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Floriano Martins


 


As leis essenciais da poesia

 

 

Caberá ao poeta ser a Coluna do Tempo. Fará então com que permaneçam erguidas todas as idades a cada aparição sua. O cenário da criação será o dia em que os ventos forcem a doutrina da Coluna. Chamem-na Ygdrasil, Soma, Rosário, Grande Mãe. A infusão de suas vertigens trará ao mundo um foco de sombras incandescentes, que animará a todas as formas com sua chaga. Caberá à poesia povoar sua mítica com as personas que revelem abrigo e essência do ser. Nas entranhas do templo encontram-se anunciadas as origens do tremor e da fúria com que desdobrará sua herança sobre a terra. Somente o abissal garante a continuidade da vida. Goliardos, órficos, barrocos, surrealistas – haverá uma mística alimentando a poesia com seu fogo purificador? Flor de insinuações, a dura tarefa dos poemas. Os fios de seda com que vamos tecendo nosso destino assinalam a profusão dos delírios, estabelecem uma certa ordem de acidentes, inflamam a verdade a revelar-se sala de quartzo. Caberá ao leitor desatar o górdio em que foi tramada sinuosa tríade: o poeta / a poesia / o poema. Somente assim tornar-se-á senhor deste território do Absurdo.

Sérgio Lima refere-se ao Barroco como uma “convulsão das formas”. Em José Lezama Lima é possível entrevê-lo como ritual de excessos da linguagem que procura firmar-se em seu templo suntuoso de inquietudes. Sinuosidade abissal, exuberância vertiginosa – não é outra a esfera queimante em que age o Barroco. O imaginário como fonte de revelação poética, a voz do desconhecido mundo ulterior, do assombroso e impactual, do que apenas se insinua em suas infinitas dobras, como o “mistério claríssimo” ou a “claridade misteriosa” que sugeria Lezama. A poesia brasileira encontra em tal vertente prodigiosa três notáveis exemplos: Gregório de Matos, Jorge de Lima e José Santiago Naud. Neles se instala, com um sentido latente de ruptura e revelação, a potência secreta do ludus, a voragem de suas dobras subterrâneas, sagrada tábua de origens em que o homem, para alcançar aquilo a que aspira, deve deixar-se tomar pelo labirinto mortal em que se ocultam todas as linguagens possíveis.

Rabisco estas anotações movido pelo fato de que o terceiro dos poetas que acabo de mencionar, apesar da importância capital que representa no centro intranqüilo da poesia brasileira, não encontrou-se ainda com a merecida difusão de sua obra. Com alguns de seus livros editados em países como Portugal, Argentina, Panamá e México, a poesia de José Santiago Naud (1930), elegíaca e visionária, prolifera com uma voluptuosidade pouco afeita à tradição poética no Brasil. Desde 1952, quando então publicou Poemas sem domingo, multiplica-se esta poesia encarnando uma torrente inesgotável de volumes. Contando já com quinze títulos publicados, em sua residência encontramos duas vezes mais em textos inéditos, entre eles o impressionante Cara de cão, em suas 500 laudas por onde transcorre uma vertiginosa experiência existencial, pontuada por imagens dilacerantes, em que se mesclam o erótico, o religioso, o irônico, as representações cósmicas, a íntima relação com as doutrinas herméticas e ocultas, enfim, em que se configura o sagrado templo da poesia. Escrito entre 1973 e 1983, um fragmento erótico, parcela mínima, deste Cara de cão foi publicado em 1987, sob o título Vez de eros. Alguns dos outros livros de José Santiago Naud até aqui publicados são Noite elementar (1960), O centauro e a lua (1964), Verbo intranqüilo (1968), Dos nomes (1977), HB Promontorio milenario (1982) e As colunas do templo (1989).

Os raros balanços geracionais da literatura brasileira a que podemos ter acesso não consideram as imagens estalantes da primeira fase da obra poética de José Alcides Pinto (1923), a torrente metafórica de Francisco Carvalho (1927), o barroquismo elegante de José Santiago Naud ou o fervor surrealista de Sérgio Lima (1939), entre outros. Livros como Cantos de Lúcifer (JAP, 1954), Dimensão das coisas (FC, 1983) e A alta licenciosidade (SL, 1985), todos peças fundamentais de nossa poesia, jamais foram comentados à luz de sua real essencialidade. Seria necessário questionar duramente os artifícios pragmáticos de nossa crítica literária, por em dúvida sua credibilidade, salientar a crueldade histórica de uma mídia literária, de uma casta intelectual que tem sacrificado o desdobramento natural de nossas gerações.

