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Lena Jesus Ponte



2. A prosa: Um pé na realidade, outro na fantasia

 

 

2.1. O pé na realidade
 

2.1.1. Em 1980, ainda com a pequena experiência da publicação de um livro de poesias e a participação numa antologia poética, Wanderlino Teixeira Leite Netto resolveu, “por própria conta
e risco”, segundo suas palavras, lançar seu primeiro trabalho em prosa – o livro de crônicas De individualidades preservadas à incredulidade do meu zíper, coletânea de 34 textos, modesta do ponto de vista gráfico, mas já revelando um escritor com visão de mundo e estilo próprios.

Desponta o cronista, cujo olhar atento observa e analisa tudo que ocorre à sua volta, desde pequenos fatos do quotidiano até as eternas e grandes questões existenciais, passando por vivências pessoais, por tipos humanos curiosos, pelas mudanças de comportamento, pelas injustiças sociais... Sua palavra surge da necessidade de expressão de perplexidades, da ânsia de refletir a respeito de todos os aspectos da realidade, do desejo de instigar o leitor para que partilhe com ele seus questionamentos filosóficos. Na crônica que dá nome ao livro, afirma: “Fiquei matutando cá com
meu zíper, que matutar com botões é coisa do passado, sobre esse pensamento já meio gasto, quase um chavão, mas ainda capaz de provocar coceira em quem gosta de divagar” (p.57). Eis aí o cerne desse trabalho – a divagação, ao mesmo tempo profunda e leve, sobre todo e qualquer acontecimento que desperte a “coceira” reflexiva em quem não se contenta em viver (ou sobreviver) na superfície. No último texto, o autor reforça: “Não me neguem a condição de ser pensante, de agente modificador...” (p.89).

Para escrever suas crônicas, aciona muitas vezes a memória, como em “Minha primeira mulher pelada” (p.23), “Era só pular o muro” (p.31), “Tempos depois, o desabafo” (p.36) e “O que será que serei?” (p.62), em que emergem liricamente do passado a lembrança do primeiro alumbramento, a recordação saudosa da imagem do avô, a namoradinha da adolescência e os diferentes anseios da criança e do jovem que foi. Nesses momentos, a escrita representa uma “busca do tempo perdido” (“Desfile da esquadra nas águas do humor lacrimal” – p.88).

Para outras crônicas, parte de acontecimentos do presente, que lhe chegam pelo telefone, pelo jornal, por conversas ou por outras vivências. Nesses textos, aparece o crítico mordaz e o incansável pensador, que reflete sobre o ato de viver, sobre os relacionamentos afetivos, sobre a relatividade das ditas verdades, sobre os limites (ou a falta deles) entre sonho e realidade, loucura e sanidade... Nessas crônicas de caráter reflexivo, ocorrem com insistência frases interrogativas, nas quais Wanderlino envolve o leitor num jogo de dúvidas e alternativas de caminhos e respostas. Essas perguntas são, muitas vezes, um recurso não só de desnudamento de sua ideologia como também de persuasão. “Dicas”(p.44) constitui um exemplo marcante desse tipo de procedimento.

Mesmo quando aborda temas sérios, o autor vale-se do humor, seja pela presença constante dos jogos de palavras (“Estar só, ficar só, só estar” – p.13) e trocadilhos (“Confiante pisa terra firme. Desconfiado, terrenos movediços. Cruz-crédulo!” – p. 56), seja pela linguagem descontraída, coloquial (como cabe a esse gênero literário) que, embora elegante e correta, não dispensa as gírias do momento (“Croniquinha quase mórbida” ... “O defunto ali, paradão, presenciando tudo, duplamente impotente. Houvesse jeito, não duvidem, botava língua e dava banana!” – p. 17), seja pela revitalização de clichês e provérbios (“Aí é meter o pé na estrada. Nessa cumbuca caçador nenhum bota a mão.” – p. 14).

