Alberto da Costa e Silva é um
portento. Diplomata, historiador e especialista em África, que
conhece bem, como profissional das negociações externas e observador
das relações humanas, herdou do pai, Da Costa e Silva, o estro
poético e como ele está entre os maiores, os melhores. Freqüentador
de arquivos, habituou-se a decifrar documentos no mister paciente de
garimpar a verdade soterrada sob pó e fungos. Além disso, é um
leitor devoto, um crítico agudo e um apreciador da arte da escrita
impressa. É nesta condição que lança agora um novo livro, não mais
uma coletânea de poemas ou a biografia de um mercador de escravos
negros, mas a seleta de comentários eruditos, leves, irônicos e
precisos sobre livros que espicaçam a curiosidade de traficante de
emoções e saciam a fome peregrina de investigador de vícios e
virtudes de nosso débil gênero humano.
Principia Das mãos do oleiro -
aproximações com uma descrição do que era o Oceano Atlântico no
século 15, às vésperas das grandes descobertas, e de como acabou por
se transformar na via de mútua penetração de um mundo que se renovou
naquele outro, que antes para ele nem sequer havia. Era,
primeiramente, mais que uma massa de água em movimento, a melhor
metáfora para o desafio do ignoto. Deixemo-lo descrever em seu
estilo despojado e simpático: "O Atlântico era uma vasta área
mítica, cujos se limites se desconheciam, cheia de monstros e
maravilhas. E, a contrastar com o Mediterrâneo e com o Índico,
percorridos incessantemente pelos barcos do comércio, um mar quase
vazio". O pélago! Depois, contudo, se transformaria no agente de
renovação do Velho Mundo e maturação do Novo. Processo descrito com
precisão pelo autor: "A América infiltrava-se na Europa, e a Europa
começava a se prolongar na América".
O luar de Vila Rica - Europeu
americanizado, o colega de ofício de Costa e Silva Tomás Antônio
Gonzaga, enquanto poeta e não enquanto inconfidente, é claro, emerge
nas páginas do livro apresentado pela obra de Adelto Gonçalves,
reinventor do rebelde de Minas e reconstrutor da história do
degradado em Moçambique. Nessa resenha, o africanista se superou nas
habilidades de fornecedor de água fresca em caneco de segunda mão,
repassando ao próprio leitor o gosto do biógrafo comentado pela
surpresa, mas sem abrir mão do rigor de scholar. Segurando a vela de
Marília e Dirceu, figuras míticas da poesia (e da literatura) em
língua portuguesa nesta América do Sul, o leitor fala de sua leitura
como se compartilhasse com o poeta e sua musa o luar de Vila Rica.
Entre os ensaios também convém destacar Gilberto Freyre na Ilha dos
Amores, uma aula de estilo, e também da abordagem, sem preconceitos,
de um intelectual e pensador brasileiro do porte do mestre de
Apipucos.
Esta é a principal virtude do biógrafo
de Chachá, o brasileiro que se tornou soba africano a aborrotar os
porões de navios negreiros com cativos escravizados em combate na
própria terra: nesta época da exaltação da ignorância, em que os
parvos galgam postos de poder e atribuem o próprio sucesso ao
desamor às letras, Costa e Silva mostra como é excitante a aventura
do conhecimento impresso. Ao comentar um tratado sobre o Rio
imperial, que desejou possuir ao longo de meio século, ele fala de
um amor espiritual, mas se aproximando do sensual, por esses belos e
úteis objetos chamados livros. Quando o tal volume sumiu da estante
do livreiro, ele registrou haver sentido “aquela dor da ausência que
bem conhecem os viciados em livros.”
Paixão por papel - Essa paixão pela
vida, tal como ela surge em palavras impressas, permite-lhe
transmitir uma visão multifacetada, interessante e gozosa a respeito
da cidade onde mora, o sempre maravilhoso, embora maltratado, Rio de
Janeiro, em cujo porto o futuro barão do Rio Branco, patrono do
Itamaraty, casa de ofício do autor, desembarcou em 1904, encontrando
um Brasil “que começara a querer andar rápido e, em alguns momentos
a correr”. O avesso do “país moroso”, que o pai, que seria visconde
do Rio Branco, descreveu em carta a um amigo, 34 anos antes. Talvez
seja o caso de aqui deixar registrado como Costa e Silva encontra
meios para lhe transmitir informação com graça e leveza: “Quando
desceu no Rio de Janeiro, o barão do Rio Branco foi levado por uma
carruagem puxada por cavalos até a rua do Ouvidor. Cinco anos mais
tarde, Euclides da Cunha escreveria a Domício da Gama haver na
cidade 'um delírio de automóveis'.”
Atento às relações entre este nosso
Portugal americano e as versões africanas da pátria-avó lusa, o
autor também discorre sobre as relações com o Paraguai, desaguando
no Mercosul. E chega às páginas finais da nova obra aos dias de
hoje, constatando nosso destino comum numa magistral conclusão: “É
assim que existimos na história: fazendo-a, a partir do que nos foi
dado.” E o que ele nos dá neste livro é prosa profunda com leve
frescor de poesia.
José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal
da Tarde e autor de O silêncio do delator.
Das mãos do oleiro, de Alberto da Costa e Silva, Editora Nova
Fronteira, 2005, 240 pp.