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Juarez Leitão


 

 Viagem ao Tesouro da Rainha



"Sua aparição, por ser tão desejada, havia enganado a corte.
Os sacerdotes do escalão inferior jogaram nos piveteiros de
ouro uma pletora de essências e perfumes. Os soldados, que
até entro andavam distraídos pelo convés, permitindo-se as
atitudes mais indolentes, apressaram-se a formar um corredor,
à guisa de caminho sagrado, perfilando-se com o porte altivo
adequado às grandes cerimônias. As escravas arrumaram
o trono de baldaquim, ao redor do ~ agrupavam-se os cortesãos
mais íntimos. O harpista cego foi transportado quase voando, e as
tangedoras de alaúde afinaram seus delicados instrumentos.
Também compareceram as dançarinas, os equilibristas e o narrador
de histórias fantásticas. A RAINHA CHEGAVA, de Terenci Moix,
in Cleópatra, Rainha e Mulher "

1. Acaso

Zumbe o verão
zumbem as abelhas tardas
zumbem as coisas e os modos do verão
as afogadas bênçãos e os acicates
construídos no ofício dos combates.
Zumbe a tristeza
insepulta e peregrina
resvalando suas asas pelos becos.
Mas
na haste do tempo
brota a rosa da circunstância
e dissemina
seu aroma em meio à ventania:
e o acaso galopa
na solidão e no pó da travessia.

2. Aparição

Quando surgiste
dos desvãos do nada
naquela noite sem razões
os caminhos, de súbito, se acenderam.
Eras a epifania do verão
o pássaro do rei
o rio transparente onde se via
esse cardume intrépido dos desejos.

Trazias do Louvre o suave sorriso
a inelutável graça
a mansa solidão dos séculos.

E pisavas
luminosa e serena como um peixe
(na margem ansiosa da noite)
as fracas prevalências de meu dia.

Ah, Senhora.
Eu te vi assim
como um poema em gesta ou já nascido
um canto inaugural
o salmo vertical/vertebral
talo de girassol
esguia e de escarlate, esguia,
tal a fada lunar no fim da busca
no cumprimento final da profecia.

3. Salve-me Profeta

Salve-me, Sidharta,
desta Aparição,
assim posta no espelho da noite.
Do magneto dos olhos
(agulhas negras de mistério vivo)
Do enxame dos cabelos
(abelhas grávidas de mel)
Do dorso musical
(linha de fina seda).

Valha-me, Profeta,
Das farpas dos seios
(ávidos guerreiros em resoluta afronta)
Do ardente umbigo
(valente lampião desta chapada)
Do quadril moreno,
imponente senhor de engenho
Casa Grande & Senzala
altivez cadenciada
ditando as normas da capitania.

Mas não me acuda não,
não me socorra,
quando o feitiço denso destas pernas
pisar o chão de meu pobre destino:
Pernas de céu (sel)
pernas de ma(r)
colunas de calor e maresia
torres trigueiras provocando os sinos
dois hinos (dois hinos verticais)
dois gritos puros
no eco dos abismos.
Pernas de céu
pernas de mar:
rotas de Sagres (aula e lição)
curso e transcurso
mapa de Calicute
antenas das alvíssaras,
estandartes do conquistador
no estômago dos estarrecidos
no beiço abismado dos parvos.

Pernas de céu (nuvens em franca precipitação)
Pernas de mar (melodias de encantamento
submerso).

Profeta, não se aproxime:
quero o sabor da maldição.

4. Rio Rainha

Reponho os pormenores da visão
e me vejo rendido e colonizado
aos passos luminosos da Rainha:
Esse sorriso
esses dentes de sol
resumem a sintaxe da sedução.
Olhos que interrogam o pasmo
a indecisão
são de azeite e queijo bem servidos
e derramam, tranqüilos,
sortilégios de mel pelas estradas.

Rio rainha rio
rumoreja a memória elementar
minha memória
águas claras correntes cachoeiras
biqueiras cuias anzóis saltos valentes
chuva e nudez banhando de um menino
a emoção implume.
Serpente de cristal descendo a serra
fazendo a festa a terra e o costume.

Rio rainha rio
braços de Iara ou simples arrepio?

5. Especiaria

Rainha,
atrás desta serenidade
guardas,
ciosa,
a caixa rubra de tuas fantasias.
Este perfil fidalgo
ereto
o cheiro de especiaria
e elegância clara
indiscutível
o discurso silencioso do olhar...
são prismas de um mistério cordial.
Mas eu sou marinheiro louco
(um Odisseu tocado pelo encanto)
e tenho pretensões aos sete mares.

6. Naqueles Tempos

Os seresteiros viraram canções.
Velhas canções.
Acabaram as sacadas e os sobrados
(e os suspiros).
As flores estão caras, raras,
os versos ficaram óbvios
banalizaram a corte
rasgaram o ritual da sedução.

