Linaldo Guedes
A ruidosa agonia dos espelhos
poéticos
Estudos
de Pele, lançado recentemente pela Editora Lamparina, é composto de
poemas onde a tônica do estranhamento é uma constante. Para o leitor
e, parece, para o próprio poeta. Não é poesia discursiva, inventiva
ou clássica. Ao mesmo tempo, é poesia discursiva, inventiva,
clássica. Um livro que rasga a pele da poesia de forma aparentemente
sutil, mas em alguns momentos com uma volúpia que nos faz refletir
nestes tempos de guerrilha, sejam bélicas ou culturais.
É um livro estranho,
sim, este de Floriano Martins, poeta cearense, que chega às minhas
mãos. Estudos de Pele, lançado recentemente pela Editora
Lamparina, é composto de poemas onde a tônica do estranhamento é uma
constante. Para o leitor e, parece, para o próprio poeta. Não é
poesia discursiva, inventiva ou clássica. Ao mesmo tempo, é poesia
discursiva, inventiva, clássica. Um livro que rasga a pele da poesia
de forma aparentemente sutil, mas em alguns momentos com uma volúpia
que nos faz refletir nestes tempos de guerrilha, sejam bélicas ou
culturais.
Contador Borges é
muito feliz na orelha do livro, quando diz que em Estudos de Pele
a sensação de vertigem é imediata, de desconforto idem. “O
estranhamento desses Estudos de Pele, o chão do poema, em
princípio trêmulo, escorregadio como gelo fino, vai aos poucos se
firmando aos nossos olhos, fazendo sentido à deriva, desdobrando sua
interrogação aberta só respondida com outra indagação adiante,
luminosa, atirando o leitor contra a parede, instigando o homem que
ele é intranqüilo neste horripilante começo de milênio, mas que aqui
se potencializa, à beira do abismo, pensando-se no extremo de si
mesmo”, analisa Contador Borges, análise essa que assino embaixo.
O livro todo, como
explica o próprio Floriano Martins numa espécie de apresentação à
obra, é um constante vaivém entre o corpo humano e o corpo da
criação. De um lado, a pele do erotismo, que perpassa cuidadosa e
bem construída por todas as páginas do livro. De outro, a pele da
palavra, ou da linguagem poética, com resmungos, amuos,
questionamentos e tiros certeiros do poeta.
Floriano Martins
A pele do erotismo
surge, sinuosa, logo no primeiro capítulo - “Sombras raptadas”
(aliás, a sombra da interrogação parece perseguir o poeta em todos
os poetas). Referências femininas diversas surgem imponentes nas
páginas, por mais submissas que possam parecer. Com elas, o poeta
trava um diálogo-monólogo (acreditem, isso existe, sim, na poesia de
Floriano Martins) onde o leitor acaba sendo o principal
interlocutor. Lembra temas bíblicos e adapta, com extrema beleza
(isso ao lembrar que Camões já o tinha feito) a história de Jacó,
com o eu-lírico esperando por sete anos um entendimento “sobre a
terra que carrego em meu ventre”. Aliás, esse primeiro capítulo
parece um lento e provocante ritual, com o cultivo de orações em
busca do gozo prometido pelas diversas personagens femininas
presentes.
Em outros capítulos,
o ritual erótico é também uma constante. Como no belíssimo poema
“Vestes”, do capítulo “Crime e fuga”. Aqui, os panos nus servem de
metáfora para o sangramento da pele:
“Os panos como
papiros, inscrições invisíveis que ensinam a
manter quente a cabeça de um deus morto.
Nus.
Com a medida do inferno de cada dobra
do tecido de que somos feitos”.
Mas é o ritual
poético que surge, também com muita força, neste mesmo capítulo.
Enquanto deixa anotado em algum lugar que não deve se lembrar de
mais nada, o poeta vai lembrando coisas, vomitando versos que nos
fazem refletir. Alguns desses versos parecem sinopses dos nossos
acontecimentos em pleno 2004;
“O
esplendor de imagens vicia o poeta em uma enganosa me
tafísica. Tudo nele é forma transparente”,
diz Floriano
Martins. E não é verdade que estamos ficando tão viciados nesta
obsessão pela imagem? Lembro agora, até, um comentário de um poeta
tradicional aqui do Nordeste ao receber o elogio de um amigo às
imagens presentes em sua poética: “e o meu poema é uma igreja, para
ter imagens?”.
Mais na frente, o
cearense é incisivo, ferino, autocrítico. Fala que os poetas são
vítimas de nada: “A única enfermidade que lhes cabe é a
presunçosa arrogância. Injustos, capitais e amargurados, aqui
estamos os poetas, todos, tolos. Onde estala a liberdade?”.
Em outro momento, do
mesmo poema, não por acaso intitulado “Arlequim”, é deliciosamente
irônico: “Risível um poeta falar de ajuste de termostato? Se
considerado que hoje mal troca a lâmpada queimada dos próprios
versos, sim. Um encontro de poetas? Sempre temo pela ruidosa agonia
de espelhos. A terra enferma, o silêncio indecifrável, essas
pequenas agonias rumorejantes. Seja como for, melhor que se
encontrem, sempre. Assim doemos ao vivo, uns diante dos outros”.
Doemos ao vivo,
Floriano, em busca do hóspede certo para a poesia desesperada que
teima em nos cutucar. Em fuga dos espelhos que estão sempre a exibir
a imagem poética que queremos ver. E nada mais que isso.
“O que faço com o
poeta depois de escrito o poema”, indaga Floriano Martins. Diria,
que deixá-lo abandonar-se nas mãos do leitor. Ele, o leitor, é que
dá o destino merecido a cada poema e a cada poeta. Ele, o leitor,
também se dividirá entre encanto e estranhamento com a leitura de
Estudos da Pele. Mas não é para isso que os bons livros são feitos?
Leia Floriano Martins
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