Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

Kátia Borges 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Antigona,detail

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poesia:


Ensaio, crítica, resenha & comentário: 


Fortuna crítica: 


Alguma notícia da autora:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Slave market

 

William Blake (British, 1757-1827), Angels Rolling Away the Stone from the Sepulchre

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Memories, detail

 

 

 

 

 

Kátia Borges


 

Homem


Meu homem chega cansado.
O suor grudado na pele.
E eu, que o imagino calmo, me deito,
rosto contra o travesseiro —
e aguardo.
Ele deita seu peso sobre meu corpo,
e seu cheiro é forte,
como o de um cavalo.
Sinto seu hálito no meu pescoço,
suas pernas forçando passagem
entre minhas pernas.
O amor não tem rosto, penso.
É essa pressão — pele contra pele
— esse atrito de pêlos.
Quero dormir e sonhar que nos amamos.
E antes de me possuir, ele me despe, delicado.
Quero dormir e sonhar que ele chega.
Só em sonho, posso tê-lo sem fúria.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

 

 

 

 

 

Kátia Borges


 

Terno dos astros


No beco estreito de minha infância
cabiam todos os sonhos
e assombrações,
as primeiras ousadias amorosas
e decepções.
 

Depois,
o mundo veio como um golpe de ar,
embaraçando os cabelos,
embaçando a visão.
E nada mais havia a ousar.
Na minha rua, todos os anos,
o cortejo do Bonfim
e o Terno dos Astros
enchiam os olhos.
 

E eu não sabia a diferença entre Cidade Baixa e Cidade Alta.
Só quando me contaram
me recolhi a minha insignificância.
Éramos pobres, e a vida, dura.
Mas, todos os anos,
o cortejo do Bonfim e o Terno dos Astros
passavam em nossa porta.

 

 

 

Leonardo da Vinci, Embrião

Início desta página

Virgílio Maia

 

 

 

 

 

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, Teto da Capela Sistina, detalhe

 

 

 

 

 

Kátia Borges


 

Cantiga

 

Minha avó era cega.
Dela, herdei a capacidade de ver sem usar os olhos.
E a paixão
por uns sambas antigos.
Partido alto, dona Ivone Lara.
Minha avó era alta.
Os cabelos muito lisos e compridos
envolviam a cintura.
Eram penteados com cuidado, todas as tardes, e presos em um coque.
Os vestidos, de tecido barato,
quase cobriam os pés.
Minha avó contava histórias de assombrar,
ensinava a amar certas canções
e fazia predições todo final de ano.
Eu fugia com medo do futuro, e me escondia no quarto.
O presente me bastava com seus fantasmas
e as notícias do mundo no Fantástico.
Minha avó gostava de beber aperitivos,
de mascar fumo e de me ouvir cantar
uma música de um português chamado Hermes Aquino.
Poucos se lembram dele.
Poucos se lembram dela.
Poucos se lembrarão de mim.
Minha avó era cega.
Dela, herdei a capacidade de ver sem usar os olhos.


 

 

 

Leighton, Lord Frederick ((British, 1830-1896), girl

Início desta página

César Leal

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Plaza de toros

 

 

 

 

 

Kátia Borges


 

 De volta à caixa de abelhas
 

...Me pergunto se me esqueceriam,
se eu abrisse as portas
e me afastasse e virasse árvore...

Sylvia Plath


 

Com zelo e alguma tristeza, guardo coisas:
cartas antigas, fotos antigas, calendários.
Se me perguntarem a razão, direi que sei, direi que um dia [saberei...
Há quase um ano aguardo notícias importantes,
dentro desta caixa de abelhas.
Todas as noites, o carcereiro chega,
põe sua cabeça na pequena grade e ri.
Amanhã mesmo deixo esta coisas, esta caixa.
É algo que assumo cuidadosa, como se soubesse que não vou [voltar,
como se conhecesse o rosto que se oculta,
ou como se mentisse, quando sinto que sei.
Ontem mesmo o carcereiro esqueceu-se de vir.
Minhas lembranças zuniram tontas,
entre as paredes desta caixa,
doloridas de saudade.


 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion

Início desta página

Ronaldo Bressane

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba

 

 

 

 

 

Kátia Borges


 

Amor

 

Por todo o caminho, te levo comigo,
como quem carrega o próprio coração nas mãos, pulsando.
Como quem bebe um vinho precioso,
deixando que o líquido se espalhe e molhe o rosto.
Por todo o caminho, te levo comigo,
como quem arranca um punhado de mato e põe no bolso,
só para sentir a raiz entre os dedos.
Te levo comigo, sobre os ombros,
até o alto da mais alta das montanhas.


 

 

 

Titian, Noli me tangere

Início desta página

Marcelo Coelho

 

 

03/06/2005