Em um admirável ensaio intitulado “Motivos para José Kozer”, o espanhol Antonio José Trigo situa o poema como “uma difusão da alma no âmbito do impossível”. Embora refira-se à poesia de José Kozer, como não tornar esta uma característica primordial de todo grande poema? A realidade só está completa quando o poema a toca com seu precioso caos. Não é outra a magia sensual que desperta o dia. Observando sua fulgurante profundidade é possível afirmar então que vive e se multiplica radiante a cada olhar. A memória deverá ocupar-se de restaurar seus mitos desfigurados. Creio que tal fagulhar de inquietudes tornou possível o encontro de José Santiago Naud com a imagem da Virgem de Guadalupe. O poema é pura ressurreição, “o país perdido / que levamos sempre, / ilha / no oceano / ou dentro de nós”. Desta forma, há uma gama insondável de encontros oculta nas dobras das páginas em que foi escrito o poema-livro Piedra Azteca (México, 1985), indo desde o encontro do primeiro homem de Aztlan com Huitzilopochtli até o encontro do autor dessas linhas com seu casual leitor. O livro de José Santiago Naud é o cenário estonteante de um drama cósmico: o inatingível clamor da presença do mito diante do homem. O que o poema situa como “movimento perpétuo / da cara do real inscrita em mito” são as máscaras de um diálogo que o homem não consegue manter com suas sombras. Pura ressurreição, mas também dura nostalgia. O mito da fundação asteca é fundido a uma inebriante torrente de dualidades, os cerimoniais do bem e do mal, a celebração dos frutos que dão ao homem uma dimensão religiosa e cósmica. Tal bigorna haverá de comportar ainda a experiência literária de Santiago Naud, enriquecida pelas leituras de José Gorostiza, Jorge de Lima, Almada Negreiros – poetas que também compartilharam seu apego aos aromas ritualísticos das doutrinas herméticas. O livro, como a totalidade da obra de José Santiago Naud, é também um louvor ao milagre da escritura poética no âmbito das identificações. O próprio autor salienta: “Vivência ou razão animada, o ato poético é um incorporar incessante”. Louvor à força vital que move sutilmente o centro de todas as culturas, energia central que dá um sentido histórico ao gesto intemporal e simples de leitura de um livro como Piedra Azteca.

Em Robert Graves, ainda mais acentuadamente do que em Julius Evola, podemos encontrar razões suficientes para compreender a avaria antropológica que o patriarcado nos trouxe. Além da poesia, José Santiago Naud tem escrito alguns esparsos textos de natureza filosófica em que observa a cena brasileira à luz de suas produções culturais. Embora jamais o tenha visto citar os dois autores aqui mencionados, sei que combina plenamente com o que ele próprio chama de reinstauração de “um certo conteúdo de vivências em que, ao conceito de pátria, acrescente-se outro mais metido visceralmente com as essências”, sendo este conceito justamente o de mátria. Recuperar as formas, restaurar o poder da artesania, ampliar os lugares de encontro do homem consigo mesmo, tornar clara a necessidade vital de encontros entre as culturas, amar o gesto mais simples com que situar todas estas questões – caberá mesmo ao poeta ser a Coluna do Tempo, ser a Mãe de todas as ações. Esta sagrada ternura por tudo o que se move dentro e ao redor do homem, somente aquele que cria pode situá-la como a fonte de renovação de toda acuidade ante os mistérios irrefreáveis da existência.

 




JOSÉ SANTIAGO NAUD:

FACES DE NOSSA AMERICANIDADE

Entrevista conduzida por Floriano Martins




— Borges costumava dizer que “publicamos para não passarmos a vida corrigindo rascunhos. Quer dizer, a gente publica um livro para livrar-se dele”. No que lhe diz respeito, a publicação é parte necessária do destino de um escritor? A quem se destina a poesia?
— Ainda prefiro a natureza às bibliotecas ou ruínas circulares do poeta de gênio que foi Borges. Assim, mais do que às letras, a poesia para mim está ligada aos milagres da vida, esta explosão natural que tanto tem a ver com a palavra quanto com uma flor. Escreve-se então por impulso vital, registro do mistério que se viu desvelar. A poesia aí existe em si mesma, vale por si, é como ouro bateado, já antes inteiro lá atrás, nas águas que correm ou no fundo do chão, ou como fruto no galho, a razão da árvore, força de raiz; o resto virá depois — puro acidente. Os fundos do baú do Pessoa dão exemplo melhor.


