A MULTIPLICAÇÃO DO VERBO
Permeada de um vago sabor
nostálgico, que afinal vem a ser um legado dos poetas, a lira de
Lena Jesus Ponte cambia de tons e ritmos, desvelando um
caleidoscópio de imagens sob cujo espectro se abrigam seus sonhos,
perplexidades e assombros. Tal a impressão que nos suscitam os
poemas de seu livro Ávida Palavra, título ambivalente que,
numa leitura interlinear, se desdobra em “a vida-palavra”, de modo a
sugerir, metalingüisticamente, o universo verbal em que, seres de
relação, todos transitamos .
Aliás, as mutações tonais e
rítmicas matizam de variegadas nuanças a dicção da autora, como se
pode notar em diversos poemas seus, a exemplo de “Tempo de plantio”,
marcadamente lírico, em contraponto a “Desconcerto”, com toda a sua
carga de pungente realismo, porquanto, como proclama a poeta, em “De
algodão e aço”, se
Os pés caminham firmes
realidades;
as mãos escrevem utopias nos
vãos das entrelinhas.
É, pois, nessa atmosfera, por
assim dizer, hegeliana, de bipolaridades, que gravita a poesia de
Lena em busca da palavra exata, que, na observação de Heidegger,
constitui a chave para a apreensão da essência do ser.*
Entre o estado vígil e o
onírico, essa terceira margem somente reservada ao ofício seminal,
ali a poeta faz sua vindima “no sutil limite entre a fumaça e a
nuvem”. E é exatamente neste ponto de maturação que soa a corda
sensível e delicada de seu fazer poético, enriquecido por
imbricações, onde texto e intertexto se amalgamam num perfeito
conúbio de fundo e forma.
Está-se diante de uma poesia,
toda ela essencial, que atinge diretamente o cerne da palavra,
tocando de chofre as fontes emocionais. Nela, não há concessões a
desbordamentos retóricos, porque essa poesia se alimenta e sustenta
de seu substrato, prescindindo do apoio artificioso de ornatos
estilísticos.
Ora permeada de lirismo, ora
de desataviado realismo, a poesia de Lena revisita por vezes o
inefável ou se detém nos duros instantâneos de uma urbe conturbada,
presente e passado justapondo-se porque por ambos o futuro é
construído.
O timbre evocativo de alguns
poemas seus, resgatando flagrantes domésticos de um quotidiano
sepultado pelo fluir do tempo, avizinha-se congenialmente
à humildade de Bandeira e, pela plasticidade, do olhar de Adélia
Prado. Mas essa, digamos, quase afinidade poética não faz senão
rearfirmar o continuum de que se reveste o tecido da poesia
para cuja incessante textura, como acentua Dufrenne**, cada poeta é
motivado pelos outros a escrever a sua própria obra pessoal ─ e de
que é exemplo e paradigma, cumpre acrescentar, a obra magna de T. S.
Eliot, embasada num “sutilíssimo processo de globalização
literária”, conforme anotado por Ivan Junqueira em admirável ensaio
sobre o acervo eliotiano.*** Em última análise, todo poeta
internaliza e recicla, de algum modo, o que antes dele se escreveu,
sem que isso implique, a priori, perda de originalidade.
Melhor do que ninguém, Lena o
diz em seu lapidar soneto “Lirismofagia”:
Canibal, me alimento de
poetas.
Sugo o sangue dos versos. Nas
leituras
um olhar caçador de formas
puras
seu arco impunha e lança
agudas setas.
Rasgo a carne do texto, enfio
o dente
nas vísceras, essência da
poesia.
O que antes, sob a pele, se
escondia,
agora, a descoberto, a
língua sente.
Saboreio fonemas. Sinto o
gosto
dos sons em harmonia. A frase
corto
e recorto e retalho e enfim
devoro.
Depois de satisfeita, me
recosto.
Em mim já se incorpora o
poeta morto.
O ritual se encerra. Rio e
choro.
Assim, em nosso sentir, a
obra de Lena Jesus Ponte se apresenta peculiarizada e valorizada por
sua marca matricial, que a torna única, como contributo seu
ao universo da poesia.
Por vezes, a contemplação do
teatro planetário acende na poeta o viso da ironia, como no belo
poema “Adivinha”:
Em que segundo exato
rompeu-se o último fio da
corda esgarçada?
Em que fração de tempo
adorados deuses quedaram-se
soterrados nas ruínas?