Na obra em prosa, Wanderlino não esconde seu lado poeta: utiliza toda sorte de ricas metáforas (“Verdade é barro. Serve para moldar santos e demônios. É ferro. Nela são forjados a arma que mata e o crucifixo. É bálsamo e cicuta.”– p.28), antíteses (“As vitórias graúdas têm sabor de mariola e gosto de jiló; cheiram a bode e goiaba madura; ardem feito pimenta e refrescam que nem hortelã. São regadas de suor e lágrimas, marcadas por sorrisos e vincos na testa...” – p.61), recursos fônicos expressivos (“Sem ritos. Sem mitos. Sem planos plenos.” – p.18) e neologismos ( “oftalmocrônica” – p.15, “ressurreicídio” – p.21, “almatizar” – p.33, “issoaquilo” – p. 49). Faz uso de frases curtas, muitas delas nominais, bem ao estilo dos primeiros modernistas (“Meu avô era polêmico. Combativo, venerado, amado e desamado. Acima de tudo um prepotente.”– p.31).

Enfim, sua estréia em prosa já revela um escritor criativo, um artífice da linguagem.

2.1.2. Um ano depois, lança Forca de seda, também em edição modesta, datilografada, produção independente. Na parte I, crônicas; na II, uma narrativa que estabelece curioso e criativo diálogo intertextual com poemas de Carlos Drummond de Andrade; na III, um retorno à poesia, com poemas inéditos. Apesar da qualidade individual de cada segmento, trata-se de livro sem unidade, resultado da dificuldade de um escritor ainda desconhecido em publicar por conta própria. Aqui, neste artigo, interessa-nos a análise da primeira parte, com seus 24 textos em prosa.

Se o primeiro livro de crônicas caracterizava-se pela leveza e humor, este apresenta um tom de maior seriedade e pessimismo, a começar pelo primeiro texto, que dá nome ao livro (“Volto a ruminar silêncios. Acaricio rosas. Cutuco espinhos. Desmantelo o tabuleiro. Saio, o pescoço envolto numa forca de seda.” – p.14). O caráter reflexivo permanece, com abordagens sobre a vida e seus paradoxos, o comportamento do homem urbano, a relatividade de tudo, a insensibilidade do mundo, os muitos “mins” dentro de nós, a ética (e a falta de), o ato de viver, o casamento e o descasamento, o binômio vida/morte, o amor, os relacionamentos afetivos, o amadurecimento, os recomeços...

Não ocorrem mudanças significativas no estilo em relação ao livro anterior. Continua a abordagem do leitor, com o envolvimento dele em reflexões que aparecem pelo uso freqüente de frases interrogativas e do vocativo. Decorrente da persuasão ao receptor, também, a utilização do imperativo. Tais recursos constituem marcas características da função conativa da linguagem (“Assim, amorável leitor, prudência quando alguém lhe disser que muito o ama. Afinal, como relacionar pouco com muito, em se tratando do imensurável?” – p.34). Permanecem, ainda, os criativos jogos de palavras típicos do lado poeta de Wanderlino, que contribuem para amenizar o tom mais denso e tenso dessas crônicas (“Entre afagar-se e afogar-se, embora o ser humano comprovadamente prefira o afago, cada vez mais se afoga.” – p.22; “(Amor) tecendo” – p.33; “Assim meus finados: em nada confinados. Pelo que, mais que nunca, vivos estiveram nesse dia de choros (des)afinados.” – p.41; “Partes à parte, corrijo o rumo...” – p.48). E a criação de palavras, embora em menor quantidade: desachar (p.15), amorômetro (p.33).

