José Inácio Vieira de Melo
Grito bárbaro sobre os
telhados do mundo
Em Suave é o coração enamorado há um
poeta andarilho, anunciando o mistério de sua existência e sua
perplexidade diante de cada situação que se apresenta em sua
caminhada. Seu lar é cada plaga deste planeta, cada cidade por onde
tenha passado ou habitado. Assim, Barcelona, Cádiz, Colônia,
Edimburgo, Havana, Florença, Ilhéus, Itabuna, Itacaré, Lisboa,
Londres, Madri, Mondariz, Paris, Natal, Rio de Janeiro, Salvador,
Santa Cruz de Graciosa, São Paulo, Sintra e Tânger são os pontos de
partida de cada série de poemas deste livro.
Antonio Naud Júnior é um poeta do
mundo, caminheiro dos quatro cantos, navegador dos sete mares. Para
ele “nada é mais importante/ do que o caminho a seguir”, e
compreende que esta escolha é uma busca solitária que pode conduzir
a todas as partes, mas seu objetivo é outro:
ah, não me espere, seja quem for,
não sei onde vou
não sei se vou voltar
caminho, sem rumo,
nesta misteriosa estrada,
para dentro de mim.
Sua poesia não poderia ser de outra
maneira, senão a vastidão dos versos livres soltos no mar da página,
em busca da praia em que possam se estender. A sua forma – modo de
nomear – não busca a contenção, porém dizer o tudo dos caminhos que
vão surgindo: “e eu passeio sem destino à cata da divina comédia.”.
Uma poesia que flerta com a prosa, que observa com desprendimento a
vida que passa, ao mesmo tempo em que descreve objetos, paisagens e
ambientes.
Suave é o coração enamorado faz uma
viagem dentro da vida do jovem escritor, reunindo poemas produzidos
entre 1987 e 2005. Não se trata de um diário qualquer, mas uma
espécie de ata de registros onde o autor imprime suas sensações
sobre o que o movimenta: seus prazeres, delícias, angústias,
viagens. Um caderno de anotações poético-existenciais cuja medida
maior é a palavra:
estou ausente
porém no castelo desta ausência
espero o eterno retorno
estou nas palavras
ando sem destino
mensageiro de poética contaminada
de manuscritos perdidos e salmos piedosos
Este poeta de coração enamorado, em um
momento está em Madri à procura do amor. E o procura “na queda de
são paulo ante a visão de cristo”, mas o amor é “um cântico do rei
salomão”; noutro, em Salvador, onde faz uma oração ao seu santo
protetor, e cada verso é um degrau para o delírio, cada verso é um
mover de montanhas:
foi são jorge que me tocou. (...)
sinto-me jasmim
perfumando a escuridão. (...)
sou um poeta errante tocado pela luz de são jorge.
o guerreiro de capadócia, que venceu um grande dragão,
é relâmpago no infinito.
O coração enamorado, que se apresenta
suave, é, também, selvagem, como fica evidenciado em um dos mais
belos poemas do livro, onde o autor homenageia suas referências e dá
mostras de onde o seu lirismo pode alcançar:
meu coração é selvagem
do meu chão brotam lírios
minha boca plumagem de colibris
minha pele animal felino
meu sangue árabe
minha poesia arrebatada
ave, gullar! ave, wally!
coleciono juventudes desperdiçadas
cacos de sensações
troco desânimo pulsando em vida
por força visionária para continuar
e continuar cícero
e continuar cecim
e continuar hilst
troco amor por amor
com quem ajuda-me a semear jasmins
joão cabral e sabiás
troco o impulso de me jogar pela janela
por versos de leminski com vistas para o mar
Às vezes, seus versos passam por um
processo de fragmentação e, quase sempre, se expandem para o
universo da prosa – tênue seara. Mas diferentemente de estar em cima
do muro – sem se decidir entre a prosa e a poesia –, Naud se
equilibra na palavra que melhor expressa o seu lirismo e dá o passo
sem perder o tom: “vou para dentro, para dentro do enigma. (...) /
porque nele reside o êxtase”.
Walt Whitman, bardo cósmico de Folhas
de Relva, no prefácio da primeira edição de sua obra essencial,
afirma que “o jovem que arriscou sua vida tranquilamente e a perdeu
fez um extremo bem para si mesmo, enquanto que o homem que não
arriscou sua vida e a retém até a velhice na riqueza e no conforto
provavelmente não conquistou nada para si que valha a pena
mencionar”. Como o jovem de Whitman e ainda como Aquiles, na Ilíada,
que escolheu a glória em detrimento de uma vida longa, cheia de
filhos e regalos, Naud prefere correr todos os riscos, mas só
percorre os caminhos do coração enamorado. E essa é a sua tônica. É
aí que reside todo o seu encanto, todo o seu espanto.
Cabe ao leitor atento seguir o fio de
Ariadne que conduz ao cerne da poética de Antonio Naud Júnior –
Apolo Grapiúna antenado ao legado do Walt Whitman, que em “Canção de
mim mesmo”, do já citado Folhas de Relva, predizia o brado desse
Suave é o coração enamorado: “solto meu grito bárbaro sobre os
telhados do mundo”.
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