Linaldo Guedes
A poesia que silencia a guerra
Será que a poesia brasileira caiu de vez no lugar comum da
metalinguagem e não participa mais do que está gritando em sua
volta? Caímos no deserto estéril do “tudo já foi dito”? O poeta
Rodrigo Garcia Lopes com o seu livro “Nômada” parece nos responder a
estas perguntas. O poeta Linaldo Guedes atravessa o duplo deserto
deste autor - o da Guerra do Iraque e o da linguagem- em ensaio no
qual atesta a originalidade e o vigor inventivo de Rodrigo Garcia
Lopes
Deu no jornal: "Um suicida detonou nesta segunda-feira um veículo
cheio de explosivos, morteiros e mísseis perto da entrada de uma
base americana na cidade de Mossul, ao norte do Iraque. O ataque
matou três pessoas e deixou outras cinco feridas, informou a militar
americana Ângela M. Bowman".
Como superar a indignação com essas notícias que chegam do Oriente
Médio?
Respondo: com a poesia. Com a poesia de Rodrigo Garcia Lopes, o
poeta paranaense que chega agora às livrarias com um novo livro -
Nômada (Editora Lamparina, 2004) - onde a temática da guerra, mais
especificamente da Guerra do Iraque, é uma constante. Sem
panfletarismos datados, a obra é um petardo na poesia de quem aceita
passivamente a despreocupação com a linguagem. De quem se conforma
com velhas formas e rimas cansadas.
Nômada é um livro que se constrói em constante movimento, como diz
Maria Esther Maciel na orelha. Só que de forma lenta, como se fossem
sussurros de linguagem, segredando no ouvido do leitor novas formas
de linguagem e de poesia.
Não è à toa que o primeiro poema que abre o livro, sem título,
vaticina: "Se a linguagem é nossa realidade/ E coisas foram apenas
palavras/ Então nos restará apenas a veracidade -/ Esse vácuo que
nos acua ao avançar". De fato, em Nômada, Rodrigo Garcia Lopes
trabalha com a verdade, não apenas relatando-a, como se fosse
páginas de jornal, mas reconstruindo-a através do movimento sempre
constante da linguagem.
O segundo poema, "Pensagem", é uma espécie de prólogo ao que estar
por vir, num livro temático que funciona como trilha sonora da
indignação para esses tempos de guerra. Diz o poema: "Homens em
transe/ acue o nada/ a noite exangue/ em cada fala-cadafalso.//
Trevas se atiram/ da margem oposta/ das minhas artérias -/ imagem,
matéria". Neste "prólogo", a senha para o diálogo presente na obra
entre o deserto emocional humano provocado pelas trevas na margem
oposta da vida: a guerra.
Não é fácil construir um livro temático. Corre o risco de tornar-se
cansativo, repetitivo. Mas Rodrigo Garcia Lopes consegue subverter
essa sentença, com experiências e talento em poemas que já nascem
clássicos. Como "Rito", onde o diálogo se torna desabafo:
Alertas, trapaças, cobranças, compromissos:
Quantas ilhas sem edição, vidas sem viço,
A morte visita sem aviso?
E, afinal, pra que mesmo tudo isso?
O que deu nesse mundo, caduco?
O que ficou do tempo em que viver
Era mais que só mudar de assunto
Era um rito, um estado de espírito?
Ou quando olhar era uma reza,
Pensar que revelava a leveza,
Música vindo de dentro
(Precisa de centro?)
Uma revolução do sentir nos fez ateus:
Quisemos então ver a face de Deus.
E você a meu lado, lembra
De quando bastava uma fagulha
Pra explodir uma Bastilha?
A voz do poeta, quase em silêncio, surge em "Nomadismo", como a
tentar o que poderia acontecer "Depois do massacre": "Ser pássaro
onde não há nenhum./ Ser um onde não há ninguém". A angústia de
querer buscar o movimento, de querer fugir aos abismos que circulam
o poeta na contemporaneidade do mundo.
E aí vem o poema "No arroio", como a explicar que os poentes
surgirão através da linguagem, tremida e inconstante linguagem, é
certa, mas que assombra os risos no rosto do rocio. Um apelo para
encontrar em Poe a saída. Será que tem saída? Difícil, quando se
percebe que os conflitos do mundo moderno atingem até mesmo a
relação amorosa. A busca pelo milagre de estar vivo não impede que
até aqui, em "Amores brutos", o clima de guerra se instale: "Que
química imita/ A raiva do seu amor?/ Que física duplica/ Esta faísca
de horror?".
Não deveria ser necessário apresentar Rodrigo Garcia Lopes ao leitor
do Correio das Artes. O certo seria que nossos bons autores
contemporâneos fossem tão conhecidos do público comum quanto muitos
dos consagrados que já se foram. Mas o Brasil vive a inércia de só
reconhecer o já reconhecido. Como se a literatura tivesse parado em
Drummond ou João Cabral. Como se ela não fosse nômade, e continuasse
a cada novo poeta que lemos. Porque continuo batendo na tecla de que
não basta apenas ser reconhecido pela crítica e que ganhe prêmios. É
preciso que o leitor perca o comodismo de sempre procurar os
clássicos e buscar novos autores, descobrir novas formas de
linguagem.
