Kátia Rose Pinho
Teseu e Aracne: O amor
no abismo
Refletir sobre o
processo da “tecitura” literária parece-nos a mola mestra da chamada
meta-ficção e vários são os autores que a realizam. São ferozes
predadores que, a fim de alcançarem suas presas, usam subtis fios
trançados. Traiçoeiramente somos tragados pela dissimulação do
discurso, o qual se desfaz/refaz em cada linha. Nossa aventura
começa onde o fim não existe: no abismo das palavras-tradutoras do
ofício de escrever.
Escrever sobre
Osman Lins não é tarefa fácil. Parece que as palavras somem e o
discurso que poderíamos produzir enreda-se no abissal.
Caímos na armadilha.
Como o próprio Osman (o escritor) diz em A Rainha dos
Cárceres da Grécia:
“Sou uma aranha cuspindo minha teia” e toda teia é armadilha
em que os incautos são acorrentados para serem consumidos até a
última gota. Não há quem passe incólume a escrita de Osman Lins.
Escrita transgressora que requer leitores atentos, críticos o
suficiente para irem além das palavras.
Não
estamos tentando a interpretação de um trecho que nos saltou aos
olhos. Aliás interpretar seria reduzir ao nada toda expectativa
gerada pelo texto. Experimentar a sensação de sermos aranha e presa
desta mesma aranha: eis o que pode ser um dos portais para a outra
dimensão fornecido pela RCG.
Por que a aranha? Ela representa “a epifania lunar, dedicada à
fiação e à tecelagem”.
A aranha tece...
Tecer-teia-texto-textura-trama-tecido-tecelagem-tecelã. Como nos
diz Roland Barthes
:
Texto quer dizer
Tecido; mas enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado por um
produto, por um véu todo acabado, por trás do qual se mantém, mais
ou menos oculto, o sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no
tecido, a idéia gerativa de que o texto se faz, se trabalha através
de um entrelaçamento perpétuo; perdido neste tecido – nessa textura
– o sujeito se desfaz nele qual aranha que se dissolvesse ela mesma
nas secreções construtivas de sua teia. Se gostássemos de
neologismos, poderíamos definir a teoria do texto como uma
hifologia (hiphos é o tecido e a teia da aranha).
A aranha,
tecelã; Maria de França, tecelã por onze meses (RCG: p. 16; 04/08);
o narrador, professor secundarista de História Natural, “aranha
cuspindo a teia”, isto é , tecendo. Num desafio constante aos
deuses, Aracne mantém-se viva, e ousamos afirmar que sobrevive em
cada romancista. Isto nos remete ao simbolismo da aranha, que tem
várias interpretações, de acordo com os variados povos; podendo
representar “a criadora cósmica, a divindade superior ou o
demiurgo”.
Se esta espécie tem sua importância, não menos importante é o seu
produto: a teia. Feita de fios cuja aparente fragilidade nos remete
à falácia das aparências; essa teia pode ser ilusão, mas pode ser
verdadeira porque, manifestação da essência.
A ilusão em RCG começa pela capa
da primeira edição publicada pela Editora Melhoramentos: na
ilustração, um rosto sem olhos (ou se existem , estão sob uma
venda), a cabeça de um pássaro ocupando a região da testa; a boca ,
algo que nos sugere ser a balança da justiça ou uma ponte sobre a
água que ocupa o lugar que deveria ser o queixo. Esta é a figura
central . Sobre ela o título da obra e o nome do autor. Na parte
inferior, a palavra romance. Trata-se realmente de um
romance? Eis a armadilha. Poderia ser um romance escrito em forma de
diário, mas rompendo as amarras estruturais da narrativa
tradicional, somo colocados diante de um ensaio crítico sobre um
romance . “Quando tudo faz supor termos nas mãos uma obra
convencional, ocorre o inverso”( RCG: p. 09 – 17/07)
Deparamo-nos, então, com Ariadne
fornecendo a Teseu o novelo de linha que lhe permitirá entrar e sair
do labirinto sem se perder. Concomitantemente, associamos Júlia
Marquezim Enone a Ariadne e, Teseu ao professor secundarista. Por
outro lado: o narrador é Ariadne e nós,Teseus, penetrando no
labirinto da escrita, de uma escrita ambivalente e ambígua.
