José do Vale Pinheiro Feitosa
Jesus foi ao paraíso
Felicidade otimizada – versão 2050.
Nas encostas de
Santa Teresa escorre mais história que águas de enxurrada.
Jesus, décima
geração carioca de família mineira para assentar, no Escondidinho,
vida na cidade. Rio Comprido, o bairro; Morro dos Prazeres, a
vizinhança.
Jesus
identificava no prazer, a doutrina da elite. Levou o Rio à partição,
entre arcaicos e pós-humanos. Ele, um ser arcaico. Ser pós-humano,
só adivinhando. Não havia contato entre eles.
Prazeres,
conquista dos pós-humanos. Da vida, pelo desenvolvimento da
tecnologia. Corpos pós-humanos, distintos da classe de Jesus.
Realizado upgrade dos sistemas biológicos, quando Jesus, permanecia
igual ao seres antigos. Os pós-humanos já não eram seus corpos,
enquanto Jesus, sujeito à escassez, fazia história para superá-la.
Seres turbinados, usavam o corpo igual um carro de luxo. Jesus e sua
classe, conquistavam equilíbrio entre assimetrias da vida e a paz
interior. Seres pós-humanos, mundo conquistado, intimidade difusa,
prazeres da vida.
Não bem por
acaso. Uma chance em milhões. Era comum os pós-humanos excursionarem
pelo centro do Rio. Curiosos, em gôndolas móveis, refrigeradas,
isolamento acústico; nos olhos, a alegria de zoológico.
Eventualmente, saíam do isolamento, mantendo contato com os
arcaicos. Experiências supremas. Sensações, decantadas nos recolhos
dos pós-humanos, da Barra, Recreio e parte de Jacarepaguá.
Turismo por quê?
Contradição da conquista. Mundo virtual, não se sabia por que,
embora de infinita variação, tinha ranço de repetição. Travo,
reduzindo imprevisibilidade. Terapeutas recomendavam passeios
turísticos. Novas práticas incorporadas ao acervo virtual.
Descobrira-se que o contato físico, mesmo breve, apenas toque,
ampliava a experiência.
Jesus, pela
histórica Barão de Petrópolis, chegava à Rua da Estrela. Ia ao Largo
do Estácio, cantar sambas, longos fraseados, misturando rap, funks,
variado improviso. Na praça Condessa Paulo de Frontin, o Metrô.
Quando punha os pés na praça, veículos de pós-humanos estacionavam.
Guardas armados, ocuparam pontos estratégicos. Crianças arcaicas
careteavam, provocando olhares admirados nos pós-humanos. Jesus,
acostumado àquilo, seguia, indiferente, ao metrô. Na escadaria,
sentiu uma mão no ombro. Virou-se. O olhar de felicidade de uma
linda moça. Invés de se indignar com o utilitarismo do gesto, abriu
largo sorriso. Os olhos, estreitando-se, penetravam intimamente a
mulher. Ela jamais experimentara algo igual. Porquanto, deixou, com
Jesus, um cartão nano-eletrônico.
Se Jesus pusesse
o dígito sobre o ícone dela virtualmente se conectariam. Jesus
precisaria de Cyber Café. Ela tinha conexão cerebral. Imediato no
ambiente captado pelo cartão nano-eletrônico. Jesus sentia-a de modo
difuso, imagem virtualizada por óculos especiais. Ela, sem
intermediações.
A sessão de
música terminou, foi a um Cyber ali mesmo no Largo do Estácio.
Conectou-se com a moça.
Ponto neutro.
Zona Sul, Maria Angélica, quase esquina da Alexandre Ferreira. Jesus
encontrou-se com Madalena αβ. Alfa, versão amigável com arcaicos.
Beta, possibilidades secundárias. Versão especial de engenharia
reversa dos sistemas biológicos. Design, poucas unidades no mercado.
Tinha contradições. Tendia para a arcaica unidade entre ser e corpo.
Unificando-se, propendia para a historicidade da vida. A engenharia
molecular projetara-a para ter mobilidade, flexibilidade e
longevidade. Substituídos arcaicos sistemas biológicos por outros
otimizados, mais agradáveis, duradouros, sem panes, moléstias e
envelhecimento, a história não mais existia. A vida, aproveitar,
gozar, ter prazer. No erro nato, o encontro entre Jesus e Madalena
αβ.
“Sei tudo
sobre vocês”. Madalena αβ, procurando o mesmo olhar de Jesus na
entrada do Metrô. “Eu, quase nada, sobre você”. Jesus,
ignorante, confessava. “Como não sabe? Meus professores diziam
que a opção de permanecer como são era de vocês mesmos.”
Madalena, precisa, questionou. “Nossa, sim. Mas opção, não. Não
temos grana para upgrade. Mudança cara. Manutenção impraticável para
a maioria.” Jesus, com razões econômicas. “Mas novas versões
são criadas todos os anos, pessoas se modificando.” Madalena,
otimista. “Ilusório. Os que puderam fazer upgrade mudaram de
nível, inatingível para quem não o fez até então. A barreira entre
nós e vocês elevou-se muito. Desde essa separação, mais ninguém pôde
ultrapassar o muro que nos separa.” Madalena αβ pegou na mão de
Jesus e o levou para o carro.
