José Nêumanne Pinto
Patativa do Assaré, o príncipe
agreste da poesia
(13 de julho de 2002, Caderno 2)
Morto na segunda-feira, era o chamado poeta matuto, algo entre o
improvisador e o erudito
JOSÉ NÊUMANNE
A poesia sertaneja brota do chão -
esturricado, quando submetido à inclemência dos longos períodos de
estiagem, ou virado barro pegajoso depois de chuva. Feito milho,
feijão e mandioca, da qual se extrai a farinha, que também nascem no
solo do sertão, ela tem lá seus aspectos nutrientes: mata a fome de
beleza no meio da paisagem cinzenta e esquálida. É épica, ao narrar
proezas de valentes. Lírica, de um lirismo pungente, quando tece
loas ao amor ou se debruça sobre a saga de uma raça que sobrevive
heroicamente em sua luta contra as intempéries da natureza, luta que
quase sempre termina em retirada, na repetição cíclica do êxodo
bíblico. É feita para a dor do lamento e o gozo do riso. O poeta
sertanejo é familiarizado com ritmos e cadências - há pouca
diferença entre poesia e canto, embora seu cantar seja monocórdio, a
palo seco, sem muita graça para ouvidos que a ele não estejam
habituados. Que não se exija do poeta perícias de esgrimista da
linguagem nem habilidades de pesquisador da semântica. Sua poesia
serve a sua gente: descreve sua vida, ou seja seu convívio com a
paisagem ou com outros viventes.
Só quem entender isso plenamente vai
ser capaz de também compreender a importância de Patativa do Assaré
na poesia brasileira contemporânea. O nome artístico adotado pelo
cearense Antônio Gonçalves da Silva é o primeiro passo para tanto.
Patativa é uma ave canora e Assaré, o lugar ermo onde nasceu, se
criou e viveu a vida inteira. Cantos de Patativa, título de sua obra
de estréia, da mesma forma, expressa com clareza o que pretende e a
que se apresenta - trata-se de um manifesto curto, que não admite
desvios nem tergiversações. O poeta, como o pássaro, canta e tem de
cantar bonito, com ritmo e precisão, além de exibir ao ouvinte as
ricas cores de sua plumagem.
Patativa de Assaré não pertenceu à
estirpe dos repentistas, cantadores e violeiros que improvisam em
diversos modos (gêneros poéticos) noites a fio para diversão de quem
se reúna para ouvi-los. Mas, sim, a um tipo intermediário entre o
improvisador de desafios e o poeta erudito, o tal poeta matuto:
compõe seus versos escritos nos moldes dos poemas clássicos com
padrões de rima e métrica bem definidos, mas usa uma linguagem
simples, quase um dialeto, com o qual se comunica diretamente com o
homem comum, o roceiro (que ou ficou no campo árido ou fugiu para a
periferia dos centros urbanos próximos ou distantes de seu lugar de
origem). Sua obra, a meio caminho entre o improviso e a elaboração
erudita, é impressa, encadernada e costurada em livros, sendo o mais
famoso deles o Cante lá Que Eu Canto cá, editado pela Vozes de
Petrópolis em 1978 e já na 11.ª edição.
Ele também é um poeta de bancada, ou
seja, escreveu folhetos de cordel, gênero ao mesmo tempo escrito e
oral de poesia, contendo narrativas de grandes feitos, casos de amor
ou simples palhaçadas em folhetos impressos pelos próprios autores
que os narram eles mesmos, como muezins que cantam as orações nas
mesquitas muçulmanas, em alto-falantes e megafones nas feiras livres
do interior nordestino. É de sua autoria uma interessante adaptação
do conto das Mil e Uma Noites História de Aladim e da Lâmpada
Maravilhosa. E de sua lavra, a saga política do Padre Henrique e o
Dragão da Maldade.
Poeta de livro e folheto, Patativa
também se dedicou à composição, musicando poemas de sua própria
lavra, alguns dos quais se tornaram grandes sucessos de público -
como foi o caso de Triste Partida, na voz de Luiz Gonzaga, e Vaca
Estrela e Boi Fubá, uma de suas toadas gravadas pelo amigo,
conterrâneo e grande divulgador Raimundo Fagner. A composição
musical, bem diferente do improviso poético dos violeiros, foi seu
jeito de romper os limites do desprezo e do desconhecimento das
grandes platéias urbanas em relação à incompreendida poesia matuta,
gênero do qual foi tão príncipe (como se dizia antigamente dos
melhores poetas) quanto Seu Lua foi Rei do Baião.
José Nêumanne, jornalista e
escritor, é editorialista do 'Jornal da Tarde' e autor de 'Solos do
Silêncio - Poesia Reunida'
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