— Acredita, como Hölderlin, que a inspiração desce infinita dos deuses?
— Este poeta pagou sua lucidez com a loucura. Mas sempre esteve certo, como Van Gogh, tão valioso lá atrás quanto agora, e não porque uma obra sua passe a valer fortunas. Pois estão certos os “suicidados da sociedade”, conforme Artaud. É claro, o que nós vemos (e ouvimos) desce (ou sobe) dos deuses, sejam eles dentro ou fora de nós, as circunvalações da memória ou os elementos desatados. Recebemos por inspiração, como no mito hindu se anima o sopro de Brama.


— Até que ponto podemos falar da influência de Jorge de Lima em relação à sua poesia? Quais outros autores tiveram importância, e em que nível?
— Entendo que todos quantos pretendam fazer poesia em português, depois de 45, não podem prescindir de nenhum autor nascido de 22, quando começam a emergir em brasileiro picos mais ou menos eminentes. No que me concerne, sem mencionar o que está para trás e representa nos séculos a coerência indispensável da nossa organicidade poética, Bandeira, Drummond e João Cabral foram chaves. Jorge de Lima é como um painel. Total. Registro das nossas raízes, linguagem criada ou herdada, mito e mistério, a complexidade do universo referida pelo local. Assim como Drummond estabeleceu o código do dizer poético em brasileiro, Jorge de Lima abriu peculiaridades ao universal. Por tanto respondem melhor à minha inquietude. Outros nomes, excluídos obviamente os clássicos ou aqueles cuja trajetória histórica se fazem indispensáveis, Hölderlin, Rilke, Pessoa, formam o triângulo sobre o qual edifiquei meu modo de ver e de ouvir, socorrido por outras formas de linguagem, quando avultam Bach, Beethoven ou Bartók; Da Vinci, Van Gogh ou Klee. Qualquer outra menção, diluvianamente falando, guardaria a diferença entre o casco da Arca e sua linha de flutuação.


— Sua poesia, principalmente a dos livros mais recentes, caracteriza-se por uma re-afirmação da imagem, do mundo como imagem; pelo fato de ser uma poesia de significados e não de signos; e por certa recusa ao vazio obsessivo da técnica, ao apresentar uma visão particular do mundo. Em uma época ditada pela perda da imagem do mundo, a crise de significados, e a valorização da técnica, não haveria aí o risco dela se converter em puro anacronismo?
— O signo é um sinal, vazio sem o significado. E este, soma à convenção sua própria virtualidade. Assim, não é o signo a origem e pode-se falar do significado do significado. Em ambos extremos situa-se o homem, e aí se divide, a inventar suas origens e fins. Como, neste caso, iludir a imagem? A própria linguagem abstrata, e nem mesmo a científica, não pode abdicar dela, hífen de visível-invisível. A super-valorização da técnica só pode nos levar à destruição, e o aviso está dado desde o Apocalipse. Portanto, ao perceber em mim o sopro criador, fico atento à sua origem e quero saber da sua finalidade, e o processo se inicia por uma cascata de imagens. Que as modas ponham a intenção da regra, também tal impulso há de mover os rebanhos. Antes, como ser votado à liberdade, ferozmente indivíduo, o poeta quer ouvir o sinal da totalidade e re-afirma ou re-inventa os signos capazes de re-ordenar o mundo conforme o limite infinito do próprio coração, esta parcela que explode. E será entre a solidão e a plenitude que homem e mundo se fusionam aniquilando qualquer intromissão. Que a nossa época trocasse o todo pela parte ou que anteponha seus artifícios ao natural, é “uma questão de época”. O sopro primigênio continua a alentar, e já se começa a reclamar pelo “grito primal”. O poeta é livre de escolher entre qualquer uma das pontas. Por mim, tenho o compromisso de falar como sinto, segundo os infinitos do limite de cada um, e penso que vem o eterno antes do anacrônico, e continua depois. Também a moda, será o antigo esquecido que se lembrou. E os riscos, há que correr. As crises são “risco e oportunidade”.


