Luiz Angélico da Costa



Verso profético
A Tarde On Line

 

Desde o começo de 2005, o mundo comemora os 150 anos da primeira edição de Leaves of Grass (Folhas da Relva), de Walt Whitman (1855). O aniversário da primeira edição do livro, considerado um dos mais singulares da poesia moderna, está sendo celebrado em festivais, publicações, conferências, leituras públicas e até concertos, provando a atualidade da obra de Whitman para as mais diferentes culturas e gerações.

Nos Estados Unidos, até 3 de dezembro, a Biblioteca do Congresso apresenta a exposição Revising Himself: A Celebration of the 150th Anniversary of Walt Whitman’s Leaves of Grass. A Biblioteca Pública de Nova Iorque, por sua vez, realiza uma mostra com itens preciosos, como primeiras edições de Leaves of Grass e manuscritos.

No Brasil, a homenagem a Walt Whitman e aos 150 anos de sua obra-prima ficará por conta da editora Iluminuras, que lança, até o final deste mês, a versão original de Leaves of Grass. Traduzida e organizada pelo poeta, tradutor e jornalista Rodrigo Garcia Lopes, a edição bilíngüe conta com extenso posfácio que analisa a trajetória do livro e seu autor. Até então, o leitor brasileiro só tinha conhecimento de uma seleta daqueles poemas, publicada pela Brasiliense em 1983.

Segundo o crítico Ivan Marki, “o Whitman que o mundo foi capaz de esquecer surge com força total e em sua forma mais pura na primeira edição; as edições posteriores podem reforçar e, particularmente em 1860, até ressaltar sua estatura enquanto poeta, mas seu impacto como uma figura cultural perde força em cada reaparição. Em nenhuma edição subseqüente a integridade de visão e estrutura é realizada com mais sucesso do que na primeira” (ATC-Redação).
 

 


Luiz Angélico da Costa
 

O Folhas da Relva de Whitman é uma autoconstrução orgânica; assim como a lenda Walt Whitman, se constrói a partir das contraditórias vivências do indivíduo Walter Whitman Jr., cidadão de Brooklyn N.Y. (USA), que decidiu transfigurar anotações feitas de 1847 a 1854 em 12 poemas a que ele deu o nome de Leaves of Grass – rompendo uma tradição de estética transcendentalista e de padrão formal que então dominava a criação poética em seu país.

Num poema que ele intitula Song of Myself, apresenta-se afrontosamente como Walt Whitman, an American, one of the roughs, a kosmos (expressão coloquial relativa a pessoas da camada inferior da população). O desafio vem profundo em fundo e forma, com uma intenção de agredir mal e disfarçada, subversão gramatical anunciada na transgressão ortográfica do uso do k em lugar do c no vocábulo kosmos, que, por si só, já era indício de uma auto-afirmação propositalmente exagerada, no sentido de autopromover-se. Por trás de toda essa intenção transgressora de um homem que já atingira 36 anos de vida, estava o impulso autêntico insopitável do bardo, precursora e ostensivamente de modo político incorreto, do homem contaminado pelo comportamento visceral de um aprendiz de profeta.

Os subseqüentes 37 anos de sua vida seriam gastos na promoção desse pequeno livro, em cuja página oposta à do título intrigante e revelador aparecia uma foto do poeta em atitude deliberadamente relaxada, com uma das mãos num bolso e a outra no quadril, sem casaco, com a camisa aberta ao peito, chapéu inclinado para um lado, em postura de alguém que buscava sem dúvida fazer-se notar como diferente.

Apresenta-se explicitamente como inovador de forma e conteúdo poéticos. No primeiro caso, trata-se do tamanho incomum de seus versos – de variada acentuação forte e compassos irregulares – que lembram a linguagem da Bíblia na versão do Rei Jaime, notadamente nos textos dos salmistas, assim como na freqüência do uso da construção paralela e da repetição retórica, e mais ainda da insistente utilização de um simbolismo alcandorado e messiânico que, a rigor, contrasta com sua autoproclamação inicial como homem do povo, como um apóstolo do homem comum.

SABEDORIA – A despeito de toda a crítica negativa que inevitavelmente havia de causar uma obra tão revolucionária em intenções e execução, em meio a um conservadorismo desabridamente hostil dos dois lados do Atlântico, um parentesco intelectual inesperado iria fazer com que Whitman fosse encontrar em Ralph Waldo Emerson o mais decisivo apoio à sua obra corajosa. Em 21 de julho de 1855, Emerson escreveu a Whitman: Dear Sr. – I am not blind to the worth of the wonderful gift of “Leaves of Grass”. I find it the most extraordinary piece of wit and wisdom that America has yet contributed (...) I greet you at the beginning of a great career (...) Prezado Senhor. – Não sou cego ao valor da dádiva maravilhosa do “Leaves of Grass”. Considero-o a peça mais extraordinária de verve e sabedoria que a América jamais produziu (...) Saúdo-o no começo de uma grande carreira (...)

No mesmo ano, Henry David Thoreau escreve em carta para um amigo: That Walt Whitman, of whom I wrote, is the most interesting fact to me at present. I have just read his second edition and it has done me more good than any reading for a long time. Esse Walt Whitman, a respeito de quem lhe escrevi, é fato mais interessante para mim no momento. Li a 2ª edição do livro dele e me fez mais bem do que qualquer outra leitura há muito tempo.
 

As críticas negativas que se sucediam na imprensa iam da acusação frontal à agramaticalidade da linguagem do autor (como número excessivo de neologismos, construções morfossintáticas espúrias, estrangeirismos, etc.) à crítica aberta de agressão ao pudor público. Falava-se que era um livro que não podia ser lido por mulheres, e coisas que tais.

