Luiz Paulo Santana
A propósito da
Carta-manifesto de Alexei
Bueno
Prezado Poeta Soares Feitosa;
Obrigado por mandar-me a
carta-manifesto
(as duas versões) de Alexei Bueno. Já tinha tomado conhecimento da polêmica no seu JP. Apenas
não li as cartas na ocasião pois o "link" não abria.
Entre coisas nenhumas sou estudante (UFMG) de letras. Estava
justamente fazendo uma das teorias da literatura/poesia quando li o
bate-boca.
Como a universidade está metida no meio, ocorreu-me fazer um
levantamento dos(as) poetas cuja poesia foi utilizada pelo professor
para ilustrar a teoria. São eles: Álvares de Azevedo, Murilo Mendes,
Fernando Pessoa(s), Verlaine, Baudelaire, Manuel Bandeira, Cláudio
Bertoni, Olavo Bilac, Camões, Gregório de Matos, Oswald de Andrade,
Cristina César, Octávio Paz, C.D.A., Manoel de Barros, Mário
Quintana, Adélia Prado, Sebastião Uchôa Leite, Brossa (não tenho o
primeiro nome), A. Romano de Sant'Anna, Ferreira Gullar, Agostinho
Neto, Yeda Prates Bernis, Conceição Evaristo, Esmeralda Ribeiro,
João Cabral de Melo Neto, Rachid (não tenho primeiro nome), Nelson
Ascher, Paulo Leminski, Orides Fontela, Augusto e Haroldo de Campos,
E. E. Cummings (trad. A. Campos), William Carlos William (trad. José
P. Paes), Mário de Andrade, Décio Pignatari, Cecília Meireles, Mário
de Sá Carneiro, Arnaldo Antunes, Augusto dos Anjos, Rodrigo
Guimarães.
Como se vê, a lista é incompleta. Ainda assim, tem pra todos os
gostos. Releve-se também o fato de que leu-se pouca coisa de cada
um. Estávamos estudando teoria, não especificamente esse(a) ou
aquele(a) poeta, embora na elaboração da análise observássemos algum
dado biográfico. A mim me parece, não houve sectarismo. E posso
testemunhar, o professor não emitiu juízo de valor.
Quanto a mim, coloco-me como um modestíssimo amador da poesia. Terá
sido aos 15, 16 anos, atraiu-me a frase melódica, a síntese
explosiva, os sons ri(t)mados e depois, os versos livres e por isso
mesmo imprevisíveis. Sentia-me emocionado, transportado,
transfigurado, arrebatado. Com a prosa não é necessariamente assim.
Com a prosa há momento de arrebatamento, sim, sem dúvida, mas com a
poesia isso é algo imediato, ao primeiro verso. Lia de modo
aleatório. Olavo Bilac, Murilo Mendes, Drumond, Gustavo de Corção,
Manoel Bandeira, Vinícius de Moraes, enfim, o que caía na mão eu ia
lendo, mesmo sem saber "ler". Não foi algo necessariamente induzido
pela escola primária, embora no antigo primário lêssemos textos em
prosa, em grupo, uns para os outros, dentro da sala de aula (ex.:
"Contos Pátrios" Olavo Bilac e Coelho Neto, 40ª. edição da Livraria
Francisco Alves, 1953, textos voltados para educação moral e cívica)
— hoje isso não acontece mais — e tínhamos, no ginásio, o grêmio
literário. Fomos incentivados a ler o texto em prosa.
Durante 30 anos cometi o que chamei poesia pelo simples prazer de
refletir o mundo que eu via/sentia/abstraía/pensava no mundo
atemporal dos versos sobretudo como se fosse um vidente vendo por
exemplo num lote vago mais que sua geometria, sim, toda a sua
fantasmagoria que no fim das contas eu não conseguia revelar e
simplesmente revelava tão somente a própria geometria e no entanto
já era um lote vago vagando num universo de sonhos e presságios não
necessariamente traduzidos.
Terei que ser acadêmico para ler poesia? Bem, admito que alguma
coisa é necessário aprender. Como acentua Décio Pignatari, as
pessoas treinadas para ler prosa quando diante de um poema
preocupam-se em "interpretar" o texto poético. Esse é o primeiro,
enorme espantalho. Sem treino, as pessoas sentem-se frustradas por
não entender objetivamente o texto poético, exceto aquele que
permite, das tantas leituras de um poema, uma leitura objetiva. Será
poesia? Confesso que eu ainda me sinto assim diante de alguns textos
poéticos. No entanto, à diferença da maioria, já possuo uma
iniciação. Isso permite que me acalme, que me desarme, que guarde
régua e compasso, que me abra o coração à sua imagem e semelhança —
como é difícil falar do que se sente, do que se (não) lê numa
poesia.
Depois de 30 anos garatujando versos de amador, aos 45
aproximadamente, resolvo dedicar-me. Tarde demais, talvez, hoje
tenho 53. A primeira pergunta que me ocorreu foi: por que as pessoas
não lêem poesia? É verdade que nem prosa lêem. É verdade que as
escolas, hoje especialmente, não ensinam a "Ler, Pensar e Escrever",
parafraseando o título do livro do professor e poeta Gabriel Perissé.
Se não ensinam a ler, pensar e escrever prosa, muito menos ensinam a
ler, pensar e escrever poesia. Então pensei comigo que faria versos
"claros", não intelectualizados, breves, como um jingle, ou um
haicai, que pudessem ser lidos de uma olhada no sinal fechado e
entendidos imediatamente. O professor Gabriel Perissé, com quem fiz
um curso introdutório virtual para escritores, desiludiu-me de
pronto. E à medida que prosseguia estudando constatei o equívoco.