— Lendo seu ensaio “Situação de Pessoa na poesia do século XX”, algo em particular me chama a atenção: vejo ali pela primeira vez um poeta brasileiro referir-se aos Estridentistas de Jalapa (movimento literário surgido no México à mesma época do nosso Modernismo, ou seja, entre Dada e o Surrealismo); mais do que simples referência: sublinhar uma correspondência “em tempo e adequação” entre ambos movimentos. No decorrer do mesmo ensaio, ao deparar-me com a citação de nomes como Martín Adán e Rogelio Sinán, penso mais uma vez no quase intransponível hiato cultural existente entre as literaturas brasileira e americanas (Norte, Centro, Sul). O poeta uruguaio Mário Benedetti, a este respeito, acredita que tal isolamento cultural existe não somente em relação ao Brasil, mas sim em todos os países americanos entre si, e que é resultado das ditaduras instaladas em todo o continente. Acredita que seja esta a única justificativa possível para este estranho distanciamento? E quais seriam suas conseqüências mais danosas?
— Um bom estudo de literatura comparada demonstraria maravilhosas coincidências na trajetória das poesias mexicana e brasileira. Pena que à universidade atual preocupe mais a cidade que o universo, e a carreira ou os papers valham mais que a aventura da identidade; começando pela própria fonte, pois é inconcebível que nessa instituição, por título: medieval, continuemos a ouvir a estúpida frase feita de que a Idade Média foi a época das trevas, quando de trevas e luzes padecem todas as eras. Assim, buscando o todo nas partes, observa-se que, coevos, o Estridentismo de Jalapa e a Antropofagia de São Paulo se completam. Culturalmente, o México é o irmão maior na América Latina e teve, com sua enorme revolução, a extensa articulação do vice-reinado, a densidade múltipla do indígena pré-colombiano, núcleos e vetores de onde podem partir ou explodir as linhas de força ou as energias cerradas de toda a nossa incoerência coletiva. Bastaria um mero olhar a esses dois países para perceber como os desconcertos do presente escondem uma potência fantástica que, circulando o passado e o futuro, faz do nosso continente, especificamente, a garantia do plano oculto da criação e, conforme a rota solar, a garantia de que o novelo da história sempre acaba por soltar a linha reta. Por conseguinte, no grande drama da vida refletido ao espelho literário, houve um momento em que a malícia mexicana e a ingenuidade brasileira convergiram, à distância e sem comunicação, para formular um mesmo princípio — igual e diferente — de renovação. Para que algo nasça, algo tem de romper, e este enlace entre a vida e a morte é o que distingue ambos movimentos. Pelas características do México, o Estridentismo tinha mesmo que ser uma explosão urbana de encontro à civilização; já a Antropofagia brasileira, concebida a partir de uma cidade que o tempo consagraria como o centro industrial da nossa América, iria ao encontro das raízes, deglutindo no primitivo as complexidades herdadas ou, melhor, impostas por colonização. Liga-os a herança aceite da Europa, na forma inocente ou maligna da consagração infantil (Dadá) ou dos abismos oníricos (Surrealismo) que, no Brasil, se repartem por Tarsila, Oswald, Raul Bopp e Murilo Mendes. Ainda mais, os Contemporáneos mexicanos também coincidem com os nossos poetas da fase “heróica” ou de formação, e as temáticas de Drummond, Cassiano Ricardo, Cecília Meireles, etc., encontram correspondências admiráveis por lá. Ainda, coincidindo, já em nossos dias, com o construtivismo deflagrado a partir de 1945, sucedem-se os textos, lá e cá, como se fosse um diálogo de surdos mas entre primos-irmãos. Valeria despertar a curiosidade dos pesquisadores, pedindo-lhes que procurassem conhecer López Velarde ou José Pacheco, para sentir como eles poderiam ter escrito em português, a realizar aqui, sem prejuízo da categoria lírica, o trânsito do século XIX ao XX, como o fez Ribeiro Couto, até o cotidiano e o protesto segundo a inquietação posterior de Ledo Ivo. E, para trás, chega a menção de Soror Inés ou Gregório de Matos. A gente agora entende porque os enlatados da TV, nos ligando, tratam de separar; pois, nosso traço de união (ou travessão) são nossas diferenças. Similares.