De quando em quando, porém, surgia um reconhecimento do mérito da obra e até da parte de algum conservador que ousava enxergar e declarar de público valores inquestionáveis no livro e desculpas para a ousadia de sua linguagem. Foi o caso de Edward Everett Hale, famoso clérigo de Boston, que, antes mesmo de Emerson e Thoreau, saiu em defesa de Leaves of Grass, considerando que nada de ofensivo havia no livro que já não estivesse em certas passagens de Homero.

Assim sendo, após a 2ª- edição de 1856, com seu número de poemas aumentado para 32, seguiu-se a terceira em 1860, com 124 poemas novos e grande revisão de poemas anteriores. Seis outras edições (entre 1867 e 1892) foram publicadas. A 9ª- edição (concluída em 1891 e publicada em 1892) foi a última revista em vida por Whitman, sendo geralmente conhecida como The Deathbed Edition (“Edição do Leito da Morte”, porque foi exatamente a do ano de 1892, quando Whitman faleceu), que o poeta declarou ser a sua preferida “para futuras impressões, se houver alguma”.
 
ALVO DA CENSURA – Whitman termina a vida com grande desilusão política, mas manteve até o fim o espírito combativo, em protestos contra a prostituição organizada e contra o fanatismo, em sua contínua e desassombrada carreira jornalística.

A censura nunca deixou de persegui-lo, entretanto. Em pleno século XX, em 1948, exemplares de Leaves of Grass foram retirados de uma livraria em Quebec, Canadá, juntamente com outros livros marcados como subversivos e indecentes. Mas o próprio século XX havia de ser o da libertação final para a obra do homem que plasmou a estrutura do verso livre na literatura dos EUA. E ao mesmo tempo em que o usava instrumentalmente para trombetear os ideais democráticos de seu país continental, usava-o igualmente para penetrar mais fundo na essência da importância da ocupação humana de grandes extensões geográficas, transformando assim a sua obra em algo mais importante do que uma visão (e louvação) nacionalista dos espaços de sua terra natal.

Whitman foi um arauto da consciência cósmica, da função do homem em seu planeta. O Brasil não foi ignorado: Welcome, Brazilian brother – thy ample space is ready (...) (Bem vindo, irmão brasileiro – teu espaço já está pronto (do poema “A Christmas Greeting”; Uma Saudação de natal).

A par dos desdobramentos da obra em suas variadas edições, Whitman demonstra e exibe também um poder fantástico de síntese do Leaves of Grass em versos isolados que contêm as sementes e a reprodução infinita de seu estro poético. Um verso como I believe a leaf of grass is no less than the journey-work of the stars (nossa epígrafe) nos dá a dimensão profética do que seria o desabrochar da totalidade da obra, do mesmo modo como essa totalidade sintetiza-se na inspiração de versos isolados – como o recém-citado. Mais outro exemplo: In every object, mountain, tree and stars – in every birth and life, (...)/ A mystic cipher waits unfolded (Em cada objeto, montanha, árvores e estrelas – em cada nascimento e vida (...)/uma cifra mística agurda, ainda não decodificada. (do poema “Shakespeare-Bacon’s Cipher”: O Código Shakespeare Bacon).

O famoso prefácio para a 1ª- edição de 1855, preparada e paga pelo próprio poeta, iria, em edições posteriores, ser virtualmente incorporado a novos poemas quanto a seu conteúdo de extremada celebração da América relativamente a seu passado e sua marcha para o futuro. Não é, portanto, de admirar-se que Whitman viesse a ser chamado de “poeta da democracia”. Mas é importante observar que Whitman é mais do que o poeta da democracia em termos fechados de nacionalismo exclusivista; ele é antes o poeta da consciência planetária, da visão profética da indispensabilidade da união de todos pela prevalência do bem comum em todos os quadrantes do globo. E, neste sentido, ele se colocou além da nossa própria pós-modernidade. Vamos lhe dar a palavra final deste contexto: The known universe has one complete lover and that is the greatest poet (...) (O universo conhecido tem um amante completo e esse é o seu maior poeta (do prefácio da 1ª- edição) nos diz W.W. em seu prefácio em prosa para a 1ª- edição do Leaves of Grass: prosa que já era poesia.

Leaves of Grass não é somente um livro de poemas que cresce organicamente de dentro para fora e se esparrama em cada novo verso – análise e síntese do todo. Leaves of Grass é como um grande poema unificado, gerado por inúmeros poemas e inúmeros versos fundadores, do mesmo modo como cada pequena folha de relva representa o todo na construção metafórica do título-mensagem da obra.
 

No século XX, temos a comemorar a edição de 1995, de Kenneth M. Price e Ed Folsom. Já agora, no alvorecer do século XXI, a revista Virginia Quarterly Review, em sua edição especial da primavera de 2005, nos dá os mais recentes estudos críticos sobre Leaves of Grass, com o valor agregado de haverem sido alguns desses estudos escritos por importantes poetas contemporâneos de língua inglesa, como Galway Kinnell, Edward Hirsch e Robert Creely. Este último, juntamente com o saudoso Allen Ginsberg, diríamos, é membro nato da tribo do espírito whitmaniano na poesia de língua inglesa.


 
Luiz Angélico da Costa é professor Emérito da Ufba (1996), foi professor titular de língua inglesa e literaturas de língua inglesa do Instituto de Letras de 1971 a 1992. É ensaísta literário e tradutor.

 

 

Maria Georgina Albuquerque

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Teresa Schiappa

 

 

 

 

 

 

04/11/2005