As pessoas são rápidas no gatilho:
falam que vão amar
e já estão, de repente, em Saragozza.

É proibida a serenidade
a parcimônia.
Extinguiram o donaire
o galanteio
a carta de juras
o poema confessional
a caixinha de música e as metáforas.

Tudo virou facada.
Unha arrancada.

E eu fiquei neste planeta estranho
como um fantasma de melancolia
arrastando correntes
em plena luz do dia.

7. Travessia

Que caminhos terei de percorrer
para chegar à cauda do arco-íris?
Despachei emissários
soprei clarins
pus os fins pelos meios
e os meios pelos fins
abusando dos golpes temerários.
Da aurora descem as mulas com a farinha
partem do ocaso os trens em disparada
cheios de mimos
os navios reboam suas buzinas
na bruma densa
cavalgo uma águia branca sobre o vale.

Cubro céus, terra e mar
varro a rotina e os pastos incomuns
escalo a Serra dos Cocos
ergo fogueiras
palmilho os carrascais dos inhamuns.

E ela
absoluta
sublime e bela
caule folhagem e fruta
o próprio laranjal da Gameleira
veste de ouro o sonho
a sede
e o salto
no lado proibido da fronteira.

Está lá
prenda no vento
perto de mim, dona do pensamento
dos planos e roteiros de meus gestos,
mas é a névoa
e se avanço (por força irrecusável)
a mesma solidão abre-me o mapa
e mostra o horizonte interminável.

8. Gazel do Encantado

Vinde, Rainha,
à alma rude deste anjo esdrúxulo.
Tenho o peito às escâncaras.
O sobrevivente das fanfarras
espera a visita com sua corneta áspera
em pronta disposição de uso.
A casa está malcuidada
cresce a grama no vestíbulo
late um cão esquálido
o galo erra as horas da manhã.

Mas na dispensa
tenho os queijos da infância
a ponte sobre o Poty
e o susto dos relâmpagos.

Guardo aqui
cabras e lamparinas
o canto das cigarras
e as ávidas pupilas.

Tenho potes repletos de tardes chuvosas
pitombas e ladeiras
enchem alforges de dor.

De uma corda de crenças
pendem tímidas lembranças
uma batina escura
canta, impávida, o TE DEUM;
o roto escapulário
lembra medos antigos
e esta rede foi feita
de NOVE SEXTAS-FEIRAS.

Vinde, Rainha,
e eu te darei duas mãos
o sonho de Quixote
e um coração rural:

das mãos faço um abraço, um bolo de fubá
um catavento;
do sonho, uma viagem
pelas rotas tribais da persistência;
mas deste coração (que é minha essência)
faze tu qualquer coisa, Minha Amiga:
um tépido travesseiro, uma cantiga
um alpendre à tardinha, rede armada,
som de ovelhas e vacas amojadas
chuva nas telhas de uma casa antiga.
Faze do coração uma campina
ou uma rua cheia de meninos
uma montanha azul de onde se vejam
os nebulosos rastros dos destinos.
Os sonhos amarelos do pomar,
um sino de aldeia no seu templo
ou um cavalo baio pra montar
tua paixão andeja, por exemplo.

Vinde, Rainha,
para este outro lado
escutar o gazel do encantado

9. Porto

Vestir de cimento e ferro
esta viagem!
túnel esmaltado de ponderações
protoplasma de paciência e conjecturas,
O tempo
a dor
o vinho derramado.

O canto sussurrado para os dedos
a janela
a noite ocidental
a ânsia dos relâmpagos.

Insônia e cupidez
lâmina ensaiada
um olho cru suspenso nas esquinas.

E o mar
e o mar
e o mar ...

Só quem conhece o travo das esperas
sabe o que é porto.

10. Em tuas Terras

Minhas mãos em tuas terras
exploram os acidentes:
há sede nos meus passos
e promessas de chuva nas alturas.
Ando na aberta invenção do prazer
e minha tarefa, oh Terra, é cultivar-te.

Pássaro
toco a nuvem dos seios
e arrulho no pescoço cálido.

Ah, o veludo do ventre,
dourado matapasto,
onde
como um besouro vagaroso
me arrasto a esmo
tentando achar destino.

Quero vinho e canção
trigo e candeias
quero estas mornas
areias de tuas coxas em aflição.

Não há falas que digam
(ou que maldigam)
tudo o que posso achar nas tuas campinas:
o salitre da axila
o búzio do umbigo (com seu rumor de mar)
o sal do lago que resume a festa
o promissor serrote dos quadris.

vem o tempo fechado dos relâmpagos
o vale se arrumou para o plantio:
um rude camponês e sua amada
abrem a seara
aos golpes decididos da enxada.

A chuva, o sol
o fogo das coivaras
a égua relinchando na lonjura,
e um caititu a disparar audácias
nos ásperos labirintos da loucura ...

A lavoura se faz destes esforços
do duro encanto dos suores.