Diria ainda mais, que o que se diga para o México, vale para toda a América, sem mesmo excluir o Canadá e os Estados Unidos, conquanto nossa atenção não se distraia do que é autenticamente cultural. Entretanto, no que concerne ao mundo abaixo do Rio Grande ou Rio Bravo, urge instalar no depauperado e esquálido currículo nacional, mais que uma cátedra, a residência da nossa comunidade continental. Por zonas, o Prata ou os Andes, o Caribe, o Istmo ou Parte Equatorial, desde Jalisco (no te rajes!) à Patagônia (e é preciso mesmo aceitar as nossas patas, ou patos!), tudo há de convergir no coração do Brasil. E não só coração, como cérebro e entranha. Podemos honrar a Trindade, que faz parte antiga das nossas devoções, sem menosprezo da Trimurdi oriental, segundo os valores da Tríade, que a Física atual — mais para número do que experimento — começa a compreender entre yin e yang. Pois isto somos, os deserdados da América, para além das nossas veias abertas: a mágica possibilidade complementar de reunir macho e fêmea, em um globo perfeito ou círculo de luz. Soube e sabe, porque sempre o soube, a Poesia. Não quero fazer agora um rosário de nomes, nem me apoquenta qualquer lista biográfica. Mas, quando sacudirmos nossa preguiça ou descaso, o paraíso da nossa ignorância há de ser compensado com o tecido orgânico do nosso ato ou da nossa inspiração, que assim totalmente incluirá, como a pele enrola o corpo, o aticismo barroco de um Franz Tamayo, na Bolívia, e os atomismos parnasianos dos irmãos Campos, no Brasil. Neruda, Vallejo, Parra, Huidobro, Carranza, Cardenal, Borges, Benedetti ou Paz, são eminências evidentes, mas não estarão sozinhos. Nós brasileiros, por exemplo, nos surpreenderíamos se comparássemos a evolução de Rogelio Sinán com o evolver do nosso modernismo, e o considerássemos na teia da poesia panamenha, tão firme e esplendorosa quanto a nossa; e o surrealismo esotérico de Martín Adán, a par dos seus êmulos argentinos ou mexicanos menos badalados, muito favoreceria a nossa inquietação, considerada a safra magra do Brasil neste particular. Note-se que o hiato não é só internacional; dentro das nossas fronteiras, desde o Oiapoque ao Chuí, ou do Rio Apa a Fernando de Noronha, o meu conterrâneo Érico Veríssimo já dizia que somos um arquipélago… cercado de silêncio por todas as águas, podíamos agregar.

Penso também, com o Mario Benedetti, mas um pouco diferente. As ditaduras são efeito e não causa, e se instalam com o objetivo de manter-nos assim isolados. Entre tanta justificativa injustificada, para o diagnóstico do nosso atraso, todas hão de se reduzir ao caráter de nossa colonização. Ao contrário do Mayflower, que religiosamente trouxe para estas bandas uma revolução de raiz medieval, as naus peninsulares não aportaram só com o dogma. Quem sabe, com lucidez, à exceção de Pietro Ubaldi, dos planos que redimem o macaco no homem? Portanto, se vale a intuição poética e a lógica histórica, eu estou certo de que a nossa miséria presente é o fermento da nossa missão futura, e América seremos todos juntos, olhando sem polaroid a humanidade, que já pôs o pé em outro espaço. Porém, não me iludo, será preciso consumir nossa dor e, assim, a recessão econômica — resultado da recessão da inteligência e da moral, que o nosso Brasil compartilha com as demais parcelas americanas — será o caldo de cultura ou estrume que propiciarão o desabrochar do fruto ou o nascimento do animal, que vão alimentar ou fazer mover a roda da fortuna. Uma lei maior nos ensina que antes é preciso destruir-se e amadurecer, o que sói acontecer por vontade ou revelia. Em seguida veremos, no que concerne ao Continente, que os interesses nacionais ou as barreiras do idioma serão menos poderosos que a vocação da unidade. Para ela, e por ela, aqui estamos.