Quem permitiu
a mudança do sumo em bagaço?
Quem demitiu o palhaço?
Talvez porque, especulemos, seja a ironia o derradeiro refúgio do
espírito ante a implacabilidade da vida...
Observe-se, ainda, como
o verso final de “Adivinha”, a indagação sarcástica e cortante de
seu fecho, transgride a linguagem do poema, rompendo a associação de
imagens e metáforas ali estabelecida e, no entanto, a ela se
integrando para introduzir um novo e inusitado sentido. Somente a
autêntica poesia detém esse poder de transfiguração da palavra.
Em outras vezes,
panteisticamente, o sentimento poético de Lena mergulha no
ser-não-ser, como ressumbra dos poemas “Desapego” e “Oração ao
barro”, onde, antevendo o porvir que a todos espreita, com
humildade, exclama
Barro irmão,
que a você eu volte e de você
renasça meu ser,
argila pura abraçando tudo.
Ou seja, o eterno devir, mais do que crença, talvez a visceral
esperança de uma perpétua permanência no solo onde fincamos nossas
precárias raízes.
Na segunda parte de seu
livro, curialmente nominada “Canto em gaiolas”, a poeta opta
predominantemente pela forma fixa do soneto, que versa com absoluta
desenvoltura e técnica, celebrando em alguns deles as suas
predileções literárias. Exemplo fidedigno de seu total domínio da
escritura poética, o esplêndido soneto “Clareza” vale ser aqui
transcrito:
Onde a chama da vela que há
bem pouco ardia?
E a imagem do meu pai no
espelho refletida?
Que é do calor do sol quando
findou o dia?
Quando chegou a morte, pra
onde foi a vida?
Em busca de repostas me
desesperava,
na ilusão de o mistério,
enfim, esclarecer.
Um sentido pra ser, em vão,
eu procurava:
que adiantará plantar, se um
dia hei de morrer?
Quando, humilde, entendi que
sou de um todo parte,
de um grande poema épico não
mais que um verso,
senti que o desapego da
matéria é arte,
um caminho de paz, que à
compreensão conduz.
Em mutação constante está
todo o universo.
Podem queimar-se as lâmpadas;
não morre a luz.
Inaugurando a última parte de
Ávida Palavra, dedicada à tênue tessitura dos haicais, assim
se expressa a autora:
Suave ruflar de asas.
Um verso emplumado ensaia
seu primeiro vôo.
Vôo, diga-se a propósito, que
se espraia ao longo das páginas numa viagem propiciadora de visões
epifânicas, de puro alumbramento. Eis alguns desses haicais, leves e
intensos, segundo a fórmula canônica estratificada por Bashô até
nossos dias:
Som de ave-maria.
Pousa um anjo no compasso
e abençoa o dia.
****
Onde existe afeto,
nascem flores do impossível,
o talvez é certo.
****
Cuidadoso, o pai
descascava a tangerina.
Perfumava a infância.
A poesia de Lena tem muitas
vozes que, multíssonas, amadureceram sua dicção mais completa e
consumada na diversidade dos ritmos que percorre, transmigrando,
sem perda de substância, da disciplina estreita dos haicais ao
cantabile das redondilhas; do cânone severo dos sonetos ao
horizonte aberto dos versos livres.
Desse modo,
magistralmente, a poeta elabora sua síntese, tecendo e destecendo
tramas, na urdidura de poemas bem concebidos e escritos com mestria,
endereçados às mentes e corações. A poesia de Lena Jesus Ponte
habita terras altas, onde as palavras adquirem asas. Soube
multiplicar os talentos a que alude no nostálgico poema “Legado”:
Na partilha do bem,
o pai legou-me o mais simples
desejo de miudezas,
coisinhas por muita gente
desprezadas:
um musgo persistente; um
cisco em faixa de luz;
algumas lantejoulas de peixe
escamado pela empregada:
um ninho de beija-flor
esquecido em velha árvore
e uma meia dúzia de palavras.
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NOTAS DO PREFÁCIO
* Martin Heidegger, Approche de
Hördelin, trad. de H. Corbin et alii, Paris, Gallimard,
1962.
**Mikel Dufrenne, O poético,
trad. de Luiz A. Nunes e Reasylvia K. de Souza, Editora Globo, 1969.
*** Ivan Junqueira, Eliot e a
poética do fragmento, in Poesia, Editora Nova Fronteira, 1981.