Jorge Pieiro
O outro dono do fim do mundo
Malaquias
escorre pelas noites. Pedras, ouro, cartas, desespero. Carrega
fantasmas sobre os burros. Há mais sombras e sons pelas trevas.
Acredita ter finado em tempos idos a mancha de uma sombra. Deixara
para trás o vácuo da notícia. Mas, desta vez, depara-se com o cão. E
abandona pedras, ouro, cartas, o desesperado, como fogem a galope os
burros pelas quebradas e moitas e monturos de pavor. Dez dias
perdido no senso. Sem saber como, sente a mão ressequida de Belinha.
Belinha? É você?
Belinha, eu vi o diabo...
Se acalme,
homem. Isso é tresvario.
Eu vi, Belinha.
Medonho. Na noite, aquilo nas trevas do fim do mundo. O diabo
descamado. Duas brasas arregaladas nos olhos. Os chifres... Aquilo
sim era o demônio, Belinha...
Besteira,
Malaquias. Você nunca fez nada para ter essa sorte...
***
Anda pela noite,
Malaquias é o silêncio vagando. O chão seco parece uma esponja
absorvendo o medo qua agora clama no baticum do coração de Malaquias.
Há tesouro em suas mãos.
Dinheiros,
tesouras, réstias de botijas de um velho Estácio mandadas para
outras vivendas. Cartaz, cruzes para os próximos mortos, dentaduras
e lampiões... No meio da noite, Malaquias não fala o que pensa. Pode
o diabo ouvir a sua voz...
***
A casa estala
com o sol nas telhas. Belinha escurece a vista, enquanto bebe a sopa
fraca de carne de garça. Não vai nunca mais vai ser quenga de novo.
Adora Malaquias como seu rei ou seu Deus.
***
Outro dia. Ele
chega, um andarilho vestido de cinzas. Não há muita água para
retirar o peso da noite e da terra dos ombros. Belinha se aproxima.
Os olhos rachados é o chão perto do riacho, reabilitam uma faísca no
dentro mais dentro da pupila. Malaquias resmunga os restos da noite.
Dessa vez não vi
o diabo!
Você é um anjo,
Malaquias...
Cismo que vai
acontecer uma grande dor...
Não é maior dor
eu viver sozinha?
Morrer é assim
mesmo, a gente teve de nascer.
Malaquias, tenho
tanto medo... Essa fome que não acaba nunca...
Vai mudar,
mulher, vai mudar. Nem que seja no pior!
Não diga isso,
homem.
É assim a nossa
sorte, não é? Assim que vai acontecer.
Amém.
Resmunga seu
amor por Belinha. Ela consente. Acende a lamparina, a fumaça tisna a
parede já marcada. O amor bruxuleia.
***
Pela madrugada,
Malaquias novamente se espanta.
A volta pelo
mundo dos segredos atinge em cheio o pensamento de Malaquias. A
dúvida, o sacrifício. Sozinho por esse mundão, deslizando feito uma
cobra venenosa na escuridão, carregado de recados, sonhos e
encomendas, atrelado aos seus dois burros, pesados e atravessados
pelo tempo. Também vale a sina para Belinha no meio da secura,
solitária, garça desgarrada do bando, e por isso mesmo exposta às
mãos do destino. Quando há solidão, Belinha enche o silêncio de
bichos, olha a resistência das nuvens em se formar, arde ao sol,
lagartixa sem nenhuma acrobacia. Quantos dias, meses, exausta-se no
ermo daquele caramujo? Quando Malaquias chega, mais que apenas o
Malaquias, pele-terra grudada no corpo, faz um trejeito, um esgar,
recomendado como um sorriso de felicidade. É a vez da terra. E
Malaquias aduba aquela terra árida, planta a semente meio morta,
fraca indesejada pela má-sorte. E Belinha enruga mais ainda os
olhos, esquecida de todas as agruras. Malaquias é o seu homem, seu
anjo, seu diabo de amar.
***
A noite passada
com Malaquias, Belinha tivera um pressentimento bom. Esquecera a
fome, o medo, a solidão. Malaquias tinha um brilho diferente na
testa, os olhos. Pouco sabia dos segredos, mas sentira o choque da
vida, a grande explosão dentro do útero. Sim, Malaquias seria pai
pela primeira vez e, com ela, viveria um instante de alegria. No
retorno, abrira-se para o homem.
Malaquias, estou
cheia.
Fala sério,
Belinha?
Deus vai me dar
outro anjo...
...
Ele escuta, coça
a cabeça. Abraça Belinha. E deixa um cisco cair dentro do olho,
ferindo o espelho da alma.
