José do Vale Pinheiro Feitosa
Múltiplo solitário
Há um caroço de milho na calçada. É
visto e amarelo. Perdido na malha das pedras portuguesas, brancas e
pretas, e Carlos o viu. Quem na Rua da Glória segue, uma multidão de
gente, comércio, ambulantes, sebos nas calçadas, papéis e chicletes
agarrados ao piso. E percebe um caroço de milho, tem em mente aquilo
que está por trás da semente. Tem a perspectiva do milharal, da
fantástica explosão de eventos que aquele simples caroço contém.
Entre gente, desviando-se, interrompendo-se na caminhada, uma banca
de camelô, coisas espalhadas pelo chão, uma esquina suja, prédios
decadentes, mendigos, a maré humana das cidades. Carlos subiu a
escadaria do Metrô da Glória contrariado. Havia se enganado de
estação, ao invés da Cinelândia, por descuido do mergulho na leitura
da Play Boy, descera na Glória. Para não gastar mais uma passagem,
subiu a escadaria e marchou no rumo do Passeio Público.
Quem de um caroço de milho enxerga a
árvore inteira, logo se apercebeu. Há uns duzentos metros, o sol
dourava os cabelos de uma jovem alta, magra, calças jeans
salientando a bunda de tulipa. Na mesma direção que ele, cruzava a
esquina e começava a entrar na rua da Lapa pela calçada da direita.
A estreiteza da calçada funcionava como uma passarela de modelos, a
barriga esguia, o talhe elegante, os cabelos ondulando ao andar,
havia tantos eventos prestes a acontecer no corpo daquela mulher e
Carlos, da distância em que vinha, estava com as batidas do coração
a mil. Não adivinhava, o doce balançar da cintura multiplicava
realizações no rapaz, ele e sua timidez, a pouca beleza, espinhas,
barba rala, cabelos longos e desgrenhados. Nem as tradicionais
medidas de defesa funcionaram no ar que o Carlos respirava como se
quisesse toda a atmosfera de um só ato. A timidez, uma das suas
defesas, media-lhe os passos apressados em destino do corpo que
azougava todos os olhares, mesmo que de outras mulheres, na velha e
puta rua da Lapa. Um sonhador por resguardo, não queria sofrer as
decepções que o estado permanente da beleza parca lhe ofertava. Mas
Carlos era outro, como um carro de polícia em perseguição de algo,
assoviava um samba de Zeca Pagodinho, entrecortado pela pressa de
ter cada vez mais perto de si os cabelos de ouro, longos, finos,
brilhosos, tramas de uma malha de pescá-lo.
As falhas das pedras da calçada,
dobrando os pés, pisando alguma poça de água, dejetos de cachorro,
mas Carlos deslizava sobre um tapete de rosas. Deslizava pela trilha
dos desejos, dos lábios úmidos, das partes que se juntam para sugar
e nos extrair o sêmen das florestas, a multidão do potencial guarda
um ao encontro de outro. Nem as tabelas dos botequins, os pratos do
dia, as promoções, o vai e vem dos comensais, formavam quadro
interrupto para os passos de Carlos na rua da Lapa em trajeto da
mais linda traseira que jamais vira, em coreografia andante a menos
de cinqüenta metros, cinqüenta metros menos um de cada dois passos
de poucos segundos. Menos um e mais uma fantasia nas alças da blusa
de tecido fino, branco como nuvens, modulante como elas, espáduas
que prometem asas de andorinhas, da qual emerge reto, absolutamente
simétrico, largo na base, cinturado ao meio e abrindo-se ao final,
depois de carregar de baixo a cima, um canal colunar estreito pelo
qual sobem os melados hormonais de Carlos, pescoço de paixão. Os
olhos não poderiam se desviar da nuca, os cabelos eventualmente
levantados pelo vento que vinha da Glória, uma ou no máximo duas
vezes, deram o senso de eternidade para Carlos que vira a depressão
do occipício. Sabia que era neste ponto que os odores das mulheres
prometem multiplicidade e desideratum. Nada mais havia, esquecera-se
de toda a riqueza que transita pela rua da Lapa, era ele um todo
concentrado em si para daí se projetar na moça. Na verdade nem era
mais ele, era apenas uma seta em sentido do corpo balançante que
enfeitiçava o ar à sua frente em menos de vinte metros.
