Kátia Borges
No compasso da linguagem
João
Gilberto Noll é daqueles raros autores que não perdem a
simplicidade, mesmo sendo um dos mais festejados e premiados do
País. Sua bagagem pessoal inclui quatro Jabutis e prêmios da
Fundação Guggenheim, Academia Brasileira de Letras (ABL), Instituto
Nacional do Livro e Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA),
além de bolsas concedidas pela principais instituições, e de um
convite, recebido em 1997, para lecionar Literatura Brasileira no
Campus de Berkeley da Universidade da Califórnia (EUA). Noll é
formado em Letras pela PUC-RJ. Autor de vários livros e estreando em
uma nova editora (a W11), ele passou dois meses em Londres, este
ano, como escritor-residente no King’s College. E foi na capital
londrina que surgiu a idéia para o intrigante Lorde. Nessa
entrevista, via fone, ele fala sobre o livro anterior pela W11, a
coletânea Mínimos, Múltiplos, Comuns, que reúne contos publicados na
Folha de S. Paulo, e sobre criação, arte e o esgotamento do eu, um
dos temas cont emporâneos que mais o inspira.
Kátia Borges
- Você escreveu Lorde depois de uma experiência londrina. Podemos
dizer que o livro, de certo modo, engana o leitor, já que autor e
personagem parecem meio misturados nas primeiras páginas?.
João Gilberto Noll - Eu escrevi o livro no período em que fui
escritor residente do King’s College e eu me alimentei muito da
minha experiência em Londres, embora o livro não seja uma
autobiografia. Existem uns toques ficcionais.
KB - O protagonista vai se distanciando do
autor à medida em que se afasta do aeroporto e inicia um processo de
mutação. Concorda?
JGN - Sim. Acho que você fez uma leitura muito sensível do livro. É
assim mesmo. À medida em que ele se afasta daquele aeroporto, ele
vai se distanciando também da identidade que ele tinha. No meu caso,
havia uma instituição sólida e verdadeira por trás do convite para
ir a Londres. No caso dele, não. Ali começa a haver a necessidade de
uma transformação, de uma metamorfose, que ele também estava
ansiando ao atender ao chamamento do inglês.
KB - A estranheza que envolve o personagem
principal fisga a curiosidade do leitor, e eu ousaria dizer que ela
permanece, para além da última página, já que esta nos lança em um
novo enigma.
JGN - Concordo com essa análise, tanto que estou idealizando uma
trilogia a partir desse livro. Acho que tenho muito a dizer sobre
esse pequeno Frankenstein em que o personagem se transformou, sob um
novo heterônimo, para usar uma palavra de Fernando Pessoa. O aspecto
de consciência continuou sendo a dele, mas o corpo passou a ser o de
um inglês.
KB - Em alguma medida, como a sua experiência
no King’s College de Londres estimulou a criação de Lorde?
JGN - Foi total. O estímulo foi total. Eu fui para dar andamento ao
meu projeto de romance. Quando tenho um projeto, eu parto de manchas
muito difusas, gosto que os personagens tomem conta da ação. Os
destinos deles se fazem no ato da escrita. É o meu modo de escrever.
Evidentemente, há outros. Eu sou um escritor que trabalha o
inconsciente e que gosta de ser surpreendido. Se eu soubesse o
final, escrever deixaria de ser necessário. Para mim, a escrita é
uma investigação. Sou um escritor da linguagem e é ela que vai
abrindo o caminho, com seu ritmo e sua melodia. No caso de Lorde, a
idéia veio do ato de caminhar pelas ruas de Londres. O personagem
central, seguindo o exemplo de outros personagens centrais meus, é
um andarilho, que gosta de se sentir mergulhado na multidão. Alguém
que quer ser todo mundo e, ao mesmo tempo, ninguém. E isso expressa
uma grande paixão, um grande amor, mas tem o perigo de representar a
morte. O amor é essa mistura.
KB - Lorde acaba propondo também uma reflexão
sobre a função do escritor no planeta. E, ao mesmo tempo, sobre o
envelhecimento e a identidade. E não deixa de ser ironia que o
ensino da língua portuguesa seja o resgate do personagem.
JGN - Ele quer ser outro, por estar sofrendo de um esgotamento do
eu. É por isso que ele se maquia e pinta o cabelo. Mas não só por
isso, é muito pelo processo da decrepitude. Ele nem é tão velho
assim, tem uns 50 e poucos anos, mas já está antevendo a condição da
velhice. Em relação ao ensino da língua portuguesa, como já dizia
Fernando Pessoa: “Minha pátria é minha língua”. E isso é só o que
ele tem, no final, a língua portuguesa. Não é à toa que ali eu cito
Manuel Bandeira, de quem ele se lembra. Bandeira é o poeta da
simplicidade.
KB - Como surgiu a idéia de trabalhar com
instantes ficcionais em Mínimos, Múltiplos, Comuns?