Não com relação à brevidade, por exemplo, mas com relação à
"claridade" pretendida. Esta teria que ser de outra natureza. Ou
deixaria de ser poesia. Mas deixaria mesmo? No entanto, a pergunta
inicial permanece, agora generalizada: por que as pessoas não lêem?
Daí a conclusão: é necessário treino, que crie um hábito. É
necessário ler, pensar e escrever, reler, repensar, reescrever, etc.
É necessário aprender o que é poesia, de que se constitui, como se
opera o texto poético.
Durante o curso (Teoria da Literatura II/UFMG) deparamo-nos com o
seguinte poema de Augusto de Campos (aqui reproduzido com algum
prejuízo de sua dimensão visual — estou respeitando, até onde
alcanço, a poética proposta):
Desapare
Ser
Criar sem
Crer
Quanto mais poeta menos
Dizer
Posso afirmar que esse poema é representativo de uma poética que vai
ao encontro dos pressupostos instrumentais de que se serviu o
jornalista Marcelo Coelho para comentar a obra de Alexei Bueno.
Enquanto precário leitor/fazedor de versos, para quem a palavra
lírica por si só sugeria, entre outras coisas, um componente
emocional, estranhei. Tropecei na secura, (não no paradoxo, nem na
afirmação negativa, ingredientes da poesia) na contra-proposta
ideológica: "Criar sem Crer". Mas não o recusei. Trata-se de um
poema, pois não? Ao instigar-me terá alcançado um dos objetivos da
obra artística. Depois vislumbrei, no seu entorno, no seu "exterior"
a tensão emocional que procurei "dentro".
A tensão, dramática, entre crença e descrença, entre emoção e
frustração, a sugestão de um fechamento, de uma blindagem contra os
desenganos, eventualmente(?) representados noutras poéticas, reflexo
do "luminoso" obscurantismo em que nos encontramos, do
distanciamento entre palavra e ato desde as eras, mas que antes era
obnubilado pela crença (ideologias) e hoje é contemporização quase
(beneplácito?) cínica. A brevidade como forma de escapar das
próprias palavras e da contaminação ideológica: a palavra bomba,
bomba-coisa, (Poema Bomba, Augusto de Campos, poema "verbivocovisual"),
mas não bomba boa ou bomba má, apenas bomba, que, no entanto, acaba
por explodir consigo todo um significado exterior. Poema que não
canta: explode. Devo apupá-lo? Com toda a minha ignorância e
estranheza: não.
E o leitor? Onde está? Mas o leitor (ou a sua ausência) continua a
incomodar. A mim, pelo menos.
Vou à Alexei Bueno (Ode IX, fragmentos, do sítio do JP):
......................................................................
Só pisando subimos,
Só derrotando vencemos,
Só conformando o outro a nós o amor nos alcança,
E tudo isso com sermos, seguramente sermos o outro
Até que nada nos reste de escapatória ou abrigo.
..............................................................................
— E mesmo que venha o navio
Que seremos além de uma sombra na história dos astros?
..............................................................................
É isso mesmo? Como posso "julgar" um poema à luz de outra poética?
Como pode um poeta estar "errado" por professar outra fé?
Nestes versos me tenho mais à vontade. O ouvido está afeiçoado a
esse en/canto da palavra-frase. Posso perfeitamente admitir que
alguém tente quebrar a espinha do signo e/ou inseri-lo noutra
cosmogonia. Sou todo ouvidos/olhos/tato para experimentar. Se não
gostar jamais será em detrimento do poeta. Cocô de cabrito sai do cu
do cabrito. Cocô de vaca sai do cu da vaca. O pasto é o mesmo. E os
dois estercam. Eu quero esse esterco. Eu quero o que esse esterco
cria. Quem sabe aprender os aparelhos digestivos. Os porquês dessa
digestão.
Quando li pela primeira vez "Salomão" viajei distanciado. Passei
pelo menino cujos olhos eram arrancados pelo abutre e mesmo assim
não me assustei. Era um menino ficcional. Eu estava amaciado num
contexto que compreendia a tragédia humana. Era um deus apreciando a
faina humana. Os heróis já tinham pintado, os que dizem NÃO, os que
vão à frente, enchendo-me de gozo. O relato preparatório, acho que
aquele "O relato do Capitão", que se inicia no século Cem, de
Ésquilo, vem tangendo esse deus (eu mesmo, sim senhor) distanciado
para cada vez mais perto da cena, para um presente ainda ficcional,
e depois derruba-o no presente real daquela foto em que, de fato, a
arte desaparece e fica o terror: "...e nunca toquei no moleque com
as minhas mãos, porque minhas mãos estavam em arte!" Isso me gelou,
Feitosa. Isso me matou por uns dias. Depois voltei aos panos,
humilhado e mais humilde, pelo menos por uns dias, e fiquei pensando
na relação do poema com a foto, da poesia com a realidade. Tantos
assuntos instigantes em vez de um confronto surdo de egos.
Acabo de reler o "Poema Sujo" de Ferreira Gullar. Ele me outorga
imensa liberdade. Ele é composto de inúmeros pequenos poemas. Onde a
verdade? Em lugar nenhum, necessariamente. Não me interessa ouvir
apupos contra quem quer que seja. Interessa-me ouvir argumentos,
teses, propostas. Dirão que leia os alfarrábios. Direi que os tenho
lido. Mas se os doutos puderem trocar em miúdos, talvez a gente
possamos aprender a ler, pensar, e escrever poesias. E gostar cada
vez muitos mais de tudo isto.
Com o meu abraço e minha admiração por tudo que você tem feito,
incluindo o esforço hercúleo do JP,
Luiz Paulo Santana
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