Maria da Conceição Paranhos
Os abismos varridos pelo Vento
Nordeste
Decifração de
abismos revela-se um título de rara adequação para o novo livro
de José Inácio Vieira de Melo, pois este é um poeta de face
ansiosamente debruçada sobre os assuntos humanos, seja no domínio
dos sentidos, seja nos territórios do espírito.
O filósofo tentaria
descobrir o nexo das coisas humanas a partir de uma lógica causal,
ou descrevê-las de modo fragmentário, como fazem alguns pensadores,
a exemplo de Friedrich Nietzsche. O poeta, o poema como modelo do
pensamento fragmentário, chega a uma visão daquilo que o Romantismo
alemão de 1789 chamaria de progressive Universalpoesie. A
definição de literatura feita por F. Schlegel, no seu celebrado
fragmento 116 (Athenäum Fragment, 1789) vê a poesia como um
processo inclusivo, o qual “ewig nur werden, nie vollendet sein kann”
(só pode ser [um perpétuo] tornar-se, nunca completado à perfeição),
pois sua demanda é de uma idéia que permita seu acontecer.
Esse jovem poeta dá
sua contribuição a esse processar-se da poesia como um todo. Em seu
livro, a experiência do abismo, conforme sua natureza intrínseca,
corresponde à experiência do eu poético em proveito de dar forma aos
conteúdos, mobilizando o leitor em favor de uma reconfiguração
imaginária e simbólica do mundo. O questionamento dos dilemas
humanos, em Decifração de abismos como em outros poetas dessa
vertente, permite ao olhar do sujeito da experiência / ao poeta
emergir para a periferia da leitura – na medida em que o leitor se
percebe exercendo sua própria experiência de abismo. Então, este irá
não só revivenciar essa experiência, mas ver, inclusive, aquilo que
escapa à consciência do eu poético, do momento em que o corpo verbal
passa a ocupar o lugar do objeto de desejo do outro, leitor. Assim,
no desenrolar-se da leitura, a experiência do abismo é,
simultaneamente, revivenciada, percebida e acrescida de dados do
universo vivencial do próprio leitor que busca as significações
contidas naquele corpo desejante, o texto poético.
A convivência com o
amor, a morte, a solidão, a busca da própria identidade – temas
universais da poesia – é invadida, na poesia desse poeta alagoano,
pela “cor local” , como a viu a historiografia crítica da literatura
brasileira, referindo-se à incorporação de elementos da paisagem
nativa às formas – inclusive as formas poéticas – herdadas da
tradição ocidental.
No caso da poesia de
José Inácio serão os elementos e motivos do nordeste brasileiro,
mais especificamente os de sua terra natal que se farão presentes,
em especial aqueles desenterrados do tesouro da infância pela
rememoração. Uma bela realização dessa tendência é o poema “Jardim
das algarobeiras”, que se situa na terceira parte do livro e a
nomeia.
Leiamos um pouco:
[...]
os pássaros cantam, e o seu vôo é mais que o canto;
a vaca muge, o cavalo relincha, a rã coaxa,
a cartilha estava certa; a cartilha só não
ensinou que o galo inaugura o dia,
e que as árvores (aqui, as algarobeiras,
mais que quaisquer outras – a não ser
aquele solitário pau-ferro) dançam,
dançam envolvidas por um louco dançarino.
[...]
Mas além disso há algo mais forte:
os caminhos... O vento é andarilho errante
que se apaixona pela flor de agora
e daqui a pouco pela flor seguinte
e a outra e a outra e,
é aquele capaz de uma noite de volúpia
com quem lhe abrir o coração,
porém seu coração jamais pertencerá a alguém
porque já nasceu possuído pela estrada.
(“Jardim das algarobeiras”, p. 44).
Num modo descritivo,
esse poema não se rende a uma primeira leitura. Aparentemente, vai
destacando elementos da natureza circundante, enfatizando a presença
da algarobeira naquela ambiência, e, gradativamente, chegaremos a
perceber que a referência, na verdade, aponta para o próprio agir
poético metaforizado na figura do vento. É ele, o poeta, o ser
viajante, inquieto, “possuído pela estrada”, cujo coração pertence à
vida ela mesma, e o modo como a vivencia é pela experiência da
poesia. Outro traço digno de destaque aqui, pois comparece em várias
das composições de José Inácio, é a enumeração assindética, como se
lê no segundo verso do trecho citado. Esse traço, marca de seu
estilo, irá ser usado em benefício da sua poemática. Veja-se, por
exemplo, “A sagração do pecado” (p. 63) e “Anunciação” (p. 59) –
este, um dos poemas mais bem realizados do livro como um todo. Nesse
poema, o motivo da reminiscência da infância invade o tecido
poético.