Ambigüidade exposta ao longo da narrativa sob várias perspectivas:
Maria de França e o INPS (p. 19 – 19/08); o desempenho do vigia
Nicolau Pompeu, o Dudu do time Torre (p. 34 – 10/10); Rônfilo
Rivaldo que se insere ambiguamente “entre o saber e o não saber” (p.
48 – 29/10); o papel do professor de literatura (p. 71 – 02/12);
o papel do narrador em uma narrativa( pg. 76 – 07/12); Júlia M.
Enone adolescente casada e sem marido (p. 131 – 13/04); culminando
com a mais ambígua e translúcida/opaca asserção: “Mas fonte de teia,
fiz-me ambíguo ( o “eu” da escrita é uma cápsula cava) e nada me
proíbe de escrever – o que pode ou não ser falso – que,
simultaneamente, teço a teia e me teço a mim.”(p. 198 – 23/09).
Esse se colocar como “aranha:
fonte de teia”, instiga-nos a conhecer a aranha. Lembramos aqui
que, o autor desta escrita é professor de História Natural, e que
falar de “aranhas e falenas” ganha ares de magia (p.72 – 02/12) e
mágica são as palavras que transcendem o simples aspecto da
biologia. Não que não tenham nada em comum. Eles têm problemas de
visão (cf. p.27 - 04/10: “Tenho maus olhos”); são solitários;
comunicam-se com o mundo e inscrevem-se nele através do que
produzem. Ambos necessitam de um outro para sobreviverem, pego a
traição, apanhado pela ilusão das aparências. O animal, das presas
que caem em sua teia, a fim de alimentar-se; e o escritor para
presentificar sua existência, precisa do leitor, que será tragado
pelo ardil de sua trama. Todavia, algo os distancia. Enquanto para
aquele, é de sua natureza esta condição, para este há várias etapas
a serem vencidas, pois ele só efetua sua existência na criação. Mas
sendo este senhor inominado uma aranha, é-nos lícito estabelecer a
seguinte equação:
ESCRITOR = ARANHA —>
ROMANCE = TEIA.
Do mesmo
modo que o artrópode cria o que será seu meio de sobrevivência no
mundo, (“os fios com tece a teia constituem na realidade os seus
olhos, os seus ouvidos, a sua voz e os seus dedos.”),
“a existência do criador desenvolve-se em função da parte de si
mesma constituída pela obra já terminada, em curso de remate ou a
ser construída” e que
“a vida do escritor está a sombra da escrita, mas a escrita é uma
forma de vida.”
A condição
ambivalente/ambígua desta obra de Osman Lins reside em não ser
apenas um ensaio que resgate a memória da mulher amada (o tema da
memória constitui outro portal), aliás, a memória de Júlia Marquezim
Enone é a isca que nos conduzirá à reflexão sobre o processo da
escrita literária e os aspectos a serem considerados numa análise.
Percebe-se, portanto, que as forças imanentes surgem “através das
tensões do campo propriamente literário”
e que, a batalha que se trava entre Maria de França e o INPS não
passa de um jogo, ambíguo, por certo, que será a trilha reveladora
da paratopia da escritora Júlia Marquezim, que reveste a paratopia
do próprio Osman, o doutor em Letras, na pele do professor
secundarista de história natural, que disseca com todo rigor
metodológico de sua ciência, o romance de sua “amiga”, questionando
os meandros daqueles que trabalham e vivem de literatura.
Ao cairmos
na teia de Júlia, somos encapsulados na escrita dissimulada de um
outro eu. É a falácia das aparências já referida; e nos remete “aos
“fios selvagens”- filamentos quase invisíveis que rodeia, por
vezes, a teia da aranha comum, formando uma rede plana e prateada
que vemos estendidas entre ervas. Embora pareçam leve como o ar,
estes fios são tão resistentes que muitos insetos, que com eles se
chocam, caem na teia que os espera mais abaixo.”