De qualquer forma, vá lá. Rodrigo Garcia Lopes é jornalista,
tradutor e compositor. Autor de vários livros de poesia, edita, ao
lado de Ademir Assunção e Marcos Losnak, a revista Coyote, cujo
último número está saindo agora. Mestre em humanidades com tese
sobre William Burroughs,é um poeta que pensa, como já disse sobre
ele o poeta Antônio Mariano, em recente artigo publicado no caderno
de Cultura do jornal A União. Vejam o que ele disse em recente
entrevista ao jornal Rascunho: "Poesia é, acima de tudo, a arte da
linguagem. E acredito que ela também é muitas outras coisas, como
visão de mundo, magia, ritual. Mas poesia, sobretudo, significa
liberdade. Então, se a poesia é a arte da linguagem, ela é a arte da
liberdade. (...) Acho uma pobreza de visão muito grande condenar a
experimentação poética, como fazem alguns reacionários por aí,
acompanhado de um papo elitista e burguês de que poesia não é
acessível à maioria dos mortais. Pois eu diria exatamente o
contrário: a de que, sem o leitor, o poema não é nada. Poesia, como
a entendo, é sempre uma experiência com/na/de linguagem. É mais do
que simplesmente escrita sobre experiências, e sim escrita como
experiências".
Então, continuemos lendo as experiências de Rodrigo Garcia Lopes.
Afinal, mesmo quando aceita a influência dos poetas beats em sua
obra, tenta trilhar seu próprio caminho. Aliás, poemas na linha beat
é o que não faltam em Nômada. Se há alguma dúvida, leia o poema sem
título que começa com a frase "Há anos vende seu peixe": "Há tempos
leciona/ o dialeto do caos/ dá conselhos ao sol/ vende orquídeas
escritas com/ seu sangue/ para vampiros que têm medo do vermelho".
Uma faca só lâmina, que no poema seguinte apela ao leitor para abrir
seus olhos aqui, nas páginas de Nômada. Ou constrói versos no ritmo
assonante para o poema "Mental,". Ou o cotidiano ilusório que vê
neblina, sim, na vidraça suja da tempestade, "mas isso já passou".
Pelo menos pode ter passado nas tentativas eróticas do belo poema "Beduína",
outra tentativa de fuga, agora através do prazer sexual. Pena que a
melancolia vingue novamente no final do poema: "banho-me na
tempestade".
Se Rodrigo Garcia Lopes escreve como quem respira, não há como
surpreender-se com um poema como "Canzone", uma espécie de pausa
para a canção, uma tentativa de lirismo antes do "Setembro negro",
cujo trecho reproduzimos a seguir:
Da queda o que ficou foram gritos & ruídos,
E densa nuvem de carne e poeira no céu da tela
Não a ternura que habitava a sua voz
(A sensação de que algo se rompeu)
Solidão, recife, estrela.
Tentativas de lirismo antes do bem construído ludismo do poema sem
título que começa com o verso "Algo me diz que molhar", ou do
retorno às influências beats com "Trance music" e "Saliva". Ou a
explicação de "Nascimento da Poesia". Ou a ironia, quando fala que
"perder não é o pior que pode acontecer". Ou a imagem inusitada dos
gerânios "em sua boca arrotando dígitos precisos", no belo poema "Mônadas".
Ou na concisão perfeita de "Roída pela inveja":
a traça destrói
a seca borboleta.
Ou nas experiências de "A idade da linguagem". Ou na belíssima "Ars
poética". Todo esse vaivém de linguagem, de influências, de retiro
poético apenas para arrematar ao final do capítulo: "A história
simultânea das coisas/ Um dia irá contar sua fábula".
Chega, então, o segundo capítulo do livro, "Fragmentos em
movimento". Neste, tudo acontece em torno de pequenos movimentos
poéticos que revelam que "as coisas, exatas, se desviam de nossos
conceitos, criam suas arestas, galáxias, oásis, e brilham em sua
mais perfeita conjunção". O poeta leva em sua bagagem lírica, mapas
que modificam e se estendem a cada passo sobre a língua. Entre
avanços e recuos, "a lua/ pesada/ imóvel acelera// reflexo na água/
não é a/ não sua paisagem/ sua representação". Mas de que
representação fala o poeta? Talvez da que transforma um cemitério
numa cidade em miniatura. Se as nuvens negras se afastam sem pressa,
é porque a vantagem de resistir era a emboscada. Nestes fragmentos
da realidade, não poderiam faltar as tardes de abril, quem sabe nas
grandes metrópoles brasileiras, onde "a menina sorri dentro dos
vidros/ enquanto aguarda um sinal". Que sinal, se para Rodrigo
Garcia Lopes "o mar é um jardim de estrondos"?