Aqui, e no livro
como um todo, a infância se mostra com o mágico poder de alimentar o
homem adulto, revelando o eu poético carregado de uma energia que se
deixa ver, inclusive, na escolha de verbos de ação, aliados a
complementos e adjuntos de uma área semântica com a mesma base comum
– o movimento – cujo resultado se reverte em favor da visão do poeta
como um ser capaz de mudar a face das coisas em sua “lerdice
postedênica” como expressou um imenso poeta conterrâneo de José
Inácio, Jorge Mateus de Lima (1893-1953), nascido em União dos
Palmares, Alagoas.
Observe-se que, a
despeito da evidente influência da escola poética que se deixa ver
em João Cabral de Melo Neto, José Inácio vulnerabiliza-se à poderosa
articulação verbal do autor de Invenção de Orfeu (1952). Não
havia como ser diferente, fosse mesmo para negar, já que essa é a
tradição de onde provém. No poema antes comentado, para citar apenas
este, “Jardim das algarobeiras”, é a face submersa de Orfeu, do
“Orfeu virgíneo” de Jorge de Lima, quem dita os versos.
Claro está que
quando se fala de influência, em termos de Literatura Comparada, o
que se faz é apontar as “famílias” ou “linhagens” eleitas pelo poeta
no seu percurso criador. Observe-se que, como o próprio Jorge de
Lima, José Inácio enfrenta corajosamente os desafios da tradição
retórica (signo que nos marcou, poetas brasileiros, desde o berço),
o que resulta em ineludíveis marcas neobarrocas em seu texto, mérito
antes que demérito, segundo uma certa visão de fórmulas poéticas
quereria.
Ao se apontar essas
características como constantes em José Inácio, pretende-se mostrar
algumas, dentre várias outras, que comparecem em sua ars poetica.
Esse é um poeta de leitura extensa e continuada, percebe-se. É que
ele busca formas e fôrmas diversas, numa abertura a várias espécies
e modalidades, traço marcante em sua poesia desde Códigos do
silêncio (2000) – seu primeiro livro publicado – quer nos poemas
curtos, nos poemas longos quer nos poemas de forma fixa, como o
soneto – o qual exercita com afinco, com ótimos resultados, como se
lê em “Ave” (p. 70) e “Ladainha corporal” (p. 69), entre outras
realizações.
Um corpo
exangue prostrado ao sol,
o estômago esparramado no chão
tal qual bofes de cordeiro imolado
– e o lobo lambe os beiços.
O sangue jorra incessante a clamar justiça,
e o céu azul, tão-somente azul
sob os olhos do mês de setembro
– e o lobo lambe os beiços.
O que pode um corpo tombado
no desembesto de um dia qualquer?
O que pode essa forma inerte?
O que podem as goelas do lobo?
O que pode um lombo pisado?
Uma ferida aberta, o que pode?
(“Ladainha corporal”, p. 69).
Verifique-se a
tendência à hipérbole, ao nível lexical, na escolha de vocábulos com
o traço de animalidade; as perguntas retóricas; a mística barroca do
sangue, meio a outras características desse tipo de estilo.
O comentário e a
crítica da poesia não se fazem de generalizações apressadas,
sabemos. A poesia ela mesma, em seu movimento erótico (Eros é o deus
mais presente na poesia), se constrói com o detalhe, o particular, o
contingente, ao modo próprio de cada poeta.
Os traços acima
indicados caracterizam o verdadeiro poeta, distante em tudo do
arranjador de palavras, ou metros e rimas se os houver, buscando
construções de efeito. Diga-se de passagem: poetas (?) assim não
sobrevivem à sua morte. Mesmo porque, quando não mais estiverem
presentes, para articularem contatos no mundo da literatura, suas
produções serão esquecidas. O trabalho do escritor não deixa espaço
para encontros e tráficos de influências. A chamada “vida
literária”, a qual se pode freqüentar quando o labor permite, com
moderação e lucidez, é inimiga do poeta quando se torna uma
preocupação constante em sua vida.
Após essa breve
digressão, regressemos a José Inácio, poeta que se volta para a
poesia com determinação e a trabalha incessantemente, querendo-se
herdeiro de uma tradição a qual visita e investiga. Todavia, a marca
de uma personalidade poética já emerge de seu texto, a despeito de
sua juventude cronológica.
Buscar e buscar, eis
aí José Inácio, o poeta, no gesto reiterado de reter o agora, o
momento que passa – traço próprio à poesia lírica – captado também
por meio do debruçamento no sonho.
Sonhei um
poema feito de pedras,
pedras fluindo, fosse rio sereno,
de todos os tamanhos e matizes,
e eram duma beleza precisa:
roupa e linguagem de pedras.
Imerso no poema-pedra-rio,
o poeta – a pedra – a lapidar.
O que se via não era a pedra,
mas a poesia por dentro, além.
(“Canto de pedra”, p. 23).
