Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

José Nêumanne Pinto

 

O Bicho da Poesia

 

Para bem ouvir e absorver Zé Ramalho, convém se despir de toda a erudição e deixar o bicho da poesia entrar pelos poros. Se poesia é pele, é intuição (mais até do que inspiração), eis um bicho-poeta em sua inteireza: nada de bibliotecas submersas, citações vãs, tudo brotando das veias e fertilizando o solo. Para bem ouvir e absorver Zé Ramalho, é preciso se livrar de todos os preconceitos e se deixar afogar no mar da poesia, no charco, no vasto charco da vida real, da máquina de triturar carne e alma da vida comum. Se poesia é lama, amálgama do suor do rosto caindo no barro do chão, eis o poeta-caranguejo, com suas tenazes e sua solidão. Para bem ouvir e absorver Zé Ramalho, urge se privar de todos os conceitos, pois sua obra nega quaisquer uns que tenham sido por nós absorvidos, e absolvidos. Essa obra musical os condena e os rejeita na sensatez de sua loucura e nas máculas de sua pureza.

Conheci Zé Ramalho nos bailes da vida. Eu, dançando. Ele, tocando. Eu, me tocando. Ele, se dançando. Vi, primeiramente, sua banda roqueira: competente guitarrista - cover inigualável dos Ventures, dos Incríveis, inescrutável como Jimi Hendrix, magro como Keith Jarrett, místico como George Harrison, louco como Eric Clapton. Louco, sim. A melhor banda de rock da Paraíba nos anos 60 chamava-se Os Quatro Loucos. Ele era um dos quatro. Curvado sobre as cordas do instrumento, tomando choque da eletricidade de Paulo Afonso, parecia um centauro sobre a guitarra colorida. Na nossa Liverpool mítica, na Memphis ensolorada de nossos sonhos, ele ajudava a dar ritmo a nossa rebeldia. As cordas de sua guitarra faziam uma ponte entre as praias da Paraíba e o nevoeiro espesso da Londres do Balanço.

Atenção, leitor: não percebi o Rimbaud escondido naquela corcunda. Nem mesmo quando Carlos Aranha, meu amigo velho, mo apresentou no Bambu, restaurante da boêmia pessoense, perto da Bica, Zoo local. Aquele lá, o violeiro de Alceu Valença, assoando o nariz insistentemente no lenço já empapado de catarro, pareceu-me apenas um bicho da noite, como nossos primos os sagüis, que dormiam nos galhos das árvores próximas. Talvez pudéssemos cobrar ingresssos das crianças para vê-lo, sentado à mesa como se empunhasse o violão - um animal aparentemente desconfortável em sua própria pele. Não sei por quê, mas imaginei, naquele encontro rápido, que ele poderia ter saído diretamente de um conto inédito de Jerome David Salinger, herói de minha adolescência. Ali, associado com Aranha, com quem tinha feito o show Ramaranha, também não liguei nada de sua figura inusitada ao êxito comercial.

Sem contar a apresentação com Alceu de Olinda no Festival da Globo, só o veria de novo no palco do Teatro São Pedro, na Barra Funda, na Paulicéia Desvairada, onde eu fazia ninho. Lançava seu primeiro disco, Zé Ramalho. Talvez por associá-lo com o autor de The catcher in the rye, logo pensei que pudesse incluí-lo na ampla herança que Bob Dylan havia deixado pelos continentes. Até hoje, Chão de giz me dá a sensação de que poderia ter sido composta por Dylan ou por Holden Caulfield (lá sei eu, quem sou eu para dominar os mistérios da criação). Levei-o para minha casa e o submeti a uma audição completa do poeta de Like a rolling stone. Ele nunca o tinha ouvido antes. Não me dei por achado: apelidei-o de Zylan, não o filho de Bob, mas seu primo. Quem é que vai entender as encruzilhadas da canção popular?

José Ramalho Neto, paraibano de Brejo do Cruz, no mesmo sertão seco da Paraíba onde fica Uiraúna, onde eu nasci, revelou-me seu diabólico pacto com o Cão. Naquele primeiro disco, genial, inesperado, um grito seco e incontido registrado pela tecnologia da reprodução fonográfica, mostrou que o algodão que nasce lá também brota cá. Ou seja, os algodoais de nossa infância, que não volta mais, estão plantados nas margens áridas do vazio rio do Peixe como podem nascer do limo que o Mississipi deixa rolar nas vias sulistas dos Estados Unidos. A fusion do blues com o xaxado - puta merda - explodia nos pulmões daquele berro primevo. O neto do velho sertanejo Zé Ramalho podia herdar Robert Johnson e Salinger e Dylan, todos primos - parentes e afins.

A pedido de Maurício Kubrusly, escrevi um artigo para a revista especializada Somtrês: "Banquete dos signos nas pegadas de Zé Ramalho". Até hoje, eu juro, não sei se o título da canção "Banquete dos signos" tem algo a ver com essa crítica. Mas sei que é mais uma obra-prima do inesperado e do inusitado (principalmente a versão de Força Verde, com o próprio Zé e a maravilhosa Marinês sem seus "cabras da peste"), surgido das regiões abissais de onde emergiram "Avohai", "Frevomulher", "Admirável gado novo" e tantas outras, que nunca me canso de ouvir.

