Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

José Aloise Bahia


 



As trilhas de Wilmar Silva

 



 

O título é uma expressão digna das melhores temporadas e iluminações em qualquer tipo de inferno astral. Uma palavra impactante e que vale ser realçada e repetida. Um lugar ermo e distante, de difícil acesso. Cafundó. Em Cachaprego (anomelivros, 2004), décimo primeiro livro, Wilmar Silva trilha um caminho imagético sem volta em suas teias e ramificações. Com excelente ensaio fotográfico de Sandro Vieira, o dinamismo do autor mistura todos os sentidos e qualquer tentativa de enquadrá-lo num sistema convencional na poesia. A mesma independência, autonomia e estranhamento aparecem nas marcações acústicas contundentes, redes de palavras animadas e pulsantes, num estilo eloqüente, enlaçado, sem o uso de pontuação e onírico em Anu (Orobó Edições, 2001), primado pelo grafismo estético e as inquietações dos vocábulos estruturados em quadros-negros.

Nada é manso na poesia de Wilmar Silva. Com a força de um touro em seus movimentos e a obstinação crônica por algo escondido no mundo das coisas, sons, paisagens e semblantes, resplandecentes nas raízes do escritor - o qual lançou também o CD V (EVProduções e anomelivros, 2003), com poemas musicados por Jorge Dissonância -, Cachaprego imprime uma articulação rápida e encadeada de sentenças num ritmo melódico alucinante. O fluxo lírico é contaminado pela procura incessante da forma mais plástica, capaz de traduzir os anseios e retalhos de uma imensa colcha em profusões de palavras e mais palavras. Retroalimentadas com tiras e espasmos contaminados, presentes numa amálgama com a intencionalidade, que visa a extinção do próprio signo - um recurso da arte conceitual - para a construção de novos sentidos da linguagem, desfazendo-se de um sentido primeiro para instituir um outro, devolvendo a palavra a sua unidade estética e primordial que tem a origem no seu suporte: o branco vazio da folha de papel.

O alinhavar do vocabulário, sempre em minúsculo e sem ponto final em todo o conjunto narrativo, parece questionar a todo o instante: como prosseguir o movimento? Mesmo que os traços expressivos e imaginários, nestes mais de 20 anos de vida literária, já tenham sido tangenciados e, além do mais codificados num sistema próprio e original.

Soneto Desprendido - O poeta tem noção da complexidade da obra. Tão ciente que usa 14 linhas em versos livres na parte superior de cada folha - deixando os outros ¾ em branco à imersão e respiração dos leitores -, para em seguida recompor o soneto desprendido em letras e fontes na cor verde. Uma escolha madura, pois o simbolismo remete as raízes e mediações do marrom telúrico, perpassando pelas tonalidades vermelhas e amarelas do fogo, desaguando no azul do céu. O verde presente nas plantas, representando a cor da renovação da natureza, símbolo da vida, esperança, longevidade e imortalidade.

Eis a alquimia cromática expressiva, translúcida, tangível e digna para uma tentativa e resgate contemporâneo do soneto em suas dobras e plenitude. Pois a composição extravasa e segue como uma flecha em seu curso sinuoso, parecendo arrebentar todos os ventos vacilantes e sopros de linguagens. Derramados numa cor restauradora, predispondo e conseguindo manter até certo ponto os limites do soneto. Na verdade, o uso do soneto e da cor verde demonstra uma tendência que ousa procurando. Um desafio. Um problema. Uma instabilidade. Ecoando a mistura de sons com a voracidade de um lobo em meio a uma alcatéia desvairada.

