Júlio Castañon Guimarães
Um poeta erudito - Sebastião Uchoa
Leite
traduz François Villon*
Em uma conferência de
1937 sobre "Villon e Verlaine", Valéry adverte mais de uma vez sobre
os problemas das aproximações entre vida e obra. A certa altura diz:
"Acrescento que o sistema Villon e Verlaine, essa relação aparente e
sedutora de dois seres excepcionais com que vou entretê-los, embora
capaz de sustentar-se e fortificar-se bastante por certos traços
biográficos, enfraquece-se ou desloca-se em sentido contrário se
quisermos aproximar as obras como se faz com os homens". Apesar da
ressalva, as aproximações entre vida e obra dos dois escritores
estão presentes na conferência, o que ressalta de observações como
"A vida de François Villon é, como sua obra, bastante tenebrosa em
todos os sentidos dessa palavra. Existe muita obscuridade em ambas e
no próprio personagem". Em outro trecho, Valéry diz que o que ele
faz nessa conferência é exatamente o que ele em geral critica muito:
"Acho - este é um de meus paradoxos - que o conhecimento da
biografia dos poetas é um conhecimento inútil, se não prejudicial,
ao uso que se faz de suas obras e que consiste no prazer ou nos
ensinamentos e problemas da arte que delas retiramos."
Na verdade, as
aproximações mencionadas acima se impõem, não só a Valéry, mas a
todo leitor, no caso, de Villon. E o caso Villon é bastante
especial. Sua biografia efetiva ou as lendas que passaram a compô-la
exercem grande fascínio. No entanto, o Villon que hoje se tem
disponível para leitura é evidentemente resultado de um enorme
trabalho de erudição, de pesquisa histórica, de filologia, de
crítica textual. Seria uma simplificação, portanto, supor que a
leitura de Villon dispensaria o contexto histórico, até mesmo porque
boa parte de sua produção está evidentemente relacionada com
incidentes de sua biografia. Assim, a traição que Valéry faz a seus
principios é em certa medida inevitável. Lembremos ainda que esse
contexto histórico requisitado será também o das formas poéticas.
Michel Butor, no estudo "Prosódia de Villon", aborda de modo
minucioso e exclusivo as relações entre os sistemas rímico e
estrófico de Villon, mostrando que "Villon é certamente o mais
'gótico' de todos os poetas de seu tempo; ele acentua mais que
qualquer outro a solidez de sua arquitetura estrófica". Esse aspecto
"construtivo" da obra permite a Michel Butor observar que "de todas
essas análises, ressalta uma imagem do poeta bem diferente daquela
que corre nossos cabarés. Trata-se de uma obra erudita ao extremo, o
que não a impede, tanto quanto a de Rabelais, de ser paródica e
burlesca, carnavalesca, e não nos permite de modo algum recusar seu
valor autobiográfico."
François Villon nasceu
em Paris em 1431. Depois de estudar na Universidade de Paris, esteve
envolvido em vários casos de roubo e num episódio em que feriu
mortalmente um padre. Preso várias vezes, chegou a ser condenado à
morte, mas teve a pena comutada em banimento da cidade de Paris. A
partir de 1463 não se tem mais notícias dele, não se sabendo o ano
de sua morte. A primeira edição de sua obra saiu em 1489. E dessa
obra, vários poemas, seja dos mais líricos seja dos mais
sarcásticos, estão entre os mais conhecidos da literatura ocidental.
Além de numerosos trechos do "Testamento", podem ser mencionadas
algumas baladas, como a "Balada das Damas do Tempo Ido" ("Dizei-me
onde, em qual país, / Anda Flora, a bela romana"), a "Balada para
Rezar a Nossa Senhora" ("Senhora dos céus, terrena regente, /
Imperatriz dos charcos infernais"), a "Balada da Gorda Margot" ("Se
amo e sirvo a dama de bom grado, / Pensareis que sou vil e
cabeçudo?"), a "Balada do Concurso de Blois" ("Morro de sede quase
ao pé da fonte, / Quente qual fogo, mas batendo os dentes") ou a
"Balada dos Enforcados" ("Irmãos humanos que ainda viveis, / Não
sejais corações endurecidos"). Todavia, não tão conhecida quanto as
outras, a balada que fala das línguas invejosas talvez seja das mais
exemplares da poética de Villon.
As questões postas pela
lírica de Villon - a relação da obra com dados incertos da
biografia, a mescla entre forma erudita, os temas da tradição, os
episódios infames, a linguagem rebaixada, o personagem de contornos
imprecisos que surge a partir dos poemas - são não somente o que a
vivificam e a tornam duradoura, mas também o que a tornam
desafiadora e intrigante tanto para seu próprio tempo quanto para o
nosso. No caso de sua tradução, todos esses elementos são realçados.
