José Nêumanne Pinto
Submissão à palavra
Carlos Drummond, o poeta, escreveu que
a luta com a palavra é a luta mais vã. Pergunto cá aos botões de meu
colete se também o amor à palavra não será de todos o mais inglório.
A palavra tem caprichos, como não os terá ser humano nenhum, seja de
que gênero for. Quem a ama jamais poderá dizer, como o fez Roberto
Carlos no momento mais emocionante do show de sua volta à atividade
artística em Recife: “de amar e ser amado eu sei tudo”.
Quem por ela é amado também nunca
saberá ao certo qual o grau dessa paixão e em que súbito instante
ela poderá simplesmente migrar, como as aves de arribação e os
cardumes do rio de Piracicaba. Pois, além de piracema, a palavra é,
qual a légua de Luiz Gonzaga, tirana: não chama, convoca; não se
contenta em expelir, chega ao ponto de espezinhar. Assemelha-se
assim à bola de futebol que, parecendo fiel, é pérfida (lembra-se do
pênalti perdido por Marcelinho contra o Palmeiras?). Nem Ademir da
Guia, tema do poeta João Cabral, dela mereceu fidelidade irrestrita
Isso vale para escrever ou para falar.
Hermeto Paschoal, o bruxo albino das Alagoas, conseguia comunicar-se
nas ruas de Nova York sem falar inglês com transeuntes para os quais
nossa língua portuguesa era um mistério insondável. O maestro havia
feito um pacto com os duendes sonoros e, falada, a palavra é um
gênero musical secretíssimo.
O casal Adriana-João Falcão também é
desse naipe. O romance A Máquina, da fêmea da dupla, é um estado
permanente de namoro com a danada da palavra, um flerte explícito e
descarado. Adriana o escreveu como se cochichasse o tempo todo
dengues e chamegos no ouvido da palavra e foi correspondida com as
mesmas sutis nuances. O leitor é chamado a conviver com esse noivado
como alguém que segura uma vela, como se diz, impedindo que o enlevo
vá do tatibitate às carícias de amantes e das carícias ao intercurso
propriamente dito. Viche!
O varão do referido matrimônio, ao
levar o texto para uma arena giratória com platéia, dita teatro,
intrometeu-se nesse namoro com a intimidade de quem conhece (até no
sentido bíblico) tanto as palavras propriamente ditas quanto a dama
que as havia alinhado em manchas negras sobre o papel branco. A
Máquina, espetáculo teatral, que encerra neste fim de semana
temporada no Sesc Belenzinho, é uma espécie de missa profana, na
qual o espectador é intimado à comunhão, como se também fizesse
parte daquela ordem de íntimos viciados.
Nessa eucaristia todos se entendem. A
platéia paulistana, que nunca ouvira antes deliciosas expressões
sertanejas – como “longe que só a gota” ou uma “ruma de gente” –, as
incorpora como se fizessem parte de sua conversa rotineira numa
praça de alimentação de shopping center.
A fábula do sertanejo Antônio, que
oferece a própria vida em sacrifício para presentear com o mundo sua
amada Karina, não é apenas universal e atemporal, como as de Tristão
e Isolda e Romeu e Julieta. Ela expressa a submissão absurda que a
palavra exige dos amantes: não sete anos, mas sete milhões de
séculos de servidão - a vida inteira, o infinito, a eternidade...
José Nêumanne, jornalista, escritor e editorialista do
Jornal da Tarde, também disputa amores e favores da palavra.
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