José Inácio Vieira de Melo
Os veios poéticos da
mulher de hoje
11 de novembro de 2006
Dois anos depois da publicação de seu
primeiro livro de contos, Tramela, um dos vencedores do Prêmio
Braskem de Cultura e Arte – Literatura – 2004, para autores
inéditos, da Fundação Casa de Jorge Amado, chegou o momento de Rita
Santana estrear na poesia com Tratado das Veias, uma publicação do
Selo Editorial Letras da Bahia.
O livro, que vem referendado por Hélio
Pólvora e por Aninha Franco, é composto de setenta poemas, nos quais
Rita exterioriza o seu potencial lírico. Mas o lirismo de Rita
Santana nada tem de doce, ameno, nada tem de contenção. A poeta
imprime em seus versos uma força transbordante, um intenso jorrar de
sensações, e é erótica e é política e é debochada.
Em um dos poemas iniciais, “Abandono”,
Rita dá o tom que perpassa todo o livro. Faz um inventário dos
cacarecos de sua caminhada, como quem faz uma revisão da vida, uma
limpeza. Essa atitude de desprendimento, esse ajuste de contas,
proporciona uma catarse, uma abertura para o novo, para o que vier:
“Deixo aqui minhas vontades. (...)/ Precipito-me em deixar-me aqui
também,/ e seguir sem mim, pois que fico. (...)/ Deixo-me vestida de
ausência.”
Mais adiante, no poema “Azul”, Rita
começa tratando peixes, à maneira de Adélia Prado, e termina fazendo
uma embolada com Ferreira Gullar. E em tom de sarcasmo, o céu azul
maranhense da infância do poeta vai emprestar sua cor para a “boceta
cor-de-rosa” do eu-lírico da musa grapiúna. E a poeta abre o baú, e
mais uma vez se expõe, ao enfileirar seus encontros e desencontros:
“Perdi e encontrei terezas, jorges, tonhos, miguéis, primos,/
Aluguéis, janelas, gudes, bordados, assovios, cartas de amor,/
Fraudes descartáveis, autorias duvidosas, alarmes, amores...”
O veio erótico de Rita predomina no
seu tratado, mas no bojo do erotismo ressoa um desejo de
reconhecimento de seus prazeres. Uma poesia que grita – berra mesmo
– a emancipação dos pudores, seja na ladainha “Ai de mim!” (“Abri a
porta e gritei:/ Ai de nós, mulheres feias!/ Ai de nós, mulheres
tortas!”) ou mesmo em “Bênção” (“Sou mulher de agora, de hoje,/
Tenho hábito de galo e caprichos de galinha.”).
Em Tratado das Veias encontramos uma
jovem poeta delirante, que homenageia, ao decorrer dos poemas, as
influências que lhe são caras. Então, Hilda Hilst, Orides Fontela,
Cora Coralina e Adélia Prado pairam nos ares poéticos de Rita
Santana. Outra voz que se assemelha à de Rita é a de Elisa Lucinda.
Nas duas poetas, é perceptível a entonação teatral, a disposição
para a oralidade de seus versos. Essa característica, muito
provavelmente, se dá pelo fato de ambas serem atrizes.
Quanto ao aspecto formal, a própria
autora é quem esclarece o seu “Mosaico” poético: “Sou uma fulana
doida,/ de palavras grossas e versos malacabados.” E mais, em
“Brechó”: “Rasgo-me em palavras, xingamentos, palavrórios, orações,/
Abuso do vocabulário:”. Ou, ainda, em “Violino”: “Sou dos
excessos!”. Essa estranha poética confere a Rita Santana um largo
espaço para a criação – palco de muitas possibilidades e de muitos
riscos, que podem trazer algo de novo. E o novo é quase sempre
estranho.
Com Tratado das Veias, Rita Santana
passa a fazer parte do mais novo time de poetas baianas, poetas que
publicaram seus livros de estréia, tiveram boa acolhida entre seus
pares e deixaram uma grande expectativa em relação às suas obras
vindouras. Dentre elas, estão Kátia Borges, com De volta à caixa de
abelhas (2002), e Fabrícia Miranda, com Ritos de espelho (2002).
Em Reflexões sobre poesia e ética, o
poeta grego Konstantinos Kaváfis, fala sobre o receio que alguns
escritores têm em abordar determinados assuntos “porque temem
ofender os preconceitos”. Rita Santana não tem medo dos
preconceitos, é uma poeta de voz firme e traço pungente, está armada
de verbos que rondam seu chão como estrelas. Seu compromisso é
consigo, com as coisas em que acredita e com a arte. Rita Santana é
constante em sua busca, por isso cativa a todos aqueles que insistem
em perseguir acreditando em um sonho: “Quando chega a primavera, eu
viro chuva/ e saio a te buscar por toda a terra”.
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