E o foram no caso do excepcional trabalho de tradução realizado por
Sebastião Uchoa Leite e agora reeditado. Há uma evidente afinidade
(via ironia, sarcasmo, rispidez, aridez, e o que mais) entre a obra
poética do tradutor e a de Villon. Todavia, esse complexo trabalho
de tradução naturalmente não se produziria apenas graças a essa
afinidade. A esclarecedora introdução e as minuciosas notas do
tradutor revelam a carga de conhecimento especializado que empresa
de tal porte exige. A massa de informações operacionalizadas e a
perícia de tradução resultaram num trabalho que se insere no
percurso das raras obras traduzidas que podem adquirir vitalidade na
literatura com que passam a conviver. A toda essa situação, porém,
preside uma noção de tradução. Ela pode ser depreendida não somente
a partir do resultado mas também, em certa medida, da introdução ao
trabalho. Todavia, o tradutor, posteriormente à primeira edição de
seu trabalho, publicou um estudo intitulado "O Paradoxo da tradução
poética. Notas sobre o pequeno e o grande jogo na poesia de François
Villon" (incluído em seu livro Jogos e enganos). Enquanto na
introdução à tradução, cuida-se de apresentar a obra de Villon,
nesse estudo posterior o tradutor se detém especificamente sobre
questões da tradução. Se não se estende preponderantemente sobre
questões teóricas relativas a uma noção de tradução, discute o texto
de Villon tendo em vista o trabalho de tradução a ser executado para
dar conta desse texto. Sebastião Uchoa Leite desenvolve uma
microanálise de várias passagens do texto de Villon, descendo a
numerosas minúcias que exemplificam as dificuldades oferecidas, o
trabalho desenvolvido e as soluções propostas. Naturalmente do
conjunto de dados apresentados e de seu comentário depreende-se, se
não uma teoria, uma posição crítica consistente em relação à
tradução.
No que toca à concepção
de tradução, dado importante é a informação, nesta reedição, de que
o tradutor introduziu modificações neste novo texto da tradução.
Essas modificações não são de grande monta, no sentido de que não
alteram grandes extensões de textos, nem trazem mudanças
substanciais decorrentes de alteração da concepção de tradução.
Trata-se, porém, de modificações em consonância justamente com a
noção de tradução exposta pelo estudo e que se depreendem do
trabalho realizado. As modificações, que em alguns casos podem se
resumir apenas a acréscimo ou eliminação de uma vírgula, são, no
entanto, em número considerável. Ocorrem na maioria dos poemas.
Chegam a se constituir em substituição de palavras, em inversão na
ordem de frases. Naturalmente o objetivo das modificações foi o de
melhorar o texto traduzido, o que se efetiva com a busca de uma
palavra que capte melhor o sentido da palavra original, com a
eliminação de artigos que tornem o verso metricamente mais cerrado,
e assim por diante. Na primeira estrofe do Legado, o verso "Que
ouvir conselhos é prudente" passa a "Que pensar bem é mais
prudente"; na segunda estrofe, o verso "Veio-me a vontade de romper"
passa a "Veio-me o anseio de romper"; na terceira estrofe, o verso
"Decidi. E a coisa foi feita" passa a "Decidi. E a ação foi feita".
Na "Balada da Boa Doutrina", o verso "Vestidos, pregas femininas"
passa a "E muitas outras vestes finas"; na estrofe CLIX do
Testamento, os versos "Que tisna os mortos (é concorde"; / Evitai o
perigo que morde", passam a "Mancha os mortos, há quem discorde? /
Evitai esse mal que morde".
O próprio texto de
Villon, como todo texto, passou originalmente por tais modificações,
que em sua produção serão certamente suposições, mas que no trabalho
de edição de sua obra ao longo dos séculos surgem como decorrência
do estudo dessa obra. As oscilações entre diferentes lições do texto
têm equivalente (e continuidade) nas traduções que se sucedem,
sobretudo se essas traduções são norteadas por princípios que
encaram a tradução não apenas como uma transposição possível de
elementos de determinado texto, mas como leitura criativa. Em seu
estudo "O paradoxo da tradução poética", Sebastião Uchoa Leite,
depois de afirmar a tradução como crítica e, portanto, como
interpretação, sendo então a tradução uma forma de leitura do texto,
"a leitura mais atenta a suas peculiaridades menos transparentes",
afirma que "No caso da tradução enquanto interpretação, cada
tradução é uma variação de um mesmo objeto". Essa variação tem, é
claro, afinidades com as variantes que um texto apresenta ao longo
de sua vida (seja durante seu processo de produção, seja durante sua
vida pública, via cópias ou edições). Assim, na vida do texto, a
tradução tem participação como criação de texto, no sentido em que
Henri Meschonnic, em sua poética da tradução, fala da
tradução-texto, ou seja, que traduzir um poema é um escrever um
poema, numa relação intertextual. A obra de Villon pode ser encarada
como um processo - que Butor aponta como a subversão de aplicar uma
forma erudita à linguagem popular (e não como uma deformação popular
de uma linguagem erudita) - de exploração das possibilidades
líricas, exploração que atravessa os séculos, moderna,
problematizadora e renovadoramente (inclusive por meio das
traduções, como a de Sebastião Uchoa Leite, que em sua árdua tarefa
alcançam seu objetivo - o de se inserir nesse processo).
* Publicado, com pequenas
alterações, no Jornal de Resenhas, Folha de S. Paulo, 11 de
novembro de 2000, como resenha do livro Poesia, de François Villon.
Organização e tradução de Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Edusp,
2000.
Leia Sebastião Uchoa
Leite
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