Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Kátia Rose Pinho


 

Teseu e Aracne: O amor no abismo[1]

 

                                                                                                 

Refletir sobre o processo da “tecitura” literária parece-nos a mola mestra da chamada meta-ficção e vários são os autores que a realizam. São ferozes predadores que, a fim de alcançarem suas presas, usam subtis fios trançados. Traiçoeiramente somos tragados pela dissimulação do discurso, o qual se desfaz/refaz em cada linha. Nossa aventura começa onde o fim não existe: no abismo das palavras-tradutoras do ofício de escrever.

Escrever sobre Osman Lins não é tarefa fácil. Parece que as palavras somem e o discurso que poderíamos produzir  enreda-se no abissal.

Caímos na armadilha. Como o próprio Osman (o escritor) diz em  A Rainha dos Cárceres da Grécia[2]: “Sou uma aranha cuspindo minha teia” e toda teia é armadilha em que os incautos são acorrentados para serem consumidos até a última gota. Não há quem passe incólume a escrita de Osman Lins. Escrita transgressora que requer leitores atentos, críticos o suficiente para irem além das palavras.

Não estamos tentando a interpretação de um trecho que nos saltou aos olhos. Aliás interpretar  seria reduzir ao nada  toda expectativa gerada pelo texto. Experimentar a sensação de sermos aranha e presa desta mesma aranha: eis o que pode ser um dos portais para a outra dimensão fornecido pela RCG[3]. Por que a aranha? Ela  representa “a epifania lunar, dedicada à fiação e à tecelagem[4]. A aranha tece... Tecer-teia-texto-textura-trama-tecido-tecelagem-tecelã.  Como nos diz Roland Barthes[5] :

  

Texto quer dizer Tecido; mas enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado por um produto, por um véu  todo acabado, por trás do qual se mantém, mais ou menos oculto, o sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, a idéia gerativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento  perpétuo; perdido neste tecido – nessa textura – o sujeito se desfaz nele qual aranha que se dissolvesse ela mesma nas secreções construtivas de sua teia. Se gostássemos de neologismos, poderíamos  definir a  teoria do texto como  uma hifologia (hiphos é o tecido e a teia da aranha).

 

A aranha, tecelã; Maria de França, tecelã por onze meses (RCG: p. 16; 04/08); o narrador, professor secundarista de História Natural, “aranha cuspindo a teia”, isto é , tecendo. Num desafio constante aos deuses, Aracne mantém-se viva, e ousamos afirmar que sobrevive em cada romancista. Isto nos remete ao simbolismo da aranha, que tem várias interpretações, de acordo com os variados povos; podendo representar “a criadora cósmica, a divindade superior ou o demiurgo”.[6] Se esta espécie tem sua importância, não menos importante é o seu produto: a teia. Feita de fios cuja aparente fragilidade nos remete à falácia das aparências; essa teia pode ser ilusão, mas pode ser verdadeira porque, manifestação da essência.

A ilusão em RCG começa pela capa da primeira edição publicada pela Editora Melhoramentos: na ilustração, um rosto sem olhos (ou se existem , estão sob uma venda), a cabeça de um pássaro ocupando a região da testa; a boca , algo que nos sugere ser a balança da justiça ou  uma ponte sobre a água que ocupa o lugar que deveria ser o  queixo. Esta é a figura central . Sobre ela o título da obra e o nome do autor. Na parte inferior, a palavra romance. Trata-se realmente de um romance? Eis a armadilha. Poderia ser um romance escrito em forma de diário, mas rompendo as amarras estruturais da narrativa tradicional, somo colocados diante de um ensaio crítico sobre um romance . “Quando tudo faz supor termos nas mãos uma obra convencional, ocorre o inverso”( RCG: p. 09 – 17/07)

