Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Linaldo Guedes


 

A ruidosa agonia dos espelhos poéticos




 

Estudos de Pele, lançado recentemente pela Editora Lamparina, é composto de poemas onde a tônica do estranhamento é uma constante. Para o leitor e, parece, para o próprio poeta. Não é poesia discursiva, inventiva ou clássica. Ao mesmo tempo, é poesia discursiva, inventiva, clássica. Um livro que rasga a pele da poesia de forma aparentemente sutil, mas em alguns momentos com uma volúpia que nos faz refletir nestes tempos de guerrilha, sejam bélicas ou culturais.

 

Estudos de Pele, Floriano Martins


 

É um livro estranho, sim, este de Floriano Martins, poeta cearense, que chega às minhas mãos. Estudos de Pele, lançado recentemente pela Editora Lamparina, é composto de poemas onde a tônica do estranhamento é uma constante. Para o leitor e, parece, para o próprio poeta. Não é poesia discursiva, inventiva ou clássica. Ao mesmo tempo, é poesia discursiva, inventiva, clássica. Um livro que rasga a pele da poesia de forma aparentemente sutil, mas em alguns momentos com uma volúpia que nos faz refletir nestes tempos de guerrilha, sejam bélicas ou culturais.

Contador Borges é muito feliz na orelha do livro, quando diz que em Estudos de Pele a sensação de vertigem é imediata, de desconforto idem. “O estranhamento desses Estudos de Pele, o chão do poema, em princípio trêmulo, escorregadio como gelo fino, vai aos poucos se firmando aos nossos olhos, fazendo sentido à deriva, desdobrando sua interrogação aberta só respondida com outra indagação adiante, luminosa, atirando o leitor contra a parede, instigando o homem que ele é intranqüilo neste horripilante começo de milênio, mas que aqui se potencializa, à beira do abismo, pensando-se no extremo de si mesmo”, analisa Contador Borges, análise essa que assino embaixo.

O livro todo, como explica o próprio Floriano Martins numa espécie de apresentação à obra, é um constante vaivém entre o corpo humano e o corpo da criação. De um lado, a pele do erotismo, que perpassa cuidadosa e bem construída por todas as páginas do livro. De outro, a pele da palavra, ou da linguagem poética, com resmungos, amuos, questionamentos e tiros certeiros do poeta.

 

Floriano Martins
Floriano Martins

 

A pele do erotismo surge, sinuosa, logo no primeiro capítulo - “Sombras raptadas” (aliás, a sombra da interrogação parece perseguir o poeta em todos os poetas). Referências femininas diversas surgem imponentes nas páginas, por mais submissas que possam parecer. Com elas, o poeta trava um diálogo-monólogo (acreditem, isso existe, sim, na poesia de Floriano Martins) onde o leitor acaba sendo o principal interlocutor. Lembra temas bíblicos e adapta, com extrema beleza (isso ao lembrar que Camões já o tinha feito) a história de Jacó, com o eu-lírico esperando por sete anos um entendimento “sobre a terra que carrego em meu ventre”. Aliás, esse primeiro capítulo parece um lento e provocante ritual, com o cultivo de orações em busca do gozo prometido pelas diversas personagens femininas presentes.

Em outros capítulos, o ritual erótico é também uma constante. Como no belíssimo poema “Vestes”, do capítulo “Crime e fuga”. Aqui, os panos nus servem de metáfora para o sangramento da pele:
 

“Os panos como papiros, inscrições invisíveis que ensinam a
       manter quente a cabeça de um deus morto.
Nus.
Com a medida do inferno de cada dobra
do tecido de que somos feitos”.
 

Mas é o ritual poético que surge, também com muita força, neste mesmo capítulo. Enquanto deixa anotado em algum lugar que não deve se lembrar de mais nada, o poeta vai lembrando coisas, vomitando versos que nos fazem refletir. Alguns desses versos parecem sinopses dos nossos acontecimentos em pleno 2004;
 

“O esplendor de imagens vicia o poeta em uma enganosa me
tafísica. Tudo nele é forma transparente”,

 

diz Floriano Martins. E não é verdade que estamos ficando tão viciados nesta obsessão pela imagem? Lembro agora, até, um comentário de um poeta tradicional aqui do Nordeste ao receber o elogio de um amigo às imagens presentes em sua poética: “e o meu poema é uma igreja, para ter imagens?”.

Mais na frente, o cearense é incisivo, ferino, autocrítico. Fala que os poetas são vítimas de nada: “A única enfermidade que lhes cabe é a presunçosa arrogância. Injustos, capitais e amargurados, aqui estamos os poetas, todos, tolos. Onde estala a liberdade?”.

Em outro momento, do mesmo poema, não por acaso intitulado “Arlequim”, é deliciosamente irônico: “Risível um poeta falar de ajuste de termostato? Se considerado que hoje mal troca a lâmpada queimada dos próprios versos, sim. Um encontro de poetas? Sempre temo pela ruidosa agonia de espelhos. A terra enferma, o silêncio indecifrável, essas pequenas agonias rumorejantes. Seja como for, melhor que se encontrem, sempre. Assim doemos ao vivo, uns diante dos outros”.

Doemos ao vivo, Floriano, em busca do hóspede certo para a poesia desesperada que teima em nos cutucar. Em fuga dos espelhos que estão sempre a exibir a imagem poética que queremos ver. E nada mais que isso.

“O que faço com o poeta depois de escrito o poema”, indaga Floriano Martins. Diria, que deixá-lo abandonar-se nas mãos do leitor. Ele, o leitor, é que dá o destino merecido a cada poema e a cada poeta. Ele, o leitor, também se dividirá entre encanto e estranhamento com a leitura de Estudos da Pele. Mas não é para isso que os bons livros são feitos?

 

Floriano Martins

Leia Floriano Martins

 

 

 

 

05.11.2004