2.1.3. Em 1983, já sob a chancela de uma editora (Shogun Arte), o autor publica Cios & entressafras. Conforme identifica Jacy Pacheco no prefácio, essa obra é constituída de 52 crônicas curtas (em geral), mas que apresentam “títulos palavrosos”, de tamanhos propositadamente desproporcionais, à maneira dos clássicos Rabelais e Voltaire e do contemporâneo J. Rodrigues Matias.Wanderlino já utilizara tal procedimento nos dois livros anteriores, mas de forma esparsa. Aqui, há clara intenção de provocar um efeito de estranhamento, se confrontarmos os títulos com os textos em si mesmos, estes, em sua maioria, cada vez mais sintéticos. Alguns desses títulos geram, também, um humor insólito, por meio da coordenação de elementos díspares, como no exemplo a seguir: “Um Columbiforme Irreverente, o Não Vivido e Inibidores Decretos-Leis, em Manhã de Sol Preguiçoso”.

Continua a desenvolver, com abordagens diferentes, temas já tratados anteriormente – elementos de seu universo autobiográfico; tipos humanos interessantes; os afastamentos impostos pela vida; as alterações decorrentes da passagem do tempo; as mudanças nos comportamentos sociais; a vida dentro dos limites exigidos pela “forca de seda”... Lirismo, crítica e reflexão filosófica sempre presentes, ora de forma profunda, ora leve e despretensiosa. Algumas imagens já usadas em crônicas e poemas anteriores são reutilizadas em novos contextos ou serão retomadas em livros posteriores (alguns exemplos nas crônicas das páginas 25, 29, 31, 61 e 74), estabelecendo uma relação intertextual dentro de sua própria obra.

A temática recorrente da relembrança do seu passado aparece nesse livro sob um viés proustiano. Aqui não há o chá e a madelaine como elementos desencadeadores de um retorno ao tempo perdido, mas existe o suco de goiaba (“No momento em que o garçom encheu-me o copo, aspirei cheiro do quintal da casa de meu avô. Ao comentar, provoquei espantos e desconfianças. Tenho culpa de não possuírem narinas assim sensíveis? De que refresco de goiaba não os faça relembrar, sou culpado? Que me permitam, porém, eu que tenho nariz de farejar saudades.” – p.58), a goiaba (“Da chácara na qual reside, minha irmã trouxe goiabas, muitas, que colocou sobre a mesa, numa bacia de plástico. Mal entrei, aspirei infância, pois que minha meninice cheirava a goiaba madura... – p.19) e o caleidoscópio (“Na confusão do formigueiro no qual se transformou o centro da cidade, vislumbro, sobre um tabuleiro, algo que há muito não via e que, na infância, encheu-me de encantamento ... Examino o objeto, experimento. Ao fazê-lo, volto no tempo, lembro-me pirralho.” – p.57).

O recurso de envolvimento do leitor ainda aqui aparece, mas em alguns textos de maneira menos dirigida, já que deixa as reflexões em aberto, apontando várias possibilidades de resposta, o que pressupõe uma participação do receptor para além do texto (“Você, leitor, já se viu numa barra assim?De que forma equacionou? Optou pelo simultâneo? Preferiu o já sabido? Achou melhor arriscar-(se)?Ganhou mais que perdeu? Teria ganho ainda mais, pela perda maior, se fosse outra a escolha?” – p.25). Tal abordagem torna interessante a utilização desse tipo de texto em aulas de redação.

Nesse livro Wanderlino lança mão de vocabulário menos coloquial que nos anteriores. Recorre mesmo a palavras que causam algum estranhamento pelo seu pouco uso no quotidiano, sendo talvez mais um recurso de fino humor. Também geram esse efeito os jogos de palavras, os quais sempre utilizou também com função poética (“Temo, o tema é sempre delicado.” – p.29).