Deparamo-nos, então, com Ariadne fornecendo a Teseu o novelo de linha que lhe permitirá entrar e sair do labirinto sem se perder. Concomitantemente, associamos Júlia Marquezim Enone a Ariadne e, Teseu ao professor secundarista. Por outro lado: o narrador é Ariadne e nós,Teseus, penetrando no labirinto da escrita, de uma escrita ambivalente e ambígua. Ambigüidade exposta ao longo da narrativa sob várias perspectivas: Maria de França e o INPS (p. 19 – 19/08); o desempenho do vigia Nicolau Pompeu, o Dudu do time Torre (p. 34 – 10/10); Rônfilo Rivaldo que se insere ambiguamente “entre o saber e o não saber” (p. 48 – 29/10);  o  papel do professor  de literatura (p. 71 – 02/12);  o papel do narrador em uma narrativa( pg. 76 – 07/12); Júlia M. Enone adolescente casada e sem marido (p. 131 – 13/04); culminando com a mais ambígua e translúcida/opaca asserção: “Mas fonte de teia, fiz-me ambíguo ( o “eu” da escrita é uma cápsula cava) e nada me proíbe de escrever –  o que pode ou não ser falso – que, simultaneamente, teço a teia e me teço a mim.”(p. 198 – 23/09).

Esse se colocar como “aranha: fonte de teia”, instiga-nos a  conhecer a aranha. Lembramos aqui que, o autor desta escrita é professor de História Natural, e que falar de “aranhas e falenas”  ganha ares de magia (p.72 – 02/12) e mágica são as palavras que transcendem o simples aspecto da biologia. Não que não tenham nada em comum. Eles têm problemas de visão (cf. p.27 - 04/10: “Tenho maus olhos”); são solitários; comunicam-se com o mundo e inscrevem-se nele através do que produzem.  Ambos necessitam de um outro para sobreviverem, pego a traição, apanhado pela ilusão das aparências. O animal,  das presas que caem em sua teia, a fim de alimentar-se; e o escritor  para presentificar sua existência, precisa do leitor, que será tragado pelo ardil de sua trama. Todavia, algo os distancia. Enquanto para aquele, é de sua natureza esta condição, para  este há várias etapas a serem vencidas, pois  ele só efetua sua existência na criação. Mas sendo este senhor inominado uma aranha, é-nos lícito estabelecer a  seguinte equação:

 

      ESCRITOR = ARANHA —> ROMANCE = TEIA.

 

Do mesmo modo que o artrópode cria o que será seu meio de sobrevivência no mundo, (“os fios com tece a teia constituem na realidade os seus olhos, os seus ouvidos, a sua voz e os seus dedos.”)[7], “a existência do criador desenvolve-se em função da parte de si mesma constituída pela obra já terminada, em curso de remate ou a ser construída” e que “a vida do escritor está a sombra da escrita, mas  a escrita é uma forma de vida.”[8]

A condição ambivalente/ambígua desta obra de Osman Lins reside em não ser apenas um ensaio que resgate a memória da mulher amada (o tema da memória constitui outro portal), aliás, a memória de Júlia Marquezim Enone é a isca que nos conduzirá à reflexão sobre o  processo da escrita literária e os aspectos a serem considerados numa análise. Percebe-se, portanto, que as forças imanentes surgem “através das tensões do campo propriamente literário”[9] e que, a batalha que se trava entre Maria de França e o INPS não passa de um jogo, ambíguo, por certo, que será a trilha reveladora da paratopia da escritora Júlia Marquezim, que reveste a paratopia do próprio Osman, o doutor em Letras, na pele do professor secundarista de história natural, que disseca com todo rigor metodológico de sua ciência, o romance de sua “amiga”, questionando os meandros  daqueles que trabalham e vivem de literatura.

Ao cairmos na teia de Júlia, somos encapsulados na escrita dissimulada de um outro eu. É a falácia das aparências já referida; e nos remete “aos “fios selvagens”-   filamentos quase invisíveis que rodeia, por vezes, a teia da aranha comum, formando uma rede plana e prateada que vemos estendidas entre ervas. Embora pareçam leve como o ar, estes fios são tão resistentes que muitos insetos, que com eles se chocam, caem na teia que os espera mais abaixo.”[10]

Constitui-se, pois, a RCG de Enone um antetexto que nos prende no texto RCG de Osman e a medida que este busca apreender e vivificar toda existência daquela, engendra o discurso de vários teóricos e críticos. Não fosse a distância espaço-temporal, arriscaríamos dizer que A Rainha dos Cárceres da Grécia é a exemplificação da teoria de Dominique Maingueneau.