Os contrapontos em relação à narrativa são as fotos coloridas na capa e últimas páginas, em preto e branco na contracapa e início do livro, documentos que reforçam e remetem às faculdades intelectuais dos leitores para o contexto de origem familiar de Wilmar Silva, o meio rural da cidade de Rio Paranaíba, Minas Gerais. A simbiose dos sonetos em letras verdejantes e a máquina fotográfica realçam a identidade do poeta com o ambiente e as personagens centrais da sua epopéia. A ternura das imagens, paisagens, olhares e a presença de um arco-íris retratam a migração do pensamento conceitual da terra para o infinito, e consubstanciam uma orientação transcendente e elaborada na edição de Cachaprego.

Protopoesia - A radicalidade, coragem, energia e vocação do livro encontram-se na selvagem e brutal apropriação, sem leviandade e complacência, de um eterno retorno às primícias espinhosas da experimentação criativa. Aliás, caminho já trilhado bem antes por Wilmar Silva em Pardal de Rapina (Orobó Edições, 1999). Onde os ritmos dos versos aparecem de maneira mais indicativa, não menos impetuoso. Porém menor em intensidade, ferocidade e dilacerador do que em Cachaprego, o qual é caracterizado por sua lógica própria, à primeira vista linear na concepção, entretanto com uma temporalidade particular, cujo rigor e vigor estão no entranhamento generoso de regresso a uma etapa anterior, estimulando a constituição de uma certa protopoesia, repousada no mundo da intuição e do instinto puro, dotados de razão e ética próprias.

Uma protopoesia autêntica e visual - sem as algemas deterministas e exigências convencionais -, próspera, reveladora e vinculada a uma liberdade singular, consciente e responsável, não negando a sua genealogia, o mundo real e natural, todavia batizada na fonte do existencialismo, carregando a sua condição humana, reconhecendo alguns limites, e na sua batida e encalço, não tendo qualquer deus, deuses ou sistema fixo como modelo de orientação.

Cachaprego, em seus emaranhados e melodias, representa a construção contínua e a afirmação da linguagem autoral, configurada pelas presenças constantes do pronome pessoal eu e o conetivo e. Acrescentando ao seu tempo interno mais e mais componentes, provenientes de uma territorialidade própria e obstinada: um manuscrito e autopoética com atestado de nascimento, alicerçada em algo inacabado e adicional, uma progressão que nunca termina, prometedora, dentro dum processo ativo, exigente e sem procrastinações, localizado num labirinto temporal, propicio à reflexão e acerto de contas com um passado bem presente, marcado pela oportuna compleição de um minotauro enfurecido pelo lugar, telhados e paredes desgastadas e suas passagens estreitas, que já não suportam o estrondoso ruído, choque de sílabas e contaminações híbridas, e a inevitável procura de um corredor de mão dupla, uma ponte, portas, janelas e aberturas mais amplas, para não cair num beco sem saída.

Pregnância - O interessante também está no fato desta protopoesia almejar uma gramática e geografia intrínsecas. Tira-se a palavra de sua interpretação primeira e a desloca para outra dimensão - da pregnância -, sendo o corpo/espaço e o pensamento do poeta a isca necessária para que a foice e a enxada possam abrir caminho na terra, lançar sementes e fertilizar a língua, a qual parirá, em seu tempo próprio, a colheita de sujeitos e objetos, aglutinações, neologismos, metáforas encarnadas e nervosas, efeitos verbais e sonoros, novos significados e a crença florescente de que no encontro do ser com as palavras existe uma voz afirmativa, energética e emancipada.

A língua atada a um xamã, investigador e mediador, numa eterna cerimônia de revigoramento onde tudo está interligado nos meandros da superfície dos fenômenos físicos, químicos e corporais. Cabendo ao poeta assumir o papel de agente e variante catalisador/mapeador de todo e qualquer tipo de mudanças de estados de espíritos em si e no mundo das trocas simbólicas, mesmo com os impedimentos normatizados do idioma em suas convenções e gramática oficial.