José Inácio percebe
muito bem que a linguagem – e dentro desta, sua língua natal – é um
sintoma de fenômeno que a transcende: a atividade poética como um
todo, incluído, naturalmente, o estágio pré-lingüístico. Por outro
lado, é esse sintoma a marca diferencial, a prova-dos-nove do poeta,
na medida em que mais adestra sua perícia de exprimir a vida com
palavras, no mundo inelutavelmente histórico, feito de uma multidão
de vozes e experiências, as quais capta e materializa com sua língua
nativa. Observe-se que a intimidade do poeta com sua língua de berço
torna-se a mais estreita possível, cada vez mais profunda à
proporção que exerce sua função, escrevendo.
Nas cinco partes em
que Decifração de abismos se divide, a preocupação dominante,
por conseqüência, é a de auscultar a vida em sua força atordoante e
situá-la no leito do poema. Aquela força, por vezes, fulmina o poeta
e o lança num transe místico face à realidade experienciada.
[...]
tudo é o mesmo:
a esmo, o imenso ermo,
além da fúria de viver,
o meu peito palpita desesperado,
e a angústia não me deixa ver mais nada
– é o único e sempre acorde:
a dor que não se mede. (“Assombro”, p. 71).
Aliada a essa
vivenciação mística da realidade, surge como sombra pertinaz, no
livro, o fantasma do destino, numa premonição agônica do futuro,
como o poema-título encarna de modo extremado (“Decifração de
abismos”, p. 67).
A par disso,
percorre o texto a energia que rege uma orquestração de várias
vozes, muita vez enraizada na experiência da terra natal. Se o
leitor meditar sobre o poema “Ave”, um soneto, como antes indicado,
perceberá uma poderosa atmosfera de religiosidade, numa cena da
Sexta-Feira da Paixão, matizada ao estilo particular de José Inácio,
que inova o tratamento do tema desenvolvido nos catorze versos. Esse
poema ressoa, todo ele, em vozes e sons e em ruídos. Veja-se o 1o.
terceto:
O
chocalho dos deuses anuncia ave:
hora das trancas, bulício de chaves,
e o menino deseja o leite santo. (“Ave”, p. 70).
A musicalidade dos
versos de José Inácio atravessa sua poemática como marca diferencial
de estilo, aliás, como se lê no já referido poema “Anunciação”, ao
lado de outros de valor semelhante, como “Invocação” (p. 57) e deste
de agora, “Epitáfio para Guinevere”:
Meus
cavalos choram por ti, égua de olhos azuis.
Não mais invadirei o vento montado no teu galope.
Que fique inscrito na tua lápide
o verso de lágrimas dos meus cavalos.
Para tu, que trazias os céus dentro dos olhos,
o relinchar da paixão pagã
dos cavalos que trago dentro de mim. (p. 62).
Como não trazer à
mente alguns dos poemas de Jorge de Lima – seja do Livro de
sonetos, seja da Invenção, em que as figuras da égua e da
vaca, relacionadas ao eterno feminino, comparecem para nos emocionar
e encher nosso espírito de beleza?
Na atmosfera modal
de Decifração de abismos como um todo, há uma tendência
aspectual para o Subjuntivo ou para outros tempos “desejantes”, como
o Futuro do Pretérito, mesmo quando apresentado por outros tempos do
modo Indicativo. Em “A sagração do pecado” (p. 63), pode-se observar
esse traço. O sintagma “eu quero”, reiterativo, comparece em cinco
das seis estrofes do poema, cada vez para exprimir um desejo não
cumprido no tempo e que chega ao final como doloroso apelo. Outro
exemplo será o poema “Sentido” (p. 68), no qual a construção se
inicia com uma modalidade aparentemente descritiva, enquanto
subjazem à estrutura de superfície as impossibilidades.
Os homens
vinham e havia um caminho.
Continuavam, e o prumo os esperava,
e eles seguiam acreditando nisso:
sempre rumar – sempre sempre sempre.
Os homens nunca chegavam a algum lugar,
mas iam eternamente em busca de,
pois não queriam nem suportariam
entender a verdade do lugar nenhum.
É também de desejo,
expressado por meio da repetição, que se faz o poema “Ladainha
corporal” (p. 69), em que as seqüências interrogativas, repetidas,
deixam o sentido suspenso pelo recurso da pergunta. Pode-se afirmar
que a pergunta retórica, como traço estilístico, é forte indício do
movimento desejante do poeta. O mais das vezes o desejo é o de
conferir sentido às palavras correntes na linguagem da sociedade de
uso em que temos o infortúnio de sobreviver.
Mas o poeta quer
viver, com sua ação renovadora. Em José Inácio, uma aragem fresca
percorre o livro – mais que brisa, vento e Vento Nordeste, a varrer
o pó da linguagem tributária.
Leia Maria da Conceição Paranhos
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