Laeticia Jensen Eble
Uma
leitura da “Barca Bela”
BARCA BELA
Almeida Garrett
Pescador da barca bela,
Onde vais pescar com ela.
Que é tão bela,
Oh pescador?
Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?
Colhe a vela,
Oh pescador!
Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela...
Mas cautela,
Oh pescador!
Não se enrede a rede nela,
Que perdido é remo e vela,
Só de vê-la,
Oh pescador.
Pescador da barca bela,
Inda é tempo, foge dela,
Foge dela
Oh pescador!
No poema Barca Bela,
como é observável em outros poemas de Almeida Garrett, é possível
extrair diversos sentidos, e justamente essa falta de definição nos
mostra que a obra fala de si mesma, a leitura se torna
auto-referente, o poema evoca uma metalinguagem; na criação de uma
encenação, o texto se torna auto-consciente. Barca Bela
traz em seu bojo o discurso romântico acerca da concepção da criação
literária, poética e artística.
No objetivo da arte em buscar a
verdade, o romantismo buscou fórmulas radicalmente diferentes do
classicismo e neoclassicismo, então mergulhados no universo da
ilustração. Nestes prezava-se a razão. Para seus defensores o
verdadeiro é o natural e o natural é o racional. Dentro da visão
iluminista prezavam-se, na poesia, valores como clareza, ordem
lógica, adequação ao pensamento. Em Portugal, figuras como Verney,
que liderava o movimento de ilustração, pregavam o predomínio
absoluto à aplicação das normas, extremamente racionalistas, para
eles poetar dependia de conhecer as normas da poesia; quando alguém
as abandona e confia na inspiração, desanda. O engenho (imaginação)
do poeta deveria estar permanentemente subordinado ao juízo, muito
mais importante. Sem obediência à razão não haveria beleza.
O romantismo propõe, com sua carga
revolucionária, a quebra desse sistema rígido e alienante imposto
pelo classicismo. Para o romântico, o encontro com a verdade se
alcança pela sinceridade, o homem busca o que tem de mais sincero: o
seu instinto, o seu sentimento, finalmente dando vazão ao seu mundo
interior. E são os preceitos românticos em contestação ao
classicismo, que Almeida Garrett vem evocar em seu poema.
Na primeira estrofe o poeta
constrói seu cenário e inicia o diálogo com seu interlocutor. O
eu-lírico ao dirigir-se ao pescador, na verdade, revela o poeta
falando consigo mesmo, orientando a si mesmo na senda da estética
romântica. Constrói-se uma imagem analógica em que a barca bela é a
arte poética, o pescador é o próprio poeta, e o poema é sua rede.
Ora, o pescador não escolhe o que pescará em sua rede, os peixes
nela se prendem ao acaso, obedecendo a uma ordem (ou a um caos) que
independe da vontade dele. Assim o é o poeta romântico que, com sua
rede (que é o texto) não escolhe matematicamente as palavras que
comporão sua obra. Elas não obedecem a uma ordem consciente sua, mas
vêm constituir o texto por força de uma vontade maior inerente a
elas mesmas em se fazerem cantar. Como se lê em Jaa Torrano, no seu
estudo da Teogonia, as palavras cantadas - que são as
Musas - são o dirigente-constitutivo do canto, tendo-se nelas o
princípio por que se deixar guiar, sendo pela força delas que se
cante. “Não é nem a voz nem a habilidade humana do cantor que
imprimirá sentido e força, direção e presença ao canto, mas é a
própria força e presença das Musas que gera e dirige o nosso canto.”
Na segunda estrofe o poeta
ambienta sua encenação estabelecendo a escuridão do céu nublado
no qual a última estrela se esconde. A atmosfera noturna é
típica do romantismo, apropriada à vazão da imaginação e ao
desencadear dos sonhos. Nesse aspecto se opõe à afinidade clássica
com a luz clara do dia que viabiliza a razão. A noite se ajusta
melhor ao mistério, ao inexplicável, aos sentimentos indefiníveis,
às profundezas da alma, à melancolia, ao mundo do inconsciente. À
noite se liga o sonho, que para o romântico é o estado ideal em que
o homem pode comunicar-se com a realidade profunda do universo. Tal
estado, verificável também fora do sonho, caracterizado pelo
enfraquecimento da função do real e do sentido da exterioridade e
por uma potenciação das faculdades da alma e da imaginação, é
considerado pelos românticos como momentos ideais da criação
poética. O estado de sonho representa um mundo próprio, da
imaginação sem limite. A imaginação, para o romântico, é força
autenticamente criadora, capaz de libertar o homem dos limites do
mundo sensível e de o transportar até Deus. A imaginação criadora é
o fundamento da arte, que perderia o sentido sob o controle da
razão, como preceituavam os classicistas. A imaginação é instrumento
que permite ao poeta o conhecimento de uma realidade invisível,
divina. E a poesia é a expressão da imaginação. Assim, o poeta
repete, na criação do poema, o divino ato da criação originária e
absoluta. Dentro dessa concepção do poeta como participante do
eterno, do infinito, do uno, não pode haver tempo,nem espaço, nem
medida.
