José Inácio Vieira de Melo
Poesia como arte marcial
17/04/2004
A poeta paulista Neide Archanjo, autora de
dez livros, lança este ano, Todas as Horas e Antes, livro que reúne
toda a sua poesia, em comemoração aos 40 anos de oficio literário. A
editora A Girafa, conhecida pelo tratamento gráfico que propicia às
suas edições, é a responsável pela publicação do livro, que vai ser
lançado em várias capitais, dentre elas Salvador. Nesta entrevista,
Neide Archanjo, considerada pela crítica como uma das autoras mais
significativas da década de 1960, fala de seu pioneirismo no
movimento Poesia na Praça, da recente edição francesa de seu Pequeno
Oratório do Poeta para o Anjo, da sua caminhada poética que afirma –
“é grande e quase obscura” – e complementa que o desconhecimento, a
apatia diante da literatura, não é privilégio do Brasil.
José Inácio Vieira de Melo – A sua obra tem
obtido da crítica uma grande atenção. Os pareceres sobre a variedade
temática são unânimes, dando destaque para o tom lírico da sua
poesia. Como se dá o seu processo de criação?
Neide Archanjo – Desde os Primeiros
Ofícios da Memória, publicado em 1964, a crítica se deteve sobre
meu trabalho. Eu era tão jovem – 24 anos – mas surgia com uma
proposta que provocou uma certa comoção. O poeta Paulo Bonfim, o
crítico Domingos Carvalho da Silva e a grande poeta, recém-falecida,
Hilda Hilst, celebraram minha estréia. Aliás, com a perda de Hilda,
completei um ciclo doloroso de perdas daqueles que foram os pilares
da minha iniciação poética. Neli Dutra, Mira Schendel, Vilém Flusser
e José Luiz Archanjo.
Ao longo desses anos
venho buscando alcançar uma variedade não só temática mas também
formal, indo do poema longo (O Poeta Itinerante, As
Marinhas e o Pequeno oratório do Poeta para o Anjo) aos
poemas esparsos, todavia ligados por um tema em comum (Escavações,
Tudo é sempre agora, Epifanias e Todas as Horas).
Quanto ao lirismo da minha poesia, creio que é uma conseqüência, o
resultado de uma certa maneira de ser, sentir, pensar e agir.
JIVM – O que a faz buscar a variação, tanto no
tema quanto na forma?
NA – Não é uma opção racional. A poesia
não pode ser submetida a esse tipo de escolha. O que acontece é que
se recebe uma notícia poética, uma anunciação que poderá ser
transformada ou não numa epifania, isto é, em uma iluminação,
em um bom poema.
Isso sim depende do
poeta e da sua preparação interior, intelectual, espiritual. É
preciso bater, bater a palavra na forja da língua e esperar que ela
se revele em todo seu esplendor original, para assim poder-se dizer
o indizível.
Diria que os
poemas-arautos, aqueles que noticiam que um novo trabalho está
surgindo, são placas matrizes, bússolas condutoras do tema e da
forma. São nebulosos esses estados, às vezes surpreendentes como
revelações do inconsciente individual e coletivo. Cabe ao poeta
decifrá-los ou ser devorado por eles.
JIVM – A editora A Girafa acena com o
lançamento da sua obra reunida em comemoração aos quarenta anos de
estréia. Qual o sentido dessa longa caminhada poética?
NA – Tive a alegria de reencontrar
Pedro Paulo Sena Madureira. Ele é editor de minha poesia desde 1980,
quando publicou Escavações pela Nova Fronteira. Apenas o
lendário editor Massao Ohno, que publicou meus Primeiros Ofícios
da Memória, em 1964, pode estar ao seu lado como editor, no
sentido pleno de ler, repassar o texto com o autor, apontar
deficiências, sugerir, contar, fazer o livro acontecer. Estive em
outras grandes editoras, mas editores só Massao Ohno e Pedro Paulo.
Daí Pedro Paulo, agora editor de A Girafa em São Paulo, me convidar
para publicar minha poesia reunida – 10 livros em um só volume, de
mais de setecentas páginas, o que é uma ousadia. A alegria é de
saber que ele, eu e a minha poesia resistimos a todos esses anos.
Todas as Horas e Antes reunirá minha poesia anterior e o novo
livro. Será uma bela edição com tratamento gráfico de Lucila Sartori
que cuidará das capas e será lançado em diversas capitais,
prioritariamente em São Paulo, Rio e Salvador. Escolhi setembro, mês
de meu aniversário e de paz primaveril, para o lançamento em
Salvador. Detalhes a gente conta depois.
A caminhada poética
é grande e quase obscura. Depois de quase 40 anos de publicações,
prêmios, entrevistas na mídia, teses sobre o trabalho, o poeta é
sempre um desconhecido. Quando é apresentado, fora de seu círculo,
social e mesmo literário, ele tem que repetidamente apresentar sua
biografia. Mas eu fui me fazendo, em fazendo a poesia. Note que esse
desconhecimento, essa apatia diante da literatura, não é privilégio
do Brasil. Li que os britânicos desconhecem as obras literárias do
sue país e que as pesquisas provam que as frases de séries de TV,
são mais famosas para eles que trechos de Shakespeare ou Oscar Wilde.
