Machado de Assis
Resposta de Machado de Assis
Rio de Janeiro, 29 de fevereiro de 1868.
Exmo. Sr. — É boa e grande fortuna conhecer um poeta;
melhor e maior fortuna é recebê-lo das mãos de V. Exa, com uma carta
que vale um diploma, com uma recomendação que é uma sagração. A musa
do Sr. Castro Alves não podia ter mais feliz intróito na vida
literária. Abre os olhos em pleno Capitólio. Os seus primeiros
cantos obtêm o aplauso de um mestre. — Mas se isto me entusiasma,
outra coisa há que me comove e confunde, é a extrema confiança, que
é ao mesmo tempo um motivo de orgulho para mim. De orgulho, repito,
e tão inútil fera dissimular