JGN - Esse processo é resultado do que eu escrevi, duas vezes por
semana, para a Folha de S. Paulo. Hoje, não sei se são contos. Acho
que “instantes ficcionais” é uma boa definição. Fiz uma seleção,
junto com Wagner Careli. Sou responsável pela criação, mas foi o
Wagner que os organizou por temas. Eu parti de um convite e fiquei
completamente envolvido com isso durante três anos e meio. Agora,
tenho feito a mesma coisa para o Correio Braziliense, só que, desta
vez, é um conto grande, publicado quinzenalmente no suplemento
Pensar, e que ocupa duas páginas em tamanho tablóide. Não aceito
fazer crônicas, não sou um cronista, não gosto de falar de coisas
reais, não tenho vocação para isso. Não gosto de escrever a partir
de um tema, de um assunto, mas de deixar que a linguagem me tome e
me leve.
KB - Li uma declaração em que você dizia estar
preocupado com a questão da liturgia, do ritual. Em que medida essa
preocupação influencia a sua criação?
JGN - Muito. Há um momento em Lorde no qual o meu personagem está
numa escadaria e estende a mão pedindo esmolas para a noite. Em
outro momento, ele se imagina dançando balé pelas ruas. Esses são
momento ritualísticos. Não sou um escritor realista. Preciso que
meus personagens coreografem as cenas.
KB - Há elementos ritualísticos também na
seqüência do suicídio do inglês?
JGN - É sinceramente muito teatral aquilo tudo. Mantos e coroas
estão no inconsciente coletivo de todos os povos, tanto que se fala
em rei e rainha do carnaval brasileiro, e nas festas religiosas
populares. O personagem encontra uma capa e teatraliza, ritualiza
aquele momento, que vai desembocar no suicídio do inglês. Eu gosto
do ambíguo, de não fechar o significado, de deixar que o leitor faça
uma viagem paralela à do autor. Não gosto de romances muito
realistas e impositivos. Naquela seqüência, por exemplo, ficamos sem
saber se o inglês realmente se atira no rio ou se tudo não passa da
imaginação do personagem para justificar a sua fuga.
KB - Outro elemento ritualístico estaria
contido na cena em que ele socorre um rastafári à beira da morte?
JGN - Sim e, ali, é uma coisa um pouco bíblica, de ele
ser o samaritano, se dispondo a ser o amigo que vai curar aquele
homem. Acho que, com o fim das utopias, que a gente tanto discute, o
eu também se esgotou. Agora, precisamos reinventar. É a crise das
identidades. Hoje, é muito mais importante a diversidade, o poder
ser diverso. Há momentos em que ele diz que quer ser vários, que
está cansado de ser um.
KB - Em outra declaração, você diz que a
linguagem é o “abre-te sésamo deste novo mundo”. Esse, em sua visão,
é o lugar destinado à literatura, à linguagem, no século XXI?
JGN - Eu acho que sim. Evidentemente, para o sujeito que se propõe a
ser artista da palavra, sobretudo o poeta. Mas a poesia não está
somente nos versos. A prosa também pode ter um cunho poético. Essa
questão de deixar o inconsciente fluir através da linguagem é a
função do escritor. Ele tem que “presentificar”, mostrar ao leitor,
como é difícil o parto da linguagem. Às vezes, as questões que ele
trabalha não têm, aparentemente, nenhuma importância política. Mas,
por exemplo, considero a crise das identidades e a solidão urbana
como um assunto de importância política, principalmente no mundo
violento em que vivemos.
KB - E quanto teremos o segundo volume da
trilogia?
JGN - Por enquanto é só um desejo. Mas esse segundo tomo já está se
desenvolvendo nos meus esconderijos mentais. Ando muito preocupado
com esse personagem e com essa identidade nova que ele foi arranjar.
Não gostaria que ele fosse dormir naquele cemitério e desaparecesse,
como acontece na última página do livro. Tenho que pensar no que
poderia fazer com aquele brasileiro preso no corpo de um inglês.
Trecho de “Lorde”
“Da janela da cozinha eu via nos inícios de noite o meu vizinho
turco deitado em sua cama descansando, vendo televisão. O meu
companheiro bêbado do pub queixava-se da mulher, o turco parecia
querer só descansar, se sentia em sua casa nesse país havia muito
tempo com certeza, sensação que eu não conseguia ter. Não
descansava, não passeava com as armas depostas, nem trabalhava. Tudo
se esmerava numa indiferença querendo me provar (...) Eu queria ser
por um momento ele, ali, entregue a seu repouso, em casa. Começava a
compreender que eu tinha fugido de uma situação no Brasil. Não sabia
ao certo qual - “cadê minha memória?”. Eu fora autor de livros, eu
os trouxera. Corri até a sala. Lá estavam eles sobre a lareira. Eu
não os renegava. Mas, sim, o tempo que tinham me roubado para que
existissem ali, de pé. Claro, era por eles que eu estava na
Inglaterra”
Leia João Gilberto Noll
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