Se isso está acontecendo na Inglaterra, imagine no Brasil...
JIVM – Em 2003, seu livro Pequeno Oratório
do Poeta para o Anjo ganhou tradução para o francês. Qual foi o
procedimento para a publicação?
NA – O Pequeno Oratório do Poeta
para o Anjo já nasceu privilegiado com a oferta amiga de Maria
Bethânia de gravá-lo e fazer uma apresentação, dirigida por Bia
Lessa, na Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro para um público de
quase mil pessoas. Como Bethânia, até então, não havia dito nenhum
poeta, exceto o mestre Fernando Pessoa, foi uma honra
incomensurável, uma demonstração de amor, respeito e reverência à
minha poesia. Ninguém escolhe Maria Bethânia, apenas é escolhido por
ela. O Anjo voou e foi parar em Paris. As Editions Eulina
Carvalho, dirigida pela pernambucana Selda Carvalho e a francesa
Véronique Basset – excelente tradutora – me convidaram e a
publicação saiu em outubro de 2003 com lançamentos em Paris. Agora,
já estão em curso outras traduções de livros meus e posso assegurar
a competência e o profissionalismo da editora que já publicou textos
de Clarice Lispector, Marilene Filinto, Ferreira Gullar.
JIVM – No início de sua carreira literária,
década de 1960, você foi uma das fundadoras do movimento Poesia
na Praça, em São Paulo, que depois se alastrou por todo o país.
O que movia os jovens a irem ás praças recitarem poesia?
NA – O movimento Poesia na Praça
foi criado por meu irmão José Luiz Archanjo, Ilka Brunhilde, Renata
Pallottini e eu. Consistia em estender varais – poemas escritos em
cartolina, expostos com pregadores em toscos fios, ligados entre as
árvores da Praça da República em São Paulo aos domingos, na primeira
feira hippie do Brasil. Era 1969 – plena ditadura do governo Médici
– e esse era um compromisso político-social de resistência e
oposição. Não éramos guerrilheiros, nem seqüestradores de
embaixadores. No mínimo tínhamos que contestar a ditadura de alguma
forma. Originária da Faculdade de Direito da USP, fui a primeira
mulher a ocupar a tradicional tribuna do Largo de São Francisco e
fundar o jornal feminino A Presença. Minha arma era a poesia.
Era preciso usá-la e assim o fiz tenazmente.
JIVM – E, hoje, como você vê os movimentos de
poesia pelo país?
NA – Hoje não há movimentos de poesia
pelo país. Há poetas esparsos e pequenos grupos dispersos, agora
inseridos na internet, nos blogs, sites, onde
circula uma poesia ávida por divulgação, às vezes razoável, outras
desprezível. O momento é esse e há que reconhecê-lo.
Mas nada tem tanta
importância, porque se estamos caminhando para uma nova Idade Média,
como prevêem alguns, nossos textos hão de ficar adormecidos por
muitos séculos, até um novo Renascimento acontecer. E haja humildade
para aceitar isso!
JIVM – Como se deu a paixão pela poesia do
alagoano Jorge de Lima?
NA – Ele me foi apresentado por Neli
Dutra, escritora gaúcha, mestra de toda uma geração em São Paulo que
ia do costureiro Denner ao jovem Jô Soares. Ensinou a Hilda Hilst
mitologia e segredos da alquimia. Aos 23 anos tive o privilégio de
ser sua discípula e receber dela a edição completa de Jorge de Lima
com suas anotações pessoais. Tornou-se meu missal para sempre!
JIVM – Qual a sua mensagem aos poetas que
estão ensaiando os primeiros passos?
NA – Às vezes penso em todos os poetas
que estrearam comigo em 1964. O tempo resguardou muito poucos. Para
quem está começando agora sugiro disciplina (obstinato rigori),
humildade e paciência. Não adianta querer aparecer antes da hora. A
poesia é uma arte marcial, tem recuos e avanços exatos. E é
sabiamente Zen. Sem mestres, o discípulo se perde, mas ele só
encontrará o mestre, quando estiver pronto. Então é bom ir cuidando
disso: leituras, ato-conhecimento, viagens, vivências. Tentar ser o
seu poema vivo.
Cartas a um jovem
poeta de Rainer Maria Rilke deveria ser o livro de cabeceira de
quem pretende escrever poesia seriamente. Um pouco de Fernando
Pessoa, Ginsberg, Eliot, Emily Dickson, Borges, Silvia Plat, muito
dos clássicos, sobretudo os gregos e, é claro, todos os nossos, dos
românticos aos contemporâneos, nem pensar em esquecer Jorge de Lima,
Drummond, Bandeira, Vinícius, Cabral, Guimarães Rosa e tantos,
tantos outros mais.
José Inácio
Vieira de Melo é poeta, autor dos livros Códigos do Silêncio (2000),
Decifração de Abismos (2002) e A terceira romaria (no prelo).
Organizador de Concerto lírico a quinze vozes – uma coletânea de
novos poetas da Bahia (no prelo).
Leia Neide Archanjo
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