não desmerece a importância literária
de Omar Khayyam e
muito menos a esforçada investigação de Márcia
Feitosa.
Já o livro Fernando Pessoa – e a Voz de Deus, de Adelto Gonçalves
(Universidade Santa Cecília, 99 págs., preço não
definido), reúne cinco estudos
que tratam, sucessivamente, de “Prosa poética e poema em prosa no
Livro do
Desassossego”, “A Lisboa de Pessoa resgatada”, “Fernando Pessoa, a arca
sem fundo”, “Um passeio pela aldeia de Pessoa” e “O ideal político
de
Fernando Pessoa.”
A diversidade dos temas revela um amplo conhecimento da obra pessoana e
o
título do livro é tão somente o de um poema do criador
dos heterônimos: “(...)
Mero eco de mim, me inundo/ De ondas de negro lume/ Em que para Deus me
afundo.” Mais do que simbólico: os textos do escritor português
podem ser
aparentemente contraditórios se não forem tomados em função
da heteronímia,
mesmo que sejam ortônimos. Mas podem observar-se as exceções
das
autobiografias, cujos desdobramentos nos permitem admitir que, apesar do
abandono das práticas católicas, Fernando Pessoa nunca deixou
de acreditar
em Deus e continuou a declinar-se gnóstico e cristão. Nem
é preciso sublinhar
o nome catolicíssimo que os pais lhe deram: Fernando Antônio,
homenagem a
Santo Antônio de Lisboa, já que o futuro poeta nasceu aos
13 de junho,
recordando-se que o Santo foi batizado como “Fernando” e assumiu o de
“Antônio” quando iniciou a carreira eclesiástica.
Adelto Gonçalves menciona a declaração de Bernardo
Soares e ressalta que
“Pessoa definiu a sua preferência pela prosa em detrimento do verso”,
hipótese
formulada nos textos que deixou. O professor Massaud Moisés admite
que o
Bernardo Soares poderia ter sido um grande prosador, mas não teve
tempo de
se completar – como aconteceu com o Poeta, dado que, neste capítulo,
são
mais numerosos e acabados, talvez, os poemas que a ficção.
Com efeito, o
Livro do Desassossego não foi concluído e o mesmo se verifica
em relação a
vários contos – o que nem sempre sucede com os textos de circunstância,
desde os inúmeros artigos que redigiu sobre artes e letras, filosofia,
política,
etc.
Na realidade, o que diz o semi-heterônimo é que considerava
o verso “como
uma coisa intermédia, uma passagem da música para a prosa”.
Mas Bernardo
Soares (e os heterônimos) nem sempre coincide com o escritor ortônimo,
mesmo que seja, no fundo, o mais próximo de Pessoa. E se até
o próprio
criador se considera no direito de fingir ou mudar (“não evoluo,
viajo” – adverte),
há dois poemas capitais perfeitamente elucidativos: “O poeta é
um fingidor” a
“Isto”. Além de outros, é claro. E qual foi o poeta que não
fingiu?
Nada há de surpreendente na afirmação de Adelto Gonçalves
acerca do criador
que “ao mesmo tempo se oculta e revela”. O labor quotidiano de Pessoa
desenvolveu-se num ambiente bastante parecido com o do semi-heterônimo
–
o ajudante de guarda-livros da ficção e o tradutor-correspondente
de verdade
tiveram de aturar patrões nem sempre corretos, a fim de poderem
ganhar a
vida. Todavia, o Livro do Desassossego ultrapassa as fronteiras do “romance”:
é, acima de tudo, um canto de amor à Lisboa natal, malgrado
as angústias ao
lado dos sonhos, falhas e êxitos, vícios e virtudes dos que
lá vivem.
Paradoxalmente (ou propositadamente?), os poemas que constam do livro
estão abaixo do excelente nível literário da prosa...
Nem por isso deixa de ser
uma obra que se aplica com exatidão ao conceito de Casais Monteiro,
quando
definiu Fernando Pessoa como “insincero e verídico”.
Convidando-nos para um passeio em “A Lisboa de Pessoa resgatada”, Adelto
faz-nos revisitar a cidade onde o Poeta nasceu, viveu e morreu. Redescobrimos
os “cais de pedra” lisboetas, diferentes dos cais do mundo para aqueles
que
amam Lisboa; as suas sete colinas e os seus miradouros; as ruas íngremes,
os becos e as praças, os jardins e os Jerônimos renascentistas:;as
igrejas e
capelas, os cafés, as estátuas e o castelo; a saudade...
O “Martinho da Arcada” e “A Brasileira do Chiado” – que estão entre
os cafés
preferidos pelo Poeta – permanecem como dantes, porém mais deteriorados
pelo tempo e pelo fumo, mas ainda como testemunho de quem por lá
passou.
Fernando Pessoa era freqüentador diário de café, onde
escrevia ou dialogava
com os amigos e companheiros de aventuras estéticas, quando não
traduzia
cartas (ou poetava) nos escritórios comerciais ou nas horas em que
não lia e
treslia as fontes da Biblioteca Nacional. Ocasionalmente, bebericava o
seu
vinho numa das casas do “Abel” (Pereira da Fonseca), uma rede de pequenas
mercearias.
A propósito da “arca sem fundo”, Adelto Gonçalves menciona
os textos
políticos com “pontos de vista às vezes contraditórios”.
Mas o que é
contraditório – ou não – na vida de cada um de nós?
Pois bem, a realidade
portuguesa nada tinha de harmonioso nos anos 10 e 20 deste século.
Após os
últimos anos da Monarquia, os primeiros anos da República
foram igualmente
tumultuados: bombas, tiros e o terror, golpes de estado e crises políticas
sucessivas. Os militares intervieram, em 1926, e contaram com o apoio de
vários democratas, que somente se afastaram quando concluíram
que a
ditadura era para durar. Ora, as posições de Fernando Pessoa,
nesse período,
refletiram a péssima situação econômico-social
do seu país. Por isso, os
manifestos O Preconceito da Ordem (1915), O Interregno – Defesa e
Justificação da Ditadura Militar (1928), de claros intuitos
políticos (assim
como, em outra variante, o Ultimatum, de 1917). Ideologicamente insuspeito,
o
biógrafo João Gaspar Simões escreverá: “Todas
estas atitudes políticas de
Fernando Pessoa se encontram justificadas, no entanto, por uma ordem de
razões oposta àquela em que se fundamenta a filosofia política
que serve de
base ao fascismo.” Se assim é, teremos de inserir também
o poema à
“Memória do Presidente-Rei Sidonio Pais”, mais sebastianista do
que outra
coisa, como sebastianista foi, também a seu modo, o padre Antônio
Vieira, um
dos mais altos espíritos do progressismo do século 17.
Princípios que estão na linha nada reacionária dos
comentários pessoanos
sobre economia, estatização, monopólio, liberdade
que fizemos publicar em
1992. E, por fim, a menção de Adelto Gonçalves ao
“homem sem amores”,
contrária o que se depreende das Cartas de Amor de Fernando Pessoa
a
Ofélia Queiroz, das Cartas de Ofélia a Fernando Pessoa e
até de poemas
inequívocos sobre o amor.
João Alves das Neves é professor e escritor, publicou entre
outros
livros, Poesias Ocultistas de Fernando Pessoa e Pe. Antônio Vieira,
o
Profeta do Novo Mundo. É presidente do Centro de Estudos Fernando
Pessoa
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