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José Nêumanne


 


Do Atlântico dos argonautas ao Mercosul de hoje

 

 

 

Alberto da Costa e Silva é um portento. Diplomata, historiador e especialista em África, que conhece bem, como profissional das negociações externas e observador das relações humanas, herdou do pai, Da Costa e Silva, o estro poético e como ele está entre os maiores, os melhores. Freqüentador de arquivos, habituou-se a decifrar documentos no mister paciente de garimpar a verdade soterrada sob pó e fungos. Além disso, é um leitor devoto, um crítico agudo e um apreciador da arte da escrita impressa. É nesta condição que lança agora um novo livro, não mais uma coletânea de poemas ou a biografia de um mercador de escravos negros, mas a seleta de comentários eruditos, leves, irônicos e precisos sobre livros que espicaçam a curiosidade de traficante de emoções e saciam a fome peregrina de investigador de vícios e virtudes de nosso débil gênero humano.

Principia Das mãos do oleiro - aproximações com uma descrição do que era o Oceano Atlântico no século 15, às vésperas das grandes descobertas, e de como acabou por se transformar na via de mútua penetração de um mundo que se renovou naquele outro, que antes para ele nem sequer havia. Era, primeiramente, mais que uma massa de água em movimento, a melhor metáfora para o desafio do ignoto. Deixemo-lo descrever em seu estilo despojado e simpático: "O Atlântico era uma vasta área mítica, cujos se limites se desconheciam, cheia de monstros e maravilhas. E, a contrastar com o Mediterrâneo e com o Índico, percorridos incessantemente pelos barcos do comércio, um mar quase vazio". O pélago! Depois, contudo, se transformaria no agente de renovação do Velho Mundo e maturação do Novo. Processo descrito com precisão pelo autor: "A América infiltrava-se na Europa, e a Europa começava a se prolongar na América".

O luar de Vila Rica - Europeu americanizado, o colega de ofício de Costa e Silva Tomás Antônio Gonzaga, enquanto poeta e não enquanto inconfidente, é claro, emerge nas páginas do livro apresentado pela obra de Adelto Gonçalves, reinventor do rebelde de Minas e reconstrutor da história do degradado em Moçambique. Nessa resenha, o africanista se superou nas habilidades de fornecedor de água fresca em caneco de segunda mão, repassando ao próprio leitor o gosto do biógrafo comentado pela surpresa, mas sem abrir mão do rigor de scholar. Segurando a vela de Marília e Dirceu, figuras míticas da poesia (e da literatura) em língua portuguesa nesta América do Sul, o leitor fala de sua leitura como se compartilhasse com o poeta e sua musa o luar de Vila Rica. Entre os ensaios também convém destacar Gilberto Freyre na Ilha dos Amores, uma aula de estilo, e também da abordagem, sem preconceitos, de um intelectual e pensador brasileiro do porte do mestre de Apipucos.

Esta é a principal virtude do biógrafo de Chachá, o brasileiro que se tornou soba africano a aborrotar os porões de navios negreiros com cativos escravizados em combate na própria terra: nesta época da exaltação da ignorância, em que os parvos galgam postos de poder e atribuem o próprio sucesso ao desamor às letras, Costa e Silva mostra como é excitante a aventura do conhecimento impresso. Ao comentar um tratado sobre o Rio imperial, que desejou possuir ao longo de meio século, ele fala de um amor espiritual, mas se aproximando do sensual, por esses belos e úteis objetos chamados livros. Quando o tal volume sumiu da estante do livreiro, ele registrou haver sentido “aquela dor da ausência que bem conhecem os viciados em livros.”

Paixão por papel - Essa paixão pela vida, tal como ela surge em palavras impressas, permite-lhe transmitir uma visão multifacetada, interessante e gozosa a respeito da cidade onde mora, o sempre maravilhoso, embora maltratado, Rio de Janeiro, em cujo porto o futuro barão do Rio Branco, patrono do Itamaraty, casa de ofício do autor, desembarcou em 1904, encontrando um Brasil “que começara a querer andar rápido e, em alguns momentos a correr”. O avesso do “país moroso”, que o pai, que seria visconde do Rio Branco, descreveu em carta a um amigo, 34 anos antes. Talvez seja o caso de aqui deixar registrado como Costa e Silva encontra meios para lhe transmitir informação com graça e leveza: “Quando desceu no Rio de Janeiro, o barão do Rio Branco foi levado por uma carruagem puxada por cavalos até a rua do Ouvidor. Cinco anos mais tarde, Euclides da Cunha escreveria a Domício da Gama haver na cidade 'um delírio de automóveis'.”

Atento às relações entre este nosso Portugal americano e as versões africanas da pátria-avó lusa, o autor também discorre sobre as relações com o Paraguai, desaguando no Mercosul. E chega às páginas finais da nova obra aos dias de hoje, constatando nosso destino comum numa magistral conclusão: “É assim que existimos na história: fazendo-a, a partir do que nos foi dado.” E o que ele nos dá neste livro é prosa profunda com leve frescor de poesia.


José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde e autor de O silêncio do delator.
Das mãos do oleiro, de Alberto da Costa e Silva, Editora Nova Fronteira, 2005, 240 pp.


 



Alberto da Costa e Silva
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14/11/2005