— Se por um lado nós temos, dentro do universo da Modernidade da poesia hispano-americana, uma relação íntima (ainda que jamais assinalada pela crítica) com as doutrinas herméticas e ocultas, ou seja, se esta poesia era (ainda o será?) adepta confessa do paganismo, por outro lado, a poesia brasileira era (e ainda o é) notadamente marcada por suas relações com o positivismo e a razão crítica, ou seja, uma poesia comprometida até à medula com as ruínas do espiritualismo cristão. Seria possível estabelecer parâmetros de benefícios e/ou prejuízos no tocante às relações aqui citadas?
— Um mero exame do barroco hispano-americano, principalmente das talhas e pinturas preservadas na faixa andina, México e adjacências, pode evidenciar como essa expressão artística representa o enlace entre as coisas herméticas e o paganismo, já no grande surto da segunda metade do Setecentos fortalecido pela simbologia maçônica. Tal exercício visual marca a expressão poética, desde os primórdios até o moderno afluxo semiótico. Sobre, ou sob a estética aportada, valha insistir no poderoso e espantoso substrato indígena. No Brasil, apesar do Aleijadinho, foi o contrário; é esteticamente escasso o substrato que nos podiam herdar os nossos selvagens, ou menos intelectual a riqueza trazida pelos negros africanos. Não obstante a nossa poesia ter-se definido, depois da gloriosa exceção do Gregório de Matos, já ao influxo do racionalismo francês, para a consagração positivista do século XIX, permeou a cultura popular certa herança mística, hermética e messiânica, recebida através do luso, heterodoxamente, e viva no culto do Divino ou nos mitos alquímicos do Eldorado e Avalon. Haverá exemplos que só a poesia do Jorge de Lima leva a luminosas conseqüências. Também a este respeito, um intercâmbio cultural mais intenso contribuiria para um pique de maior paixão, ousadia maior, o deixar-se levar pela maré da vida, entre os trópicos e o sangue, que um mofino positivismo ou a importada razão crítica de fato fazem mermar em nosso ímpeto. Entretanto, pelo épico e o protesto social, além da brasa etnográfica que heterodoxamente o sentimento religioso emerge de manifestações folclóricas a exemplo do Bumba-meu-boi, as gerações que trataram de escrever depois dos anos 70 têm à disposição um lastro poético que poderá facilitar a aproximação de duas idiossincrasias, encurtando a separação dos dois idiomas, com superação dos prejuízos e multiplicação dos benefícios.
Resisto à tentação de mencionar nomes, porque você não se engana quando adverte para os riscos da precipitação, da desinformação e afetuosidades que tornam aleatórias tais citações. Mas, mesmo com os mais notórios ou badalados, à margem de qualquer rigor, de qualquer critério de qualidade, qualquer um de nós terá, de lés a lés do país, uma lista que comprove a vitalidade da poesia brasileira, sua presença e conexões com o que se escreve em espanhol. O quantitativo também é um pressuposto de valor. Quanto mais nomes houver para o confronto de nossa crítica ou gosto pessoal, tanto mais visível será aquele que sintetize as qualidades ou os desconsolos de sua época. Que Rosa, Lispector e Suassuna deixem de encabeçar as listas do boom latino-americano, não os exclui das suas brilhantes convergências ou harmoniosas conciliações. Quero dizer que, também assim, a nossa poesia atual, apesar da severidade ou das complacências, prefigura em quantidade e em qualidade a mão que vai partir o pão na ceia americana. Só então saberemos o que era real e o que foi oficial, e a confusão de agora se resolverá. Mas importa desde agora reconhecer que somos muitos e estamos vivos, nem mais para lá nem mais para cá dos que falam espanhol, e a característica comum será o conflito de duas épocas ou o choque de dois pensamentos. Mais que o ortodoxo ou o heterodoxo, o paradoxo pode franquear nossas barreiras; entre a graça divina e o realismo mágico, desde o sentido hermético ao chocho positivismo, estão aí o barroco, o surrealismo, a semiótica, o lirismo épico, o esoterismo ou o protesto social, como dizem, para comprovar que algo de novo e extra-europeu inça por estas bandas, dando maior complexidade e abertura às direções que o mundo hispânico nos herdou.

Hoje estamos vivendo com uma acuidade inédita — e esta é uma das cristas da crise — o conflito entre os conceitos pagão, de vida, e cristão, de eternidade. Olhando o futuro, e a partir da nossa etnia misturada, a união (ou confederação, segundo queiram) da América de dois idiomas é uma solução, que o testemunho poético tem já por antecipado.


