Leila Krüger

 

 

 

 

LEÕES

 

Você só tem um coração; não o entregue a quem não saberá carregá-lo com ternura. Não o entregue aos leões, para que o dilacerem a dentadas selvagens que ficam marcadas por muito tempo. Às vezes para sempre. Não se entregue a quem não te devolve. Não se negue... Você só tem um coração, e ele está só dentro de você; não o perca de vista... É necessário alcançá-lo entre o êxtase e a razão, em pontos de equilíbrio raros e fundos. Mas coração é pena, um ventinho de amor o leva às estrelas... Você só tem um coração, segure-o firme na sua mão. Diga-lhe que é seu – embora ele não vá escutar. Mime-o, converse com ele sobre os novos verões que poderão mudar tudo. Ensine a ele poesia, quem sabe Vinícius de Moraes e um pouco de Clarice Lispector. E também a música, já que ela tem a capacidade inacreditável de compreender o invisível. Você só tem um coração, não o esqueça por nada neste mundo. Não o venda, não o hipoteque, não o empreste e muito menos o dê – a não ser que receba outro coração em troca, um que você queira. Não o dê assim para qualquer um, um embrulho estranho sem destino certo. E o mais importante: dê! Um dia... Preserve-se. Não demais, não de menos. Você só tem um coração e nele cabe o amor. Ainda que transborde. Ainda que amoleça, endureça e depois transforme. Amor é matéria de mistério, coração é matéria de infinito. Sem mais explicações! Mas sabemos que todos estes milhares de fórmulas sobre o coração já se provaram falhos... Apenas então tente salvá-lo. Descubra sua própria salvação, guarde-a com sua chave e com seu nome ainda que esse nome não seja “amor”. Embora vá provavelmente ser, sem talvez você saber.

 

 

 

 

 

DESTINOS

 

Então vem comigo, loucos caminhos de vidro

            tateando estrelas, infinitas centelhas...

                                                             infinitas

            e cordilheiras repletas de luz.

 

E nas pontas dos dedos,

                          sutis segredos

                                       sagrados de paz.

 

Se perguntarem: “Para onde vão?”

Diremos: – Voar! Voar sobre

os mais intocados caminhos...

divinamente incompreendidos

suavemente desimpedidos...

 

Talvez escritos

               – nossos destinos –

                                       na palma da vossa mão.

 

 

 

 

 

 

FIM DE LINHA


Pisem os trilhos de meu ventre
por favor
trens que viajam sobre gente

trens dementes

sigam até o pescoço
trens valentes
descarrilem em meu dorso

sempre em frente!

Trens de osso
trens de aço
trens
         que
              bra
                   dos

 

 

 

 

 

 

                          O ESPELHO

 

Tenho em mim toda a calma e toda a falta

tenho tuas feições delicadas

dormindo lânguidas em paredes cálidas

e tenho tua cor, tua sutil flor em rosa...

– um vazio que chamo apenas de amor.

     

Fiz-me escada louca pra mirar tua boca

e cair do alto da morada frouxa

que é tua louça, que é tua roupa

que é teu rosto suposto no espelho

                                   da insensatez

– não, não me quebres... eu sou teu resto! 

 

 

 

 

 

PUREZA

 

Eu nasci de sorriso escondido, de rosto de pedra

                                                  e peito de águia.

 

Eu nasci de asas. Um pouquinho cansadas...

 

Eu nasci de pernas que voltam e braços que fogem,

                                          e nunca se entendem...

 

Eu nasci de exagero,

longas paisagens de um janeiro sem fim.

 

Eu nasci de pura coragem, puro delírio,

                                            puro amor selvagem.

 

Eu nasci puramente viagem... puramente você.

 

 

 

 

 

 

QUASE VERÃO

 


Há uma chuva negra e macia na vidraça.

                                            Quase cinza, um tanto fraca... me acaricia.

 

Pingos me olham – esperando o chão cegar.

                                                                        Chegar!

 E o desespero do que chove no mesmo lugar. E a nuvem que se move...

sobre as palavras... que eu não te dei. Negra na janela, esperando o chão.
Sou eu quem chove – antes do verão...

Sou eu quem grita! – Ao perder teu rosto de areia, entre minhas mãos...

 

 

 

 

 

SEGREDOS

Eu às vezes me entorpeço de sonhos atemporais...

            cruzo pontes francesas em rios lilases de outono

girassóis de Van Gogh acarinhando um céu morno

vaquinhas malhadas holandesas

que uma criança perdeu em sua fazenda

            atrás das mortas moendas, cândidas cantilenas

            correndo a colina, valseando o vale

            vicejando a vida que não é mais. Ou que nunca foi...

            eu esqueço se vejo ou se posso! Se quero

            ou se entendo, se amo, ou bebo segredos...

 

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