A igreja da Lapa, de uma só torre, não
existia, a moça por ali passava, mas os monumentos históricos nada
são que passado, passeio, ido, foi-se. Carlos era aqui e agora,
feito um foco de luz, como o cogumelo de uma bomba atômica. Por duas
vezes vira uma fugaz silhueta de um rosto lindo que não precisava
ver, o traduzia pelo corpo que se manifestava e pela face sorridente
e fixamente prolongada dos passantes que vinham em direção dele e
assim ficavam tão logo cruzaram aquela Diana que nascia bem ali no
meio da Lapa. Por muito que a negativa lhe roubasse coragem antes do
fato, Carlos era pura resolução. Jamais se sentira assim, como se o
desejo dele já tivesse antenado no dela, como se cada movimento de
corpo fosse um linguajar de uma língua que só ele entendia e para
ele falava. O mais impressionante da visão dela era que à proporção
da redução das distâncias entre os dois, mais a acuidade valorizava
suas curvas, seus brilhos, seus movimentos. O sinal de trânsito
ficou verde e como um chamariz a moça atravessou e chegou na calçada
do Passeio Público. Para felicidade de Carlos que já vinha tão
perto, ela parou rapidamente próximo a uma banca de jornal, de
relance prestou atenção em alguma manchete mas logo continuou o
passo. Na ocasião a sua bolsa caíra, Carlos já estava bem ao lado
dela.
Nunca Deus lhe dera tamanha
oportunidade. Ela parou para abaixar-se em busca da bolsa. Para
Carlos foi como se dissesse, agora começamos a nos entender. Ele se
adiantou e se abaixou lentamente para eternizar o momento. Com
precaução, tanto para não precipitar equívocos, como para não
desvelar sua própria escassez de beleza. Lá com as mãos já
envolvendo a alça da bolsa dela, pelo canto dos olhos viu o mais
lindo rosto que nem aquele corpo de promessas havia prometido igual.
Quase se desfalecendo foi subindo de andar como que por estágios.
Primeiro os olhos verdes, depois os lábios carnudos e lacustre, em
seguida um queixo de carinhos, acima uma testa de luz em arco
perfeito a razão dos cabelos que se repartem de cada lado. Ela lhe
sorriu, desmanchando a distância que os separava. Carlos afinal
chegou-lhe à altura, ao todo do momento realizado, era simpática,
não se furtava de flertar com ele mesmo depois que a bolsa lhe havia
sido devolvido. Mas em Carlos há o interrupto.
Um cheiro de merda. Penetrante,
dominante, envolvente. Carlos estava num fog de fossa, um asco que
lhe derretia o ímpeto por aquela beleza única. Mas agora no centro
excremental dos acontecimentos, que aquela mulher degenerava-se. De
súbito uma palidez tomou conta de Carlos, os ombros se abaixaram, os
braços se arriaram, a vontade e o desejo se foram. Aquilo que fora
uma explosão sexual, afinal se reduzira, apagara-se sem a placidez
da pós-ejaculação. Carlos definitivamente se desinteressava pela
mulher, que percebendo sua decepção, logo tratou de seguir adiante
pela calçada perdida.
O impacto fora tamanho que Carlos
ficou parado olhando-a mudar de calçada em frente à Loja Americana,
a antiga Mesbla e desaparecer entre as barracas de Camelô.
Desaparecera para sempre. Mas o fedor de merda, não. Carlos tomou um
susto, pois era natural que tivesse desaparecido com ela. Mas no
entanto, algum tempo depois continuava tão vivo e presente quanto
parecera em razão dela. Numa dúvida de perda fatal, Carlos se
dirigiu para um fiscal do ponto de ônibus que ficava à frente e
perguntou:
- Que cheiro de
merda é esse?
- O quê? Cheiro?
- Sim esta coisa
que cheira mal e que não se acaba.
- Cheira mal?
- Sim! Este fedor
de merda.
- Ah! É esta
planta. A flor de macaco. Fede prá dedeu.
- É!?
Carlos terminou a pronúncia do "é" com
a voz quase se apagando. Olhou de volta o destino da mulher e teve
vontade de sair correndo feito maluco ao encontro de coisa alguma.
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