Talvez, o sinal surja no capítulo seguinte - "Viagens à
hiper-realidade". E podem surgir através de instantâneos
contemporâneos e contundentes: "estar aqui entre gritos neste estado
de sítio/ descobrir que foi a vida que mentiu". O poema seguinte, "6
movimentos de câmera", traz a influência do cinema de forma
explícita, na obra de Rodrigo Garcia Lopes. "A vida era um grande
café da manhã" mostra que a odisséia do paranaense é mais real do
que a de Homero. Mas comum aos nossos dias, que acorda com os nomes
das coisas. Antes da óbvia homenagem a William Burroughs, a amnésia
que consegue lembrar como tudo desaconteceu. No poema que dá título
ao capítulo, convivem (des) harmoniosamente as reproduções de Van
Gogh (sempre em movimento), a mulher barbada, leves influências de
Fernando Pessoa ("Se o vazio do que não sinto/ é o contrário do que,
minto...(Rodrigo) "Dizem que finjo ou minto/ Tudo que escrevo. Não."
(Pessoa)) e críticas ao nosso principal movimento literário: "O
modernismo foi uma grande jangada política/ & o flashback do deserto
aguça".
Em "Garanhuns", o Nordeste brasileiro serve como ilustração patrícia
para o deserto que preenche a linguagem do poeta. Aqui,
O agreste não é alegre nem triste
É agre para quem não sabe
O doce do que existe, resiste
Na voz que erige imagens
Neste milagre em pleno sertão
(Reste em cactos, sabres sabores)
janela para a amplidão.
"fora, deserto, sertão", diz mais a frente o poeta. E fora, talvez,
para poder concentrar-se melhor no fim dos tempos anunciado em "Na
Galeria Milênio" ou para conseguir viver numa realidade de palavras,
como sugere em "Em riding". Como no final do primeiro capítulo,
recorre à fábula antes de dizer que o nome da guerra é ninguém.
Antes de revisitar a paulicéia sitiada, atropelada pelos escombros
da tarde suicida.Antes de disfarçar nova influência de Pessoa, desta
vez no poema "Arte do Intervalo". Antes de fazer soneto. Antes,
enfim, de partir para o capítulo "Liberdade de pó: um diário", onde
a realidade da guerra torna-se real (com redundância mesmo),
explícita, definitiva.
É neste capítulo que a realidade da guerra salta às páginas da forma
mais literal possível. Desde a abertura, com o símbolo das duas
torres gêmeas do world trade center, o prédio explodido pela força
dos terroristas.
Rodrigo Garcia Lopes aproveita o tema da guerra para fazer novas
experiências de linguagem. Aqui, ele incorpora Oswald de Andrade. O
autor do Manifesto Antropofágico utiliza-se da carta de Pero Vaz de
Caminha para adapta-la à sua poesia modernista. Com o recurso da
paródia, do poema-piada e da ironia para transformar em poesia um
documento oficial.
Rodrigo Garcia Lopes faz isso com as notícias da guerra. No primeiro
verso, explica: "Versos dilaceram este deserto. Espaço pantomima de
sangue". Pois é. É essa pantomima que manipula cenários, e notícias,
para transforma-los em poemas. Que podem ser no melhor estilo
oswaldiano, como "Breaking news":
a primeira imagem
seus olhos
fazem ping-pong
como num hanna & barbera
ensaia palavras
com um leve sorriso
enquanto
sem perceber
uma mulher (sem rosto)
penteia com carinho
os cabelos
grisalhos
do Sr. Guerra.
Na poesia real de Rodrigo Garcia Lopes, o fogo nunca é inimigo.
Muito menos a linguagem, que tenta traduzir as manchetes da
imprensa, avisando que nem tudo que se lê é um poema. Nem tudo que
se lê tem lirismo. As baterias antiaéreas podem trazer versos crus:
não há beleza
quando carnes
se exibem
abertas e podres
como prova
irrefutável
de que não há beleza
onde o mau
do humano
esteja
Há mais beleza nisto ou na bala perdida à beira-mar, pergunta o
poeta adiante. A resposta seria a decifração do código poético de
Rodrigo Garcia Lopes. Ou descobrir que "tua face é um reduto de
terroristas/ Que artimanham mais ataques".
"Nômada", o capítulo final, é o que chamamos hoje de prosa poética.
Todo ele se insere, no livro, como uma lenta caravana solitária, com
os nômades avançando sobre o mesmo deserto. O avanço se dá de forma
imprevisível, alucinógena, através das rotas de seda ou disfarçado
pelo silêncio dos relógios naufragados. Com o rosto de nuvens
pisadas de sangue, o poeta busca a miragem e reconhece que o autor
dos dias está morto. Procurando palavras no camelo, literatura nos
pássaros e concluindo, quase sempre em tom de fábula, que o lugar de
onde vem essa poesia forte, definitiva, necessária "é tão distante
que pode muito bem ser aqui".
Linaldo Guedes é poeta paraibano, editor do Correio das Artes
Leia a obra de Rodrigo Garcia Lopes
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