— Octavio Paz, em seu El arco y la lira, dizia que “o marxismo é a última tentativa do pensamento ocidental para conciliar razão e história”. Acredita na validade de tal afirmação?
— Dá ganas de dizer ao Octavio Paz que não tenha razão, tal qual dizia o Álvaro de Campos ao Fernando Pessoa; eles misturam matematicamente lógica e intuição. Desde Descartes é que se trata de conciliar razão e história, nem sempre prestando-se atenção àquela advertência de Pascal sobre as coisas do coração. Pois, sem exceção, todas as ideologias do século passado, e entre elas avultam o gigantismo de Marx e o titanismo de Freud, acabaram perdendo a jogada. Hoje é mais atual levar-se pelo antigo, buscando o equilíbrio de corpo, alma e espírito. Qualquer tentativa de pensar fora deste triângulo, que pode ser lido de baixo para cima ou de fora para dentro, significa redução e há de ser sempre uma última e frustrada tentativa.


— Nossa obsessão pelo futuro, pelas mudanças, pelo progresso, arrastou-nos de forma definitiva ao centro de uma ilusória imobilidade. Desta maneira aquilo a que nos acostumamos chamar de transgressão, após uma sucessão ininterrupta de repetições, passa de tal forma despercebido, que nos faz crer que a única modalidade possível de transgressão, atualmente, seja exatamente seu oposto, o conservadorismo. Acaso não haveria um ponto de interseção entre os princípios de mudança e permanência?
— De pleno acordo com a sua afirmativa. As duas ditaduras que nos afligem, tanto a política quanto a econômica, empanturraram-se de tal forma com a razão a ponto de entronizar a lógica do absurdo: o movimento imóvel. Virou a insanidade via de regra e estamos a viver na carne e na alma a “waste land” entrevista por Eliot (sempre os poetas). A transgressão, neste caso, deixa de ser crime, pois configura nossa rebeldia aos “paraísos artificiais” que nos prometem ou impõem e é, conservadoramente, um ato em pró da saúde. Restamos nós, os indivíduos, e o mundo amplo já devastado, sobre nós as vastidões consteladas — de um modo ou de outro, último abrigo das nossas transgressões. Então, mentalmente, olho o lago estendido à calma da manhã; uma leve brisa encrespa suavemente a sua superfície e o sol bate de chapa sobre a infinidade de pequenas cristas que o recobrem de margem a margem. Essas perturbações não representam a totalidade do lago. À noitinha volto a contemplar as águas serenas; na lisa superfície uma asa sequer roça o espelho líquido com o céu refletido. Jogo uma pedra, e os círculos concêntricos enchem o espaço em torno. Assim tudo depende do olho que vê ou da mão que se move; o lago é sempre o mesmo, acidentado em mim. O que hoje sofremos será causa ou efeito e o povo sabe que “nada acontece por acaso” e “tudo o que é demais é muito”. As idéias e as técnicas levaram-nos a intervir no mundo. Isso tem conseqüências, altera e prepara a paz que almejamos. E o ponto de interseção entre os princípios de mudança e permanência há de ser como a luz que é a mesma entre a crista das ondas e a lisa superfície ou, na extensão da chapa, o círculo que se acaba nas margens. O mais é nós olharmos os outros como olhamos a nós mesmos, sem furtar aos fatos nosso gesto de amor. E o todo é sermos um dia o lago, re-elaborado em nós. Aí o jogo de poder, que ainda ilude o progresso, cederá ao conhecimento, e o sentir somará o compreender como somam-se em coletivo os indivíduos. A felicidade há de vir para todos ou não vem para ninguém.


— Tudo já foi escrito?
— Respondo com a sabedoria da banda ocidental, repetindo salomonicamente segundo o Eclesiastes que “não há nada de novo sob o sol”. Mas renovam-se as formas e só neste sentido, finalmente, pode o poeta aventurar que “la chair est triste et j'ai lu tout les livres”. Artisticamente, a questão que se põe é como se pode chegar à verdade geral partindo da verdade de cada um, como em seus exercícios o santo busca a face de Deus. O ato poético é o poeta folheando um livro em busca do Livro que jamais poderá escrever.
 



Floriano Martins
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