José Nêumanne Pinto
O
prazer, origem e perdição do ser humano
A incansável necessidade de aprender
para, depois, transmitir de forma límpida e elegante o que conseguiu
captar ao maior número possível de pessoas levou o jovem Octavio Paz
a abordar o Marquês de Sade ainda nos anos de sua juventude. O
curioso e o objeto de sua curiosidade têm entre si duas semelhanças
fatídicas: ambos foram escritores importantes no panorama da cultura
universal, cada um no seu tempo, cada um com seus temas.
Mas duas fatalidades separam os dois
de forma irremediável e para sempre. Apesar de ter sua obra
divulgada, a ponto de se haver tornado um adjetivo (de seu título
deriva a família de vocábulos que definem o prazer auferido da dor,
sadismo, sádico, etc.), o francês continua sendo um escritor mal
lido. Não propriamente por ser um mau escritor, mas, certamente, por
escrever de forma tortuosa e complexa. Ler Sade não é uma tarefa
propriamente sádica, mas, sobretudo, masoquista – seus textos,
engendrados numa língua, a francesa, apropriada aos apuros da
elegância estilística, prometem as delícias do prazer físico e
terminam entregando as penas da dor espiritual. Já Octavio Paz,
mesmo escrevendo no idioma barroco por excelência, o castelhano,
escreve com precisão de relojoeiro e estilo de esgrimista. O texto
de Sade é turvo e torturado. O de Paz, límpido e harmonioso. Num
século de grandes prosadores, não é fácil encontrar quem se lhe
ombreie em deleite e profundidade.
O marquês foi um injustiçado – ou, no
mínimo, um incompreendido, pois a distância entre o que inspira a
tradição oral sobre seus textos e a forma que de fato eles têm
produziu uma mitologia que cada vez distancia mais seu leitor da
verdade que o autor quis transmitir. Já de Paz não se pode falar
assim. Se teve grande brilho, também mereceu extenso reconhecimento,
que culminou com o Prêmio Nobel da Literatura. E foi o justiçado Paz
quem fez questão de fazer justiça a Sade, dissecando sua obra,
revirando seu pensamento pelo direito e pelo avesso e apresentando-o
ao leitor da forma que conhece como poucos – simples, mas completa;
clara, mas multiforme. O marquês era um homem afável e doce, mas
pagou caro pelas perversões que descreveu em seus textos: foi preso
e maltratado, um pioneiro entre os mártires perseguidos pela ousadia
da liberdade de pensar e expressar seu pensamento por escrito, um
habitante do Arquipélago Gulag avant-la-lettre.
Talvez por haver sido um doce
intransigente, o marquês, síntese de todos os devassos, terminou por
instigar o pacífico e casto poeta mexicano ao longo de toda a sua
trajetória de escritor. Nada melhor do que Paz falando de Paz. Na
introdução de Um mais além erótico: Sade, ele deixou registrados
três paradas dessa trilha: “Por volta de 1946, descobri a figura de
Donatien Alphonse François, marquês de Sade e longínquo descendente
de Laura de Sade, cantada por Petrarca. Eu o li com assombro e
horror, com curiosidade e desagrado, com admiração e reconhecimento.
Em 1947, escrevi um poema
entusiástico; em 1960, um ensaio, um exame de suas idéias; em 1986,
outro ensaio, uma recapitulação do que sinto e penso de sua pessoa e
obra. Este pequeno livro abrange essas três tentativas de
entendimento”.
É provável que o próprio poeta, ao
lançar o livro de apenas 120 páginas em tipos graúdos sobre manchas
gráficas menores do que o padrão, tivesse esgotado o assunto. Mas
ele o perseguiu até a confecção, já no fim da vida, de uma
obra-prima de mais fôlego e maiores ambições, A dupla chama: amor e
erotismo.