Ocorrem, com freqüência, procedimentos metalingüísticos que promovem o desencadear da reflexão, como acontece nas crônicas das páginas 31, 66, 70 e 73. Às vezes, o cronista chega mesmo a aludir ao Dicionário Aurélio. Esse voltar-se para a própria linguagem reflete a consciência do fazer literário como trabalho, ofício, que se aprofunda cada vez mais em Wanderlino Teixeira. Prova disso é o título do livro, metáfora das fases do processo de criação literária segundo esse autor: “Tenho sido indagado sobre a forma pela qual se processa, em mim, o ato de escrever (...) pode a chispa surgir em ocasiões assim, e não deixo escapar (...) Outras vezes, a idéia não faísca (...) Assim vou, baseado na vida, no cotidiano, nas gentes, na tragicomédia, aparelhando percepções, entre cios e entressafras.” – p. 17.

2.1.4. O próximo livro, Movimento circulatório (1985), representa um desdobramento de Cios e entressafras. Os mesmos títulos longos, que servem de estímulo à curiosidade do leitor, no dizer do prefaciador Vilmar Lassance; semelhantes procedimentos metalingüísticos; envolvimento do receptor; freqüência de frases interrogativas; retorno a alguns temas já tratados em poesias; uso de linguagem poética nas reflexões existenciais; presença de elementos autobiográficos; a crítica e a utopia.

Nele aparece um texto que representa verdadeira profissão de fé da crônica. Leia-se o fragmento a seguir – p.15:

Meu olhar intromete-se por uma janela entreaberta. Nada indiscreto, porém, pois vagava distraído. Não fosse a morosidade do trânsito, certamente passaria ao largo. Em conseqüência, ligou-se, fez-se atento. Já não passeia displicentemente. Observa, sonda, examina, estuda, considera, capta, e me faz chegar sensações. A partir daí, assumo o comando e a responsabilidade. Inclusive pela intromissão, que já não se faz isenta, pois me deixo emaranhar na teia do pensamento. Absolvam meu olhar, ele apenas vagava. Eu, sim, incorrigível, dei trela à imaginação.

 

Ou seja, numa linguagem lírica, Wanderlino como que explica esse gênero literário.

O livro, que não apresenta novidade expressiva em relação aos anteriores, contribui, pela qualidade dos textos, para o aprimoramento estilístico do autor, inclusive no que concerne à concisão na linguagem escrita, que será sua marca na maturidade. Na página 34, eis uma declaração reveladora: “Também me agrada quem tem o poder da síntese, quem consegue com palavras poucas muito dizer.” – p.34
 

2.2. O pé na fantasia
 

2.2.1 Passados dez anos da publicação do último livro de crônicas, Wanderlino Teixeira se propõe a “aproveitar os fragmentos factuais, os episódios fugazes do cotidiano (tomando emprestada a sua experiência como cronista) e transforma-os em fingimento, em ficção”, conforme avalia Iterbio Galiano no prefácio a Noturno em mi bemol.

Sai, pois, do terreno da livre reflexão comandada pela mente, do posicionamento direto diante dos fatos, da inserção de sua visão pessoal e valorativa da realidade e envereda por narrativas ficcionais. Se nos quatro livros de prosa anteriores imperava a razão, este inaugura o primado da imaginação. Não que o autor se tenha afastado do real. Ao contrário, este é revelado a todo momento nos textos. Só que, agora, transfigurado, recriado, de forma a levar o receptor a percebê-lo, por caminhos menos óbvios, de forma sutil. Cúmplice do faz-de-conta, o leitor viaja pelo prazer da narrativa bem contada, mas no fim da estrada percebe que pode enveredar por outras leituras que os textos, em sua polivalência significativa, sugerem.

Embora o imaginário esteja agora no poder, o autor mostra ser a realidade muitas vezes bem mais absurda que a ficção. Pinça do noticiário fatos aparentemente normais, porém bizarros em essência, e transforma-os em contos dramaticamente realistas como o pungente “O fim de semana da velha senhora”. Ou narra histórias verídicas que parecem insólitas, porque insólita é a realidade mesma que as inspirou (“A paz dos ruminantes”). Visita, ainda, a narrativa alegórica de caráter psicológico (“Meia-volta, volver”, “Noturno em mi bemol”, “O espantalho e a vaca”), social (“Edição extraordinária”) ou comportamental (“O jogo dos espelhos”, “Efeitos especiais”, “Rapunzel de cabelos presos”).

