João Carlos Taveira
A arquitetura verbal de Nilto Maciel
27.06.99
Nilto
Maciel não é só um escritor. Além de um bom escritor e de um
imprescindível articulador literário, é o artista da palavra que
sabe compreender e assimilar os avanços estilísticos de seu tempo.
E, como tal, procura, sem nenhuma demonstração de cansaço, o
aperfeiçoamento do próprio estilo, para melhor conduzir a narrativa
na construção de seus personagens. Nesse sentido, sua escritura o
aproxima não de um Graciliano Ramos, também nordestino, mas do
Machado de Assis maduro e inconfundível de Quincas Borba e Memorial
de Aires.
O romance A Rosa
Gótica, ganhador do Prêmio Cruz e Sousa de Literatura, em 1997, e
publicado recentemente, é um verdadeiro testemunho da maturidade da
pena de Nilto Maciel. Ali se encontram, com facilidade, fundamentos
inarredáveis para a confirmação dessa tese. Com aquele livro, o
criador de Os Varões de Palma consegue a perfeita sincronia entre
memória e ficção, entre verdade histórica e verdade ontológica, numa
clara exibição de seu domínio dos arquétipos da linguagem, dos
liames da narrativa.
Sua oficina romanesca
comporta o absurdo, o fantástico, o linear, o surreal e, não raras
vezes, o satírico, o burlesco, o humorístico. Seus temas, por
diversos, exploram desde o corriqueiro e trivial triângulo amoroso,
passando por perquirições do gênero policial, até o mais intrincado
universo psicológico. Carpintaria digna dos melhores mestres da arte
ficcional.
Após a publicação de
mais de uma dezena de livros (romances, contos, crônicas, poemas,
infanto-juvenis), o autor de Babel vem se firmando como um dos mais
promissores representantes de uma geração de escritores que hoje
vivem fora do eixo Rio/São Paulo. O que comprova mais uma vez que a
Literatura, como a Arte de um modo geral, não depende de geografia,
de localização espacial, muito menos de escolas ou de círculos
fechados, para poder manifestar-se e, quando genuína, consolidar-se.
Detentor de vários e importantes prêmios literários, Nilto Maciel
permanece fiel ao seu artesanato meticuloso. A cada livro publicado,
verificam-se novas descobertas e uma outra luz se acendendo às
possibilidades do leitor. E essa versatilidade do ato de contar
histórias vai criando, ao mesmo tempo, uma atmosfera cada vez mais
propícia àquele compromisso com a verdade e a beleza assumido desde
os primeiros livros. E que faz do autor de Baturité um artista
completo.
II
Vasto Abismo é a sua estréia no gênero novela. Com este livro, Nilto
Maciel inaugura uma nova e ampla possibilidade para suas
inquietações criadoras: outro canal para sintonia e transmissão de
suas desconcertantes mensagens. E se inscreve, sem hipérbole, no
fechado círculo da genuína arquitetura verbal iniciada por
Cervantes. Livro este, deve-se dizê-lo, que vem envolto pela aura e
pelo signo da maturidade, uma vez que seu autor já ultrapassa a casa
dos cinqüenta e encontra-se em pleno domínio das técnicas exigidas
para a construção da narrativa ficcional deste fim de século.
A primeira novela da coletânea, intitulada “A Busca da Paixão”, está
dividida em três partes e representa a espinha dorsal do conjunto. A
peça constitui um mergulho nas lembranças de um homem que parte em
busca de seu passado e, principalmente, de sua infância, de suas
origens étnicas. Viagem que compreende um desnudar-se contínuo, num
jogo de claros-escuros intermitentes e silêncios povoados de doces
reminiscências e terríveis fantasias. (Há pouco, verifiquei na obra
poética de Anderson Braga Horta uma interação com a música. Em Nilto
Maciel, encontro, com indisfarçada alegria, uma aproximação com o
cinema, que hoje já não pode prescindir da linguagem musical para
realizar-se artisticamente como uma linguagem visual).
Feito Orfeu, o protagonista vai aos infernos à procura de sua
identidade, tendo por companheiros Helena, a namorada de
circunstância, a memória dos lugares antes percorridos e (des)conhecidos
e o desespero de estar só. (“Aqui estamos, eu e meu desespero, a
guiar os passos para não pisar em falso e cair na arapuca”.) A
trama, labiríntica, constrói-se de sobressaltos e incertezas que
vão, a pouco e pouco, desvelando a traumática personalidade de um
ser que, ao descrever-se, se circunscreve no terreno próprio da
Mitologia, com suas implicações no campo da psiquê humana.
Encontram-se, ali, focos esparsos, porém contundentes, da gênese do
mito do eterno retorno de Nietzsche: como se chega a ser o que se é.
Nilto Maciel, nesta novela, cria um personagem-narrador
auto-suficiente, cujo nome Tanguera é apenas uma referência indígena
circunscrita ao universo da linguagem e cuja vida vazia e sem
sentido o coloca diante de um dilema permanente: precisa
desvencilhar-se com urgência da mediocridade do tempo presente, da
existência sem brilho, da falta de objetivos, para tentar
reencontrar-se e, conseqüentemente, salvar-se de si mesmo e do mundo
que o rodeia. “(Tanguera sou eu. Tanguera não existe. Tanguera é
aquele menino que envelheceu e virou fantasma”). E, nesse desespero
metafísico, empreende a busca definitiva - pessoal, intransferível -
do que está irremediavelmente perdido, mas que, no seu desvario,
pode perfeitamente ser reinventado. Leia-se a infância e suas
possibilidades agora extintas para sempre. (“E eu temia não passar
da primeira frase”).
A novela termina. O que era temor e incerteza transformou-se em
pedra, sedimentou; e o que tinha a simples feição da aspereza, com
suas vísceras de fel e fogo, voltou a vicejar outros sonhos e
esperanças. Mas a conclusão do leitor não será nunca aquela em que
os meios justificam os fins. Dentro da visão artística de Nilto
Maciel, nada tem valor por si mesmo nem está a salvo da corrosiva
ação do tempo, se para a reconstrução do ser não se tentar pelo
menos o risco do improviso, mesmo sabendo-se, de antemão, que este
ser configura-se na imperativa certeza do não-ser.
Leia Nilto Maciel
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