Jorge Lúcio de Campos
Trovar claro, de Paulo Henriques
Britto
(Companhia das Letras)
Paulo Henriques
Britto não é desses poetas íntimos da velocidade e da vertigem. Ao
contrário, sua estratégia privilegia a precipitação (que eu chamaria
de 'estalagmítica' pois ser mais afeita à sobreposição que ao
alongamento) ou antes a reconcepção, própria das fainas melhor
conduzidas às expensas do tempo, a passo igual, com a paciência de
um velho relojoeiro. Sua poesia tampouco se destaca pela rítmica (o
que não implica, absolutamente, a ausência de um contínuo esforço de
aprimoramento nesse sentido). A grande usina que a alimenta parecer
ser mesmo a pausa, o fôlego, a construção pausada do fôlego.
Aos 45 anos de
idade, Trovar claro é a sua terceira coletânea (antes vieram
Liturgia da Matéria, 1982, e Mínima Lírica, 1989). Como os próprios
títulos indicam, trata-se de uma dicção - contradizendo, sob este
aspecto, como muito bem lembrou Italo Moriconi, no texto de
apresentação desta última, o ímpeto ready made da maioria de seus
coetâneos da geração contracultural setentista - muito mais afeita
ao fascínio do íntimo e do reflexivo, a um remoer repertorial em
torno de redes simbólicas.
Para os que, por
acaso, estranhem sua recorrente opção pelos moldes (métrico e rímico),
cabe dizer que, embora assumido cultivador da forma-soneto, Paulo
Henriques dribla com inventividade e sutileza à hoje tão execrada
ameaça da 'limitação dos quatorze versos'. Sob este aspecto, um
pequeno ensaio de Augusto Massi chama atenção, para o esgarçamento
temático ou "mescla estililística entre forma severa e prosaísmo"
que funciona como torre de força para que ele faça de sua poesia
algo vital sem nunca precisar abrir mão totalmente do arquetípico.
Por outro lado, tal
polarização nunca se comporta com um ponto de chegada. Creio ser
mais correto concebê-la com um ponto de partida que,
ininterruptamente tensionada por um sentimento de ironia diante das
coisas do mundo (e por que não dizer da própria experiência quente
da subjetividade) não se presta nunca à conclusão. Esse detalhe, não
raro bastante sutil na poesia de Paulo Henriques, o arregimenta numa
estirpe das mais valiosas (isso em função das dificuldades
intrínsecas à boa consecução desse projeto): a dos poetas
reconstrutivos.
Trovar claro possui
(e mantém) a mesma inconfundível (por que não dizer irresistível?)
vocação metalingüística dos livros anteriores. Seus poemas remoem a
si mesmos em interrogações e contra-interrogações que os mantém
sempre tensos e acesos. Ali o poeta e poema se interrogam e avaliam:
para que sirvo, senão para ser nada? Diante dessas tantas
necessárias (e providenciais) incertezas discursivas: "o mundo (no
poema) vira um caos de músculo e metal" (cf. 'Sete estudos para a
mão esquerda', V).
Tradutor-poeta
acostumado a cultivar a forma em sua busca de uma leitura
aprimorante, poeta-tradutor aberto ao cruzamento direcional e à
abertura sensitiva, Paulo Henriques se deixa amiúde seduzir, como um
bom trovador après la lettre, por determinados temas. Destacaria,
entre eles, o do impasse criativo, brilhantemente conduzido ao longo
de Trovar claro, como no título de abertura (a primeira das 'Três
peças circenses') que afirma que "a gososa vertigem dos começos -
/esse friozinho bom no estômago - /aqui encontra lastro, ainda que
tênue,/na realidade tão incômoda".
Se toda obra já
nasce morta em suas pretensões (e o artista só se dá conta disso,
por vezes, bem depois), se diante do sal da realidade só nos resta a
ilusão da epifania (a poesia é doce), se como afirma o primeiro dos
'Sete ensaios para a mão esquerda' "existe um rumo que as palavras
tomam/como se mão alguma as desenhasse/na branca expectativa o
papel", Trovar claro cumpre o seu papel de protelação da dor da
linguagem e, ao reafirmar o talento de seu autor, marca um novo
momento de efemeridade, beleza e celebração.
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