Apresenta-se ora lírico (“Andorinhas da Áustria”), ora sarcástico (“O síndico”, “O motorista de Sua Excelência”, “Entre aspas”), ora reflexivo (“Enfim, sós”, “Ossos do ofício”), ora um simples contador de causos (“A loura da luz lilás”, “O vôo da mulher-pássaro”).

Esta obra revela um Wanderlino extremamente criativo na temática. Quanto à linguagem, irá aprimorar-se mais no próximo livro de contos.

2.2.2. O processo iniciado com Noturno em mi bemol acentua-se em Retrato sem moldura (1999). A fértil imaginação do contista cria situações inusitadas ou desvela realidades contundentes por meio de uma linguagem paradoxalmente metafórica. As narrativas curtas conduzem também à reflexão e à crítica, quase sempre por meio do absurdo. Aliado a essa conduta, uma abordagem poética da vida. Os limites (molduras?) entre realidade e fantasia são abolidos por uma visão que não se deseja apenas racional.

Nesse livro, desponta o contista no esplendor de sua maturidade literária, com uma linguagem que, se antes já se mostrava enxuta, agora prima pela máxima concisão, pela eliminação de artifícios desnecessários. O escritor encontrou definitivamente seu estilo. A síntese se mostra não só no nível frasal, mas também na macroestrutura dos contos, reduzidos a seus constituintes essenciais, com alto grau de condensação informativa e poética.

Os três contos nos quais melhor se realizam as três vertentes do livro – a crítica, a filosófica e a lírica – são “Discurso de posse”, “O ocaso do artista” e “As coxas de Hermínia”, textos que brilhariam em qualquer antologia de literatura brasileira contemporânea. Dois minicontos revelam sua visão sobre o ser poeta e a poesia: “Palavras, imagens e sons” e “O novo olhar de João”. Há, ainda, narrativas em que os nomes atribuídos aos personagens são palavras caracterizadoras de suas personalidades. É o caso de “Florescência”, “Esmeralda”, “O seqüestro”, “O navegante e a flor”, “Bonequinha alemã”, “Dolores”, “Olhos delatores”, “Paixão de vendaval”. O autor continuará usando tal recurso no próximo livro.

2.2.3. Em 1996, Wanderlino viajou a passeio ao Peru e à Bolívia, tendo ficado muito impressionado com o que viu e ouviu. Fez anotações e, de volta, publicou um livro sobre o qual escrevi o texto reproduzido a seguir.

Destrói-se, pela força bruta ou pela sutil dominação ideológica e cultural, a História de um povo. Mas não suas histórias, seus mitos. Esses permanecem, férteis, fecundando narradores de outras épocas e de lugares distantes. Revisitados, reinterpretados, atualizados, os mitos antigos, com sua linguagem cifrada, irmã da Poesia, emprenham de múltiplos significados os textos contemporâneos.

Assim ocorre com Andanças Andinas. Nele, Wanderlino Teixeira Leite Netto descarta a alternativa fácil de documentar o exótico. A uma excursão turística superficial, prefere as trilhas não oficiais da História de nossos irmãos sul-americanos. Numa atitude de respeito e reverência, dedica sua obra aos “vencidos”, símbolos dos perdedores de todo o mundo aquém e além dos Andes. A partir da voz dos conquistados, o autor traz à tona costumes, rituais e crendices, sobreviventes de terremotos e catequeses, registros pulsantes do imaginário daqueles povos, expressões de suas sociedades.

Wanderlino, contudo, não se restringe a catalogar mitos. Dialoga com eles, reveste-os com sua visão de homem urbano, brasileiro, de final do século XX. Mistura-os à sua mitologia pessoal, reinterpreta-os livremente, atribui a eles novos sentidos. Impregna o folclore local de impressões e sentimentos individuais. Lança sua sensibilidade invasora, porém não predatória, sobre aquela realidade distante. Lê os Andes e nos reconta suas (deles e dele) histórias de ouro e prata.