Indo mais além de Osman Lins, isto é, refletindo de modo geral sobre a literatura (e cremos ser esta a provocação deste livro), as abordagens críticas que podem ser levadas a efeito sobre uma obra resvala em esquemas cristalizados que não traduzem a grandeza do texto, quando muito, carnavalizam enganosamente, ou seja, interpretam, não interpenetram. Não experimentam os cinco sentidos do texto, nem permitem  ao leitor, possuidor do sexto sentido, a descoberta dos rituais geradores daquela existência.

“Toda obra de arte configura a sua própria teoria” (RCG. P.57 – 08/11) e, ainda que não subverta o texto, elucida conceitos referenciais que ampliam suas dimensões. Num inextricável tecido intertextual, somos levados a reconhecer a legitimação da tecitura literária como a “negociação insustentável”[11],  efetuada  plenamente na escrita híbrida, da qual Osman Lins é um dos mestres.

Por esta existência frágil e complexa produzida sobre si mesma, somos apanhados no “véu nupcial[12] que nos leva a ver a obra literária como a envolta ( ou seja, a teia produzida para envolver os ovos, feita de “seda dourada, resistente e elástica, à prova de vento e de chuva.”[13]), cuja existência engendra-se a cada leitura e resulta numa nova aranha . Exemplificando:

 

ARANHANDO[14]

                                                                            Kátia Rose

A teia tece

Tecida

Tertúlia

Trama

Tangente

 

Fio solto

Frio roto

 

Remotos laços

Ritos

Gritos

     Grifos

 

Véus

A girar

A girar

A girar

A girar

                        

Eternidade  
 

Atrever-se a ser aranha: este é o resultado a que chegamos. Temos que ser o inseto caído na teia e preso pelo visgo segregado pelo artrópode/artista das letras. Nos dissolvermos em sua solidão, pois solitária também é a leitura, sentir o prazer e a dor do ser/não ser. Nesta insustentável existência transmutarmos: sempre Penélope, sempre Aracne, Teseu-Ariadne.

Como “a verdade é secreta, todas as interrogações dirigidas aos símbolos e aos enigmas nunca dizem a verdade última, mas apenas deslocam o segredo para outro local.”(Eco: 1999,27), continuaremos a “tecitura”  do revelar/conhecer/experimentar o castigo de Atenas para desvendar os portais que levam às outras dimensões.


 

[1] Texto publicado na revista dos alunos da graduação da Universidade Federal de Pernambuco,  Ao Pé da Letra, n° 1, Recife, Agência Gráfica Nacional, 1999.

[2] Lins, Osman. A Rainha dos Cárceres da Grécia. São Paulo: Melhoramentos, 1976.

[3] Usamos a abreviatura RCG para nos referirmos ao romance A Rainha dos Cárceres da Grécia.

[4] Chevalier, Jean & Gheerbrant, Alain.Dicionário dos símbolos. 2ª ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.p.70.

[5] Barthes, Roland. O Prazer do Texto. São Paulo: Perspectiva, 1987, pp.82-83 [ Tradução de J. Guinburg].

[6] Chevalier, Jean & Gheerbrant, Alain. Dicionário dos símbolos. 2ª ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1989, p.71 

[7] George, Jean. As mais hábeis fiandeiras do mundo in: O assombroso mundo da natureza. 2 ª.,  Lisboa:Seleções do Reader’s Digest,   1976.p.49.

[8] Maingueneau, Dominique. O contexto da obra literária. São Paulo: Martins Fontes, 1995. Pp.46-47.

[9] Idem, p. 30.

[10] George, Jean. Op.cit. p.50

[11] Maingueneau, Dominique, op.cit. p.60

[12] “George, Jean, op. cit. p.52

[13] George, Jean. Op. cit. P.52

[14] Graúna, Graça (org.). Antologia poemas do cárcere. N.1,  fev.99 Recife: UFPE-Letras


 

 

 

 

 

18.11.2005