Imortal pela Tentativa - As teias, trilhas e ramificações por onde passam Wilmar Silva, na qual começo e fim estão sempre em lugares intercambiáveis - decorre disto parte do hermetismo e o labirinto de Cachaprego -, sob a regência fecunda, predispõe e faz enxergar a partir da região campesina, a ansiosa e colérica busca, num tatear cintilante da universalidade concreta. Com sua paixão estética primorosa, as metamorfoses necessárias dialogam a todo o momento com a herança, o patrimônio, os repertórios e abrigos da linguagem, e revelam um esforço sem igual na construção da prosa poética para evocar as imagens incisivas e sinestesias possíveis, capazes de traduzir o pensamento e a imaginação.

O conjunto e as combinações das palavras são surpreendentes no método peculiar e fôlego do autor para alcançar a parte no todo e o todo nas partes. Captadas no exato momento e estágio tensional que dão significados à expressividade e pulsões de vida e morte que alargam horizontes, e rasgam atalhos sem escoras mesmo que persistam algumas desesperanças ou sentimentos indizíveis, como chama a atenção o fragmento do livro: “boca onde procuro um açude piscoso na lâmpada que me enxerga de longe através de árvores as sombras de minhas pálpebras onde moinhos de sobrancelhas arremessam eu todo calado e meu mundo mudo eu com minha lanterna presa dentro de meus olhos e dentro de minha boca uma palavra impronunciável como o amor”.

Semelhante a Ezra Pound, retratado por Peter Ackroyd, em estado bruto de provocação diante do caos e à procura de formas e estruturas – saturado, subversivo, animalesco e polífago ao sorver e exaurir até a última gota da seiva contida nos sonetos desprendidos -, incluindo todo uma gama de emoções conturbadas que nunca aprendeu a compreender ou a controlar adequadamente. Enfático e pleno na primeira pessoa, um eu incontido, a perseguir uma fenda ou vaso comunicante, em meio ao contraste da relva e nuvens carregadas, dédalo estampado numa corrida sem tréguas e freios até não ficar claro onde as máscaras terminam e o homem começa.

Cachaprego é um inventário privilegiado pelo seu caráter migrante. Um convite para caminhar pelas trilhas de Wilmar Silva e a sua saga de palavras cinéticas, telúricas, sedentas, atomizadas e grávidas. Iluminações para uma criação destemida, elaborada e intrigante. Dedicado de corpo e alma à poesia, o poeta inscreve a impaciência que obceca, sem nunca renunciar à vereda da descoberta: vital no estranhamento, cerebral na procura pelo esclarecimento e imortal pela tentativa.

Trecho do Livro Cachaprego:

eque abandono sob o lenço de borrach as engendro oscãotaventos a esmo cear os gemidos afelfosco a flecha flehcad na fachada do facho a cozer o talher na espuma do barro meado a jarratatacas meu atalho com os deods que furem os dois olhos a pó seco e duasas bagas que voem em suas penas suspensas e partidas e que alcem o girto do ventoviscoso a grunhir ciogarras incediasdas nanuca emesmoagora com a xícara vazia com aza vazando o zunir a zíper zoado eu calo calejado amaisenem sumo torcido em pano peço o mais que faço é medrar o restos canibais de minha vida varrida a hímemshienas e camaleoa quadrante atinge o olhoda cara domeio surdo de esquecer oque trás na bagagem embornais desbotados de farinha podre e pedaçoscrus de ananás sem polpa que desfolham sobre os tablados a pregos que meamparam na cadeia das tempestades e mesmo que auzlassem meus olhar e tingissem de vênus meu lado de fora o que façoeu com os arranjos lá de dfentro e mesmo qe a corpau brasxzil a véunus colora pontaponta todas crosta o que faço com os nós de floemas láa imos


* José Aloise Bahia (Belo Horizonte/MG). Jornalista e escritor.
Autor de “Pavios Curtos” (anomelivros, 2004) e  “Em Linha Direta” (no prelo). josealoise@aol.com

 




Leia a obra de Wilmar Silva

 

 

 

 

 

28/09/2005