Constitui-se,
pois, a RCG de Enone um antetexto que nos prende no texto RCG de
Osman e a medida que este busca apreender e vivificar toda
existência daquela, engendra o discurso de vários teóricos e
críticos. Não fosse a distância espaço-temporal, arriscaríamos dizer
que A Rainha dos Cárceres da Grécia é a exemplificação da teoria de
Dominique Maingueneau.
Indo mais além de Osman Lins,
isto é, refletindo de modo geral sobre a literatura (e cremos ser
esta a provocação deste livro), as abordagens críticas que podem ser
levadas a efeito sobre uma obra resvala em esquemas cristalizados
que não traduzem a grandeza do texto, quando muito, carnavalizam
enganosamente, ou seja, interpretam, não interpenetram. Não
experimentam os cinco sentidos do texto, nem permitem ao leitor,
possuidor do sexto sentido, a descoberta dos rituais geradores
daquela existência.
“Toda obra
de arte configura a sua própria teoria” (RCG. P.57 – 08/11) e, ainda
que não subverta o texto, elucida conceitos referenciais que ampliam
suas dimensões. Num inextricável tecido intertextual, somos levados
a reconhecer a legitimação da tecitura literária como a “negociação
insustentável”,
efetuada plenamente na escrita híbrida, da qual Osman Lins é um dos
mestres.
Por esta
existência frágil e complexa produzida sobre si mesma, somos
apanhados no “véu nupcial
que nos leva a ver a obra literária como a envolta ( ou seja, a teia
produzida para envolver os ovos, feita de “seda dourada, resistente
e elástica, à prova de vento e de chuva.”),
cuja existência engendra-se a cada leitura e resulta numa nova
aranha . Exemplificando:
ARANHANDO
Kátia Rose
A teia tece
Tecida
Tertúlia
Trama
Tangente
Fio solto
Frio roto
Remotos laços
Ritos
Gritos
Grifos
Véus
A
girar
A
girar
A
girar
A
girar
Eternidade
Atrever-se a ser aranha: este é o resultado a que chegamos. Temos
que ser o inseto caído na teia e preso pelo visgo segregado pelo
artrópode/artista das letras. Nos dissolvermos em sua solidão, pois
solitária também é a leitura, sentir o prazer e a dor do ser/não
ser. Nesta insustentável existência transmutarmos: sempre Penélope,
sempre Aracne, Teseu-Ariadne.
Como “a verdade é secreta, todas
as interrogações dirigidas aos símbolos e aos enigmas nunca dizem a
verdade última, mas apenas deslocam o segredo para outro
local.”(Eco: 1999,27), continuaremos a “tecitura” do
revelar/conhecer/experimentar o castigo de Atenas para desvendar os
portais que levam às outras dimensões.
Texto publicado na revista dos alunos da graduação da
Universidade Federal de Pernambuco, Ao Pé da Letra,
n° 1, Recife, Agência Gráfica Nacional, 1999.
Lins, Osman. A Rainha dos Cárceres da Grécia. São
Paulo: Melhoramentos, 1976.
Usamos a abreviatura RCG para nos referirmos ao romance A
Rainha dos Cárceres da Grécia.
Chevalier, Jean & Gheerbrant, Alain.Dicionário dos
símbolos. 2ª ed., Rio de Janeiro: José Olympio,
1989.p.70.
Barthes, Roland. O Prazer do Texto. São Paulo:
Perspectiva, 1987, pp.82-83 [ Tradução de J. Guinburg].
Chevalier, Jean & Gheerbrant, Alain. Dicionário
dos símbolos. 2ª ed., Rio de Janeiro: José Olympio,
1989, p.71
George, Jean. As mais hábeis fiandeiras do mundo in: O
assombroso mundo da natureza. 2 ª., Lisboa:Seleções do
Reader’s Digest, 1976.p.49.
Maingueneau, Dominique. O contexto da obra literária.
São Paulo: Martins Fontes, 1995. Pp.46-47.
George, Jean. Op.cit. p.50
Maingueneau, Dominique, op.cit. p.60
“George, Jean, op. cit. p.52
George, Jean. Op. cit. P.52
Graúna, Graça (org.). Antologia poemas do cárcere. N.1,
fev.99 Recife: UFPE-Letras
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