Pizarro às avessas, conto por conto, recoloca as pedras de um cenário devastado pelo tempo e pelas conquistas espanholas (em suas vertentes bélica e religiosa). Conto por conto, reconstitui rostos de uma civilização decapitada. Vai além da realidade andina, entretanto. Escrevendo sobre os juanitos, metaforicamente nos alerta para a necessidade de repensarmos nossas desgastadas relações com a coletividade e com nós mesmos. Leva-nos a reconsiderar nossos mitos contemporâneos, tão vinculados a idéias de dominação, poder, individualismo. Remete a cultos antigos ligados ao Sol, à Lua, às águas, à Terra e, com isso, denuncia nossa pequenez: nós, modernos super-heróis de coisa alguma, pobres super-homens rompidos com a “Pacha-Mama” (Mãe-Terra).

Simples e ao mesmo tempo complexos, como as construções incas, os contos de Andanças Andinas se encaixam num todo coerente e harmonioso. Livres da argamassa desnecessária de uma linguagem rebuscada, por certo também resistirão ao tempo.

2.2.4. Seis anos mais tarde, novo livro: Quatro cantos, narrativa alegórica em terceira pessoa, que tem como protagonista o Visitante, personagem flanêur, que percorre quatro cidades imaginárias, tudo observando, ora lírica, ora filosoficamente. Como um camaleão, disfarça-se entre personagens-tipos, com eles interage, conversa, registra comportamentos, sem se deter em julgamentos, sempre em trânsito, nada deixando de si, nada levando de onde passa. De fora o autor, pela escolha das situações abordadas e seleção das palavras usadas, ele, sim, deixa a marca de sua percepção crítica, que desmascara realidades muito conhecidas nossas.

O título, de significação intencionalmente ambígua, já anuncia tratar-se de livro que mais sugere do que explica, que abre margem a reflexões para além da última página: leitura de reticências, não de ponto final. As quatro cidades podem ser visitadas pelo leitor sem ordem definida, pois mesmo integradas a um todo, mantêm independência. O mesmo ocorre com alguns textos, dentro de cada parte, que permitem autonomia de leitura.

Antes, Ítalo Calvino e Ferreira Gullar já haviam realizado caminhadas literárias por cidades oníricas, recriando, de maneira contemporânea, o gênero “literatura de viajantes”. O próprio Wanderlino, em Andanças andinas, percorreu ruas atuais e mitos pré-colombianos, visitou personagens do passado e do presente, inventou contos com sabor de lendas incaicas. No fundo, esses três autores sempre souberam que toda história bem contada é, por si só, uma viagem para quem escreve bem como para quem lê.

2.2.5. Em 2006, Wanderlino conclui Beijo de língua, ainda inédito, uma coletânea de contos, alguns dos quais já publicados no jornal O Correio e na revista O Cais. O prefácio, por mim assinado, encontra-se transcrito a seguir.

“Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões”. Com esses versos, Caetano Veloso inicia a música em que reverencia a “última flor do Lácio”, expressando o gozo de ser um artífice atual de nosso idioma e, ao mesmo tempo, participar de uma tradição literária que remonta a séculos. Assim como ele, cada compositor, cada poeta, cada contista, cada romancista, em cada época, saboreia o verbo, lambe-o, devora-o e devolve-o em forma de textos doces ou amargos, que nos alimentam o espírito. Esses artistas da palavra nos dão a beijar a língua, essa sedutora fatal. Daí resulta nosso sensual prazer de recriar suas obras por meio de múltiplas leituras.