Tudo o que é necessário saber de Zé está naquele primeiro disco. Em suas faixas soam as violas que ele ouviu na fazenda do avô e pai, avopai, avohai. Delas capturou aquele amor à sonoridade das palavras. Os repentistas que percorrem os sertões em seus desafios improvisados, os repentes, conhecem a força mnemônica das rimas e a usam ad nauseam. É bem verdade que eles também dão exagerado valor ao sentido e gostam de exibir sua erudição tosca, retirada da Bíblia Sagrada, do Livro de São Cipriano, do Almanaque Capivarol ou das gestas do Cavaleiro da Távola Redonda. Mas, às vezes, essa busca do sentido absoluto pode conduzir ao absurdo, num processo semelhante ao da produção de samba-enredo de escola de samba carioca, conforme capturou, magnificamente, Sérgio Porto, no Samba do crioulo doido.

Limeira, outro Zé, um negro velho, que considerava o trem e o progresso obras diabólicas e tocava rabeca e rimava sem se importar como, inspirou Otacílio, do clã dos Batista de São José do Egito, em Pernambuco, a saga desse surrealismo bronco. Famoso em todo o Nordeste pela verve do jornalista Orlando Tejo, paraibano como nós, Zé Limeira tornou-se o protótipo do repentista do absurdo. Em seus repentes, Jesus Cristo sentou praça na polícia e Getúlio Vargas foi delegado de Campina (Grande, Paraíba). Esse culto à organização dos sons semelhantes, desrespeitando os cânones do sentido, está presente em toda a lírica de Zevohai Zylan. É por isso que eu digo: Zé é primo de Dylan e filho de Zé Limeira, dos irmãos Batista e de Tejo.

Ali começa a ser explicada outra vertente de Zé - a apocalíptica. Desde o apóstolo João (dos tempos em que o verbo, e não a verba, era o princípio, ou seja, faz tempo), os profetas do povo apontam para as mazelas sociais da elite e prevêem o choro e o ranger dos dentes dos pecadores. Taí outro filão da obra de Zé: o Apocalipse Já. Por esse caminho ele terminou cruzando com um fantasma, o do baiano Raulzito, que virou Raul Seixas, outro parente e símile do judeu Zimmerman, que virou Dylan.

Quando Raul deixou de compor para Jerry Adriani e virou a mesa com Ouro de tolo, tive a mesma impressão de estar ouvindo um clone em português do poeta de It’s all over now, baby blue. Vi-o e ouvi a canção pela primeira vez no palco do Teatro Record da Rua Augusta no programa Mixturação da dupla Walter Silva Picapau e Mário Buonfiglio, pai da Mônica, aquela dos anjos. Tolice! Deixei de perceber que ali estava surgindo uma tendência forte da música jovem brasileira - esse maná bíblico, para saciar, ao mesmo tempo, a sede espiritual e a fome social. Raulzito virou astro ausente, mas Zé Ramalho está aí para cantar suas jeremíadas rimadas.

O último espetáculo em que tive a alegria de ver Zé ao vivo foi no Teatro do Tuca em São Paulo, o mesmo onde Caetano Veloso xingou a esquerda festiva do fim-fiasco dos anos 60. Cheguei a temer por nossa integridade física - a minha e a dele. A platéia, predominantemente jovem, não tinha ainda nascido quando ele compôs "Admirável gado novo", hit de novo por causa de Mariozinho Rocha, que a pôs na trilha de O rei do gado, o sucesso seriado de Benedito Ruy Barbosa nas oito horas da Globo. O susto não diminuiu o encanto e só aumentou o espanto: de onde vem aquela energia de meio século que comove a juventude: (1) Da seiva da raiz? (2) Da mágica da competência técnica? (3) Da vizinhança arriscada que aproxima o poeta do profeta, até mesmo na grafia destes substantivos na língua de Camões, que Zé andou entortando, como Joca de Cordisburgo, dando umas de Uri Geller semântico da região de Catolé do Rocha, sertão da Paraíba?

O novo Zé, o herdeiro do profeta Raul Seixas, é o mesmo Zé velho de guerra, poeta de sua gente e profeta de seu tempo. Pois é isso e está dito (quem quiser contradizer que o faça já ou se cale para sempre): despido e desprovido, sem conceitos nem preconceitos, com todos os livros fechados e os ouvidos e a alma abertos, digo-lhes que Zé é da ordem dos poetas e dos profetas. O mistério da poesia, meus amigos e meus inimigos, é que ela é para quem pode, nunca para quem quer. Ela é que escolhe, fêmea da semântica - uma espécie de vocação, mais do que isso uma condenação. O poeta, ao contrário do romancista, que se faz com a vida, nasce com a compulsão irreversível, irretocável, da poesia, que mina da água, brota da terra, crepita no fogo e balança na brisa. Esse mistério é o que ele domina em suas canções. Por isso, os jovens o têm como um igual. E Zuza Homem de Mello, que tem música nas veias, reconhece nele o potencial de maior ídolo da tal MPB nos próximos anos, ao lado de outro cabra de Catolé do Rocha, o saci Chico César. Duvidar quem há-de?
 

 

 

Soares Feitosa, dez anos

Início desta página

José Louzeiro