Graças à devoção do editor Pedro
Paulo de Sena Madureira ao autor (que o levou a lançar no Brasil a
única tradução existente no mundo do portentoso ensaio dele sobre
Sóror Juana Inés de la Cruz) e ao trabalho competente e também
devotado do tradutor Wladir Dupont, que mora no México sem nunca
haver deixado o Brasil, é possível traçar um paralelo entre as duas
obras. É o caso de dizer que Sade prepara
A dupla chama, como este pressupõe a
existência do primeiro. No ensaio que dá título ao livro, escrito no
México em 1960, Paz já deixou claro haver entendido o que
desenvolveria pouco antes de morrer. “A sexualidade”, escreveu, já
então, “é geral; o erotismo, singular”. Segundo o poeta, “o homem
imita o caráter complexo da sexualidade animal e reproduz seus
gestos graciosos, terríveis ou ferozes porque deseja voltar ao
estado natural. E, ao mesmo tempo, essa imitação é um jogo, uma
representação. O erotismo é o reflexo do olhar humano no espelho da
natureza.
Assim, o que distingue o erotismo da
sexualidade não é a complexidade, mas a distância”. Para ele, “o ato
erótico nega o mundo – nada real nos rodeia, exceto nossos
fantasmas”. E mais ainda: “O erotismo não é uma simples imitação da
sexualidade – é sua metáfora”.
O que aproximou Paz do marquês foi a
descoberta da originalidade do francês, que consiste, em sua
opinião, “em ter pensado o erotismo como uma realidade total,
cósmica, quer dizer, como a realidade”, produzindo aquilo que ele
definiu como “uma utopia ao contrário” (“A sociedade de Sade não é
só uma utopia irrealizável; é uma impossibilidade filosófica – se
tudo é permitido, nada é permitido”, arremata). Paz o compara a
Lucrécio, Havelock Ellis e Sigmund Freud, que, de acordo com ele,
“abandona o campo da observação médica para se arriscar na
contemplação da vida como um diálogo mortal entre Eros e Tânatos”.
Seria inútil competir em clareza e
beleza com Octavio Paz. Mais por isso do que para ceder ao comodismo
de simplesmente citá-lo, reproduzo, parcialmente, um parágrafo do
miolo desse pequeno ensaio genial, por acreditar que ele resume o
verdadeiro entendimento sobre a importância da obra de Sade na
crítica sistemática do erotismo, que está presente na criação e na
destruição do ser humano.
Ele escreveu: “A supressão da
dualidade criação-destruição, melhor dizendo, sua fusão num
movimento que as abraça sem suprimi-las é mais que uma visão
filosófica da natureza. Heráclito, os estóicos, Lucrécio e muitos
outros pensavam da mesma forma. Ninguém, porém, havia aplicado com o
rigor de Sade essa idéia ao mundo das sensações. Prazer e dor também
são nomes, não menos enganosos que os outros. Essa frase é uma mera
variante da moral estóica; nas mãos de Sade é uma chave que abrirá
portas condenadas há muitos séculos. Por um lado, meu prazer se
alimenta da dor alheia; por outro, não contentes com gozar diante
dos padecimentos dos outros, meus sentidos exasperados também querer
sofrer. A mudança de signo (o bem é mal, a criação é destruição) se
opera com maior precisão no mundo sensual – o prazer é dor e a dor,
prazer”.
Isso é verdadeiro e também terrível.
No ensaio que escreveu em 1986, Cárceres da razão, Paz foi além: “o
prazer é o agente que guia e move os atos e pensamentos dos homens e
das mulheres; o prazer é intrinsecamente destruidor”. E no poema
mais antigo, O prisioneiro, escrito em Paris em 1947, Paz intuiu o
resumo de tudo num verso genial: “O sonho é explosivo. Estala. Volta
a ser sol”.
José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista
do Jornal da Tarde.
Um mais além erótico: Sade, de Octavio Paz, tradução
de Wladir Dupont, Editora Mandarim, 1999, 120 pp., R$ 15,00
Octavio Paz
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