***
O menino cresce
no seco. Uma cara de cachorro. Grunhe, somente. O gesto engraçado de
um duende no meio da caatinga. Ama os urubus. Cria um, Drã, assim
acostumou a ave dos cadáveres a vir até ele para comer carne de
calango morto na antevéspera com um caco de vidro. Marroquin tem nas
caudas vivas a maior diversão. Belinha tem pena de Marroquin.
Enche-o de mimos rudes. Malaquias sofre. Não se encara com o menino.
Na aparência dele, parece que vê o cão de novo. Desgosta quase por
isso de Belinha. Ela sente a trave no coração, esticando a dor. Mas
não fala nada. Desde que Marroquin nasceu, Belinha não fala mais
nada.
***
Malaquias quase
não vai mais em casa. Belinha e Marroquin se abandonam ao silêncio
do sol. Esta noite, Malaquias sente o peito apertado. Noite de gelo
na alma. A coruja rasga o pano do céu a gritos. Folhas secas dão
motivos de espanto. A noite está diferente. Malaquias anda como se
estivesse de olhos vendados. Os passos afundados vão macios,
medrosos, em versão de calúnia e remorso. Neste instante pensa em
Belinha, somente em Belinha. Reza por ela. Belinha sonha em casa,
beliscada pela oração de Malaquias. Ele não se lembra, nem quer
lembrar de Marroquin. Belinha acorda chorando um córrego de areia,
que seus olhos não tem mais aquele mar. Marroquin se remexe no chão
onde dorme, pois é ali que prefere trocar sementes com a terra. A
noite é comprida nesta noite. Malaquias encosta-se para descansar. A
respiração atropelando o pensamento. Belinha sua. A fome comprime
seus nervos. Pressente. Marroquin grunhe. Parece sonhar. Parece
ensaiar um riso pelo canto da boca, mais próximo a um esgar. Se se
pode compreender, há felicidade dentro daquela cabeça desafinada,
naquele instante. Agora, nesta hora exata em que uma luz queima a
escuridão no meio do mato e parte para cima de Malaquias. Ele sente
a urina inundar a perna. As pernas apodrecem, enquanto um gosto de
poeira passeia pela língua. Malaquias fecha os olhos. Mais a
claridade aumenta. Belinha, de tristeza e dor desfalece os sentidos.
Marroquin grunhe de felicidade. É mesmo uma aura de felicidade
pairando no instinto do louco. No meio desta noite, Malaquias se
defronta pela segunda vez com o demônio. O bicho com a cara de
Marroquin, um pesadelo, uma sombra, mas não é Marroquin é o diabo
medonho beijando a face de Malaquias. O pavor é uma grande dor. Ele
vai se encontrar com Belinha no lugar dos desmaios. Marroquin se
aquieta. A coruja rasga o céu de uma vez por todas. A noite chega ao
fim. Chega a mordida da manhã com um gosto de salitre e dois faróis
acesos nos olhos esbugalhados de Malaquias. Recupera a última força
e se impõe à velocidade dos desesperados.
***
Malaquias?
Malaquias? O que aconteceu?
Belinha espreita
esse grito quando vê seu homem se aproximando, um trapo, o fim do
homem. Malaquias vem acompanhado de olheiras acesas, as roupas
rasgadas. As mãos ainda tremem. Belinha agarra-se com ele. Carrega-o
para dentro de casa. Por aquela boca não sai nada.
Malaquias,
Malaquias, o que aconteceu?
***
Marroquin
acompanha a confusão à distância. Aperta seu Drã, como se soubesse
da hora. Sai correndo sem olhar para trás. Atravessa o leito seco da
lagoa, mira a serra por detrás, pisa na terra vermelha a pés largos
e enfrenta o vento com uma coragem de Deus. Há pouco, encontra os
olhos na cidade.
***
Malaquias
maquina, Belinha desacredita. Ele chuta a porta, o barro do pote, o
sol na terra, o piso do vento desacreditado. Enferruja o silêncio.
Belinha se desativa no canto do chão. Nunca vira Malaquias tão
diabo. Os olhos encarnados, os pêlos arredios, as mãos crispadas, a
secura na garganta, o defronte do delito. Em direção à Belinha,
dá-se sem se aperceber ao benzido e se apaga de senso. Começa a
chutar Belinha, amaldiçoando o sol, o vento, o céu, Deus. Culpa
Marroquin perdido lua-sol afora. E chuta Belinha, chuta o trapo, o
molambo de carne seca, a dor engolida de Belinha, até que de nada
mais só é dor o pé, a perna, o corpo, a cabeça, o desespero...
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