Com o presente livro, também Wanderlino Teixeira Leite Netto volta, agora, a roçar sua língua nas de tantos outros criadores que há milênios vêm, oralmente ou por escrito, perpetuando o saboroso ato de produzir e transmitir histórias, inventar enredos, edificar mundos imaginários, com seus personagens, lugares e tempos de sonhos. Neste seu trabalho pressentem-se, por exemplo, outros roçares: de Eduardo Galeano, Marina Colasanti, Maria Lúcia Simões, para citar apenas três influências.

Há décadas, Wanderlino se apropria de nosso idioma com elegância, na criação de uma obra tão consistente quanto extensa, que transita por diversos gêneros: poesia, crônica, conto, biografia, historiografia e ensaio. Administrador por profissão e pessoa lógica por temperamento, é no conto que se liberta, em vários momentos, das amarras da razão e se permite trilhar, livre de cânones, os caminhos inclassificáveis do imaginário, as veredas do nonsense, os atalhos do fantástico. Já em livros anteriores – Noturno em mi bemol e outros contos ligeiros, Andanças andinas, Retrato sem moldura e Quatro cantos – deixou um pouco de lado o arguto olhar anterior de cronista, voltado para a realidade imediata, e acionou o olhar delirante de criador de narrativas em grande parte alegóricas, sempre pronto a ver a essência por trás das aparências e a desvelar, na mesmice do quotidiano, o insólito e o surpreendente.

Nessa linha prossegue, com esta coletânea de histórias que tangenciam o poético, nas quais se abraçam sem preconceitos o real e o fictício, o lirismo e a crítica, a observação do prosaico e a reflexão filosófica, o humor e a seriedade, a relembrança do passado e as vivências do presente. Por trás de histórias singelas, o leitor encontrará o eco de reflexões profundas sobre o comportamento humano, a vida, a passagem do tempo... Pelas brechas de uma linguagem linear, escorreita, aparentemente previsível, vai deparar-se muitas vezes com o inesperado. Sem ortodoxia, abarca tanto o conto de talhe tradicional quanto o miniconto, este tão a gosto de autores contemporâneos como Dalton Trevisan e Victor Giudice. Emprenha de simplicidade certos textos; em outros se permite ousadias cortantes, a exemplo de “Arlete, Arlete”, um dos pontos mais altos do livro. Explicitamente dá verdadeiro beijo na língua em algumas narrativas – “ Pelo avesso”, “Metamorfose”, “Sessão solene”, “No mundo da Lua”, “Ponto final” – bem como em certos nomes próprios, signos carregados de elementos caracterizadores dos personagens. Com esse procedimento, faz aflorar o poeta escondido. Sabe que a criação literária consiste em um jogo sensual de/com palavras e sentidos.

No livro Índia, um olhar amoroso (Ediouro, 2000), Jean-Claude Carrière, aludindo ao gosto muito antigo pela história e pela arte de contá-la naquele país do Oriente, afirma: “Foi dito em algum lugar que é preciso escutar as histórias, porque é agradável e, às vezes, nos torna melhores”. Também aqui e agora, sairemos mais ricos interiormente após a leitura desta nova obra de Wanderlino Teixeira Leite Netto.

2.2.6. Entre Andanças andinas e Retrato sem moldura, Wanderlino, a pedido de sua filha, à época uma criança, resolveu escrever um livro voltado para o público infantil. Surgiu-lhe a idéia de criar a história de uma foquinha de circo que se recusa a ser amestrada (Paçoca, a foca que sonhava em ser poeta, livro do qual sou co-autora). Em busca de aventuras, o animalzinho foge, vive aventuras, mas decepciona-se com o mundo fora, retorna, redescobre o circo e percebe que não precisa ir longe para encontrar a poesia. O texto narrativo é escrito em versos. Na segunda parte do livro, há várias atividades com as palavras, visando a estimular, na criança, o gosto pela escrita e pela leitura, principalmente da poesia.

  

Link para Wanderlino Teixeira Leite Netto
 

 

 

 

 

04.01.2008