Entre a Rua dos
Mineiros e a Ladeira dos Africanos, janela para a Baia da Guanabara,
Jesus e Madalena αβ tocavam-se continuamente. O carro, deixado no
estacionamento do metrô em Botafogo. Movimento de corpos,
fenomenais. Jesus completava-se nela. Madalena viajava em delírios
de prazer. Orgasmos múltiplos, jamais a exaustão. Jesus, nada
assemelhado vira. A pele da moça se transformava no curso do prazer.
Ora ampliava escalas térmicas; noutras o brilho acentuava-se; a
textura se multiplicava, de aveludado ao úmido, áspero ao liso;
trocas energéticas como pulsos de choques; aderências qual ventosas.
Madalena αβ lhe dissera. “Minha pele é proteção da integridade e
canal de comunicação íntima e prazer.” Jesus esgotou-se, suado,
deitando-se de bruços com os braços arriados abaixo da cama,
respirando agitado, o coração acelerado.
Madalena αβ
circulava pelo quarto auto-acariciando o corpo nu. “Meu sangue
tem a versão mais avançada de respiróticos. Minhas reservas de
oxigênio chegam para 24 horas. Assustei-me ao sentir o funcionamento
do teu coração. Um pulsar sedutor, mas se manifesta qual sensação de
abismo. Como se a qualquer momento, se abrisse enorme poder
desagregador.” Jesus, com a boca ressecada pela respiração
apressada, balbuciou com esforço: “Sem
coração..respiração...cansaço.. exaustão...deusa...desigual...” “Sou
vida otimizada, jamais sangrarei, pois minhas plaquetas são milhares
de vezes superiores às tuas, meu sistema de defesa é o que tem de
melhor no mercado, os softwares dos meus glóbulos brancos têm
capacidade para deletar qualquer vírus, outros micróbios ou venenos
existentes. Minha pele, pulmões e aparelho digestivo estão
bloqueados para qualquer substância potencialmente tóxica. Meu
sangue circula por células energéticas, não preciso da bomba
cardíaca...”
Jesus, após
descanso, levantou-se. Madalena αβ, aproximou-se de modo sedutor.
Continuaram se amando.
O dia amanhecia,
quando Jesus, esgotado, adormeceu profundamente. Por volta de 18
horas acordou. Não mais a encontrou. Tomou banho e foi para um Cyber
na Gomes Lopes. Conectou-se com ela, propondo contato presencial.
Ela, excitada, desejou relação sensual, em meio virtual. Jesus,
contrariado, desejava-a feito paz interior, aceitou a proposta.
Constrangido, numa área reservada do Cyber, relacionou-se com ela.
Finda a sessão, passava da meia noite, desceu o morro, sensação
plena, mente em desassossego. Madalena αβ, amor em Jesus. Mais do
que sensações, precisava dela, olhar, viajar pupila a dentro, ao
encontro da intimidade. Aí, o aleph que os fazia unos, apagava todas
as diferenças. Jesus queria fundir-se, refundação deles mesmos.
E Madalena αβ?
Em banquete, aos milhares, os prazeres da degustação. Retorno
primitivo ao gosto. Não precisava comer para alimentar-se. Nada do
que mastigava seria digerido no seu organismo. Tudo seria bloqueado
e retirado do corpo por nano-robôs sobre roupas especiais que se
prestavam para tal. Por tais vestimentas é que se alimentava pelos
mesmos métodos moleculares. Vale dizer que também por eles recebia
vitaminas, hormônios, enzimas e outras substâncias que facilitavam a
relação sensual com o mundo.
Quebra da
segurança? Simulação competente de Jesus? Um quantum de
imprevisibilidade.
Madalena αβ, na
praia sob o sol. A sombra de Jesus projetou-se sobre ela. Muito
curiosa levantou-se. Não compreendia porque o rapaz a procurava.
“Porque temos propósitos fundamentais na vida...” Madalena abriu
os braços para a vastidão da paisagem, negando. “Que propósitos?
O fundamento é o upgrade. A evolução cada vez mais avantajada dos
requisitos da felicidade. Estou update” Jesus de mãos postas.
“Não é diferente da minha felicidade. Toda essa complicação
dominadora é muito simples. É você. O dia de hoje foi vazio. A razão
do sol não estava somente em mim, eu precisava de você.” A face
interrogativa de Madalena. “Como precisava de mim? Você não se
basta? Precisa de outro para viver?” Jesus, inocente. “Você
não?” Madalena, terminativa. “Não, tudo que necessito está
sobre minha pele. Na minha mente. O que não compreendo basta
comunicar meu cérebro com as bibliotecas de inteligência artificial,
imediatamente tenho respostas. Quando quero me apresentar diferente
posso ser qualquer personagem do passado e do presente, pois existem
milhares de arquivos de emoções das pessoas. Já tenho teu arquivo
completo. Posso usá-lo quando quiser.”
Jesus parou a
conversa, afastou-se um pouco de Madalena αβ e deitou o olhar na
imensidão do mar. Inspirou profundamente o cheiro de maresia.
Mergulhou seu olhar no vasto verde esmeralda e suas franjas de
espuma branca. Voltou-se para Madalena, aproximou-se e deu-lhe forte
abraço. Beijou-a com grande paz e, lentamente, afastou-se enquanto
dizia: “O upgrade sou eu...Upgrade de cada momento, sem
intervalo, até a próxima versão. O update contínuo....”
Madalena αβ
olhando-o se afastar na areia branca da Barra da Tijuca, sentiu-se
uma versão defasada. E gritou: “Jesus...vou....”
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