Ao pescador, que antes navegava
com sua barca para uma direção definida, orientada pela vela, que
carrega a idéia de movimento ordenado (regras tradicionais), o
eu-lírico recomenda que colha a vela ficando, portanto, à deriva.
Por esse recurso ele ordena ao pescador (e por conseqüência ao
próprio poeta) que se entregue à evasão. Profundamente desgostado da
realidade que o cerca, em conflito com a sociedade e dilacerado
pelos seus dilemas íntimos, o romântico procura avidamente a evasão,
quer seja no espaço e no tempo, no sonho e no fantástico, na orgia e
na dissipação.
Na terceira estrofe o eu-lírico
nos dá uma dimensão mística da criação poética, da concepção de
poesia como uma revelação do invisível, quando introduz a imagem do
canto da sereia, recuperada do mito de Ulisses. Nesse aspecto
recupera a referência ao sagrado, ausente na modernidade. O canto da
sereia é o furor poético, com todo seu poder encantatório, efeito
tão almejado pelos poetas. O poeta romântico busca a ascensão da voz
misteriosa da sereia - que é a própria poesia, enquanto se enquadra
na tarefa de psicografá-la. Levando o pescador na direção do canto
da sereia o eu-lírico, recomenda, em verdade, ao poeta, que dê vazão
ao gênio criativo e recupere o caráter sagrado da poesia. Mas
recomenda ainda cautela. O que o poeta teme afinal? Fica
momentaneamente em aberto.
Na quarta estrofe o poeta explica
porque o pescador deve ter cuidado ao se aproximar da sereia. Por um
deslize ou descuido, o pescador poderia embaraçar sua rede nela e
estaria perdido. Nessa passagem mostra os limites com que se deparam
os românticos, que se enredam e são traídos por suas próprias
intenções. A possibilidade de criação de um mundo interior,
paralelo, não se efetiva como fuga ao mundo social. É a percepção da
auto-ironia. O homem romântico percebe-se como produto da sociedade,
e como fruto da modernidade, e admite que sua fuga da alienação
revela-se como escapismo falso. O privilégio de “ouvir o canto da
sereia”, que só o poeta detém, provoca um sentimento de culpa. O
escritor ocupa uma visão afortunada na sociedade, com acesso a um
privilégio inacessível à grande maioria. A arte como possibilidade
de elevação, a poesia como fuga da alienação, a rebeldia que
demonstra ter, a contestação do romântico, se esvaziam de sentido
quando ele se percebe de volta ao mundo burguês, enquadrado nos
padrões sociais, justamente pelo instrumento que dispunha para se
rebelar, a literatura. A literatura em seu processo produtivo,
repete o processo de produção do mundo moderno. É a própria
representação da segmentação social, da fragmentação injusta que se
instaurou na sociedade, da massificação de muitos em função do
privilégio de poucos. Fazer literatura é ser o privilegiado, é estar
inserido na condição burguesa. O escritor romântico ao pretender
criticar a modernidade em sua nocividade, percebe-se como
representante de tudo aquilo que critica e adverte o pescador/poeta
para o perigo da culpa.
Na quinta e última estrofe o poeta
parece querer impedir o pescador/poeta de deixar-se levar pelo
encantamento da sereia, mas essa tentativa parece, na verdade,
esvaziada. A repetição da ordem “foge dela,/Foge dela” parece
esvaziar-se do sentido, tornando-se uma ordem que não deve ser
cumprida, a repetição da ordem revela a negação da ordem. A vontade
de se render e se entregar ao furor poético, apesar dos riscos,
sobrepõe-se ao medo da perdição.
Leia obra poética de Almeida Garrett
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