Luiz Angélico da Costa
Pacto de (re)criação
Transcorrendo este ano os 150 anos de nascimento de Oscar Fingal O’Flahertie
Wills Wilde (1854-1900), conhecido dramaturgo, poeta, ficcionista e
ensaísta de língua inglesa nascido na Irlanda (Dublin), a Editora
Landmark acaba de trazer a público o livro Contos Completos, dentro
do louvável projeto Novas Leituras (“Novas traduções para grandes
textos clássicos em edições bilíngües”).
A obra nos
é presenteada a partir de “textos originais em inglês de domínio
público”, com “Prefácio, Tradução e Notas” de Luciana Salgado,
revisão de Danielle F. Camillo. Louve-se de início, a escolha da
tradutora, pela maneira como enfrentou os desafios dos
singularíssimos textos de Wilde, pela qualidade de seu prefácio e
pela oportunidade de suas notas. Em seguida, louve-se a decisão
editorial de brindar o leitor versado em língua inglesa com uma
edição bilíngüe e, em particular, pela apresentação do texto autoral
às margens do texto traduzido - à esquerda, a página de número par
e, à direita, a página de número ímpar.
Considerando-se que somente o leitor proficiente na língua inglesa
buscará o texto original (para comparação, reexame ou puro deleite),
pode-se relevar a dificuldade de leitura desse texto - decorrente do
tamanho do tipo - e, simultaneamente, aplaudir a disposição do texto
na página - de forma como não me ocorre ter visto em outra
publicação bilíngüe.
Ainda em
relação ao projeto editorial, percebe-se que houve um critério
inteligente no reagrupamento das stories de Wilde, ainda que, de
modo geral tenham sido seguidos os passos da edição Collins de The
Works of Oscar Wilde (London and Glasgow: s.d.). Só um exemplo: o
início do livro com The Happy Prince and Other Stories (O Príncipe
Feliz e outras Histórias), ao invés de com Lord Arthur Savile’s
Crime and Other Stories (O Crime de Lorde Arthur Savile e outra
Histórias). Essa inversão naturalmente predispõe o leitor a
adaptar-se ao clima descontraído daquelas alegorias com que Wilde
desconstruiu os clássicos fairy tales, a despeito da oportuna
observação de Luciana Salgado, ao dizer em seu prefácio: “Nos contos
de Oscar Wilde, príncipes e princesas não são felizes para sempre”.
Do
trabalho da tradutora, como um todo, creio que seu maior mérito é o
de todo bom tradutor: o pacto espontâneo com o criador do texto que
ele pretende recriar - sem perder de vista que o ato tradutório é
igualmente o compromisso que este artesão (o tradutor) faz consigo
mesmo, no sentido de passar a expressão do outro (o autor) em sua
própria voz, leia-se, do tradutor. E quanto mais se esmera nessa
tarefa de enfrentar e ultrapassar desafios, tanto mais se aproxima o
tradutor da condição de artista. Em outras palavras, quando consigo
fruir prazer semelhante àquele que experimentei na leitura do texto
em sua língua de origem, sinto que o tradutor cumpriu o seu papel -
desde que se possa encontrar em sua reescritura as necessárias
marcas de uma literatura que se sabe e se quer estrangeira.
Essas
marcas são, por assim dizer, mal comparando, talvez, o sotaque do
texto, que é para ser encontrado não no léxico ou na sintaxe do
texto mas em elementos tais como ritmo, o tom, a atmosfera, os itens
culturais, a musicalidade da expressão, além da natural ambiência
histórico-geográfica do texto original. Vivi essa experiência lendo,
alternadamente, o texto de Oscar Wilde e o de Luciana Salgado.
DRAMA DO DUPLO - A tradutora conseguiu captar as singularidades
estilísticas do grande contador de histórias que era Wilde: seu
gosto pelas descrições minuciosas, seus rompantes retóricos, seus
refrões, suas ironias, seus paradoxos e a capacidade inigualável de
causeur que transparece em sua expressão - manobrando ela com
absoluta espontaneidade o habitual sentir e expressar metafórico de
Wilde. E, acima de tudo, o hábito visceral que ele tinha de viver
para a beleza, assim como para o prazer e a felicidade, como se
estivesse antecipando a cada minuto a feiúra e a infelicidade que
iria encontrar nos “anos malditos” que passaria na prisão - em
Pentoville, em Wandsworth e em Reading, após sua condenação por
“crime de homossexualismo”. (O tempora, o mores!). Seja como tenha
sido, não é o nosso assunto aqui.
Nosso
assunto é a grande ironia da genialidade de um artista e da
turbulência existencial de um homem que viveu intensamente o drama
do duplo: O Retrato de Dorian Gray, seu único romance, ou até mesmo
o aparentemente simples O Príncipe Feliz, como ele próprio admitiu
em De Profundis; o dilema do artista que proclamava aos quatro
ventos a supremacia absoluta da “arte pela arte” - sem nenhum
compromisso moral - mas cuja arte, particularmente nos seus contos,
era irmã gêmea de profunda e até angustiante convicção moral. É
óbvio que não estou falando de moralismo; falo, sim, de jóias do
comprometimento moral, como se encontrarão nestes contos - mesclados
com a ira e o humor que produzem toda grande obra de arte. O resto é
só superfície.
Volto à
minha resenha de Contos Completos, para dizer, antes de terminar
esta pequena homenagem a Oscar Wilde, que o próprio valor da edição
exige que se revejam alguns senões de natureza formal na impressão
do texto. Anotei-os e poderia apontá-los se assim me solicitassem.
São pequenas questões de revisão, inclusive na tradução.
Acima de
tudo, porém, vale a oportunidade e a qualidade da obra, que me
parece em si própria valiosa homenagem a Oscar Wilde, a quem dou a
palavra final - ainda que para desmenti-lo: All art is quite useless!
(Toda arte é inteiramente inútil!) - como ele encerra o Prefácio de
The Picture of Dorian Gray.
Leiam-se
com prazer estes contos e veja-se como em quase todos, assim como na
quase totalidade da obra de Oscar Wilde, a permanente busca da
beleza e do prazer é uma necessidade de utilização do tempo e da
vida, onde se insere também uma incessante busca de um propósito
moral.
Não ter
feito de sua arte veículo de aquisição utilitária, panfletagem
política, proselitismo religioso ou mesmo pregação moral é
manifestação de um posicionamento ético que ele também teimava em
negar.
Luiz Angélico da Costa, Professor
Titular de Língua e Literatura de Língua
Inglesa aposentado, é Professor Emérito
da Ufba e tradutor.
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