Jorge Lúcio de Campos
Caderno de outono e outros poemas, de
Suzana Vargas
Após sete anos de hibernação poética,
Suzana Vargas ora nos brinda com Caderno de outono e outros poemas,
sua quinta coletânea (antes publicara Por um pouco mais, em 1979,
Sem receio, em 1983, Sempre-noiva, em 1984, e Sombras chinesas em
1990). Trata-se, sem dúvida, de um texto que prima pela
sensibilidade e ousadia sobretudo por eleger (e conseguir dar
conta), como matéria-prima, uma temática tão traiçoeira (porque
desgastada) como a da consistência do viver. Sob esta ótica, não sem
razão, Heloísa Buarque de Holanda nos chama (na contracapa) a
atenção para o fato dela "pertencer a uma geração que trazia como
bandeira a fragilização programática das fronteiras entre poesia e
vida", assim como para "seu seguro controle de linguagem e universo
feminino". Excetuando talvez essa última (mais do que feminino, o
universo poético de Suzana se revela universal no sentido mais amplo
de uma sensibilidade vivamente aguçada pela presença do mundo),
todas as demais afirmações podem ser - já a partir da leitura de
'Árias', o primeiro dos quatro segmentos que compõem o livro (os
demais são 'Subsolos', 'Transparências' e 'Caderno de Viagens') -
prontamente confirmadas.
Afeita a imagens instigantes (como em
'Musical', "os barcos mais adiante/encalharão nuns recifes//e como
sonhos antigos/apodrecerão nas águas" ou em 'A casa', "digo adeus
aos fantasmas/que te cercam/também aos teus arbustos"), o fôlego de
Suzana se revigora sempre que se intimiza e/ou trata com o banal
cotidiano das situações (cf. 'Momento', 'Impressões da sangria').
Outra de suas características marcantes é o afloramento: mesmo
quando parecem querer adormecer, seus poemas criam a expectativa de
que neles há algo sempre algo em vias de irromper, sendo muito forte
também em seu imaginário a certeza do tempo (cf. 'Ouro sob a água',
'Crônica íntima', 'Como sempre').
Contudo, o que dá mais peso à sua
dicção - e definitivamente a consolida como uma das 'vozes' de nossa
atualidade literária - é o modo peculiar pelo qual ela tenta marcar
o lugar do poesia em sua visceralidade para o modo humano de
ser. Suas descrições, anamneses e prospecções demonstram que a
realidade, de fato, só não se mostra metafísica se assim
insistirmos. É dessa intencionalidade básica que poemas como
'Secreta' (um dos mais belos da coletânea) extrai sua energia ao
reafirmar a impossibilidade da relação entre palavra e coisa em
torno da compensação poética ("A paisagem antecede essas palavras,/o
verbo diante dela se evapora/e o mais é esse instante de silêncio"),
e ainda 'Ancoradouro' ("O que se diz diante do corpo/é nada./No
final só contornos permanecem").
Ao nos abrirmos para Caderno de
outono, temos a gratificante impressão de que ficamos um pouco mais
perto das coisas, mesmo quando, conscientes dessa impossibilidade,
lamentamos a sua ausência. Situada entre o vôo de Ícaro e as
correntes de Prometeu, e sempre nos chamando a atenção para a
aspereza do mundo quando de nossa apatia (ou displicência) em querer
humanizá-lo, trata-se de uma poesia que, em seus melhores momentos,
cativa sem nunca apelar, apela sem nunca dizer, diz sem nunca
falar... Uma que cumpre, sem jamais quebrar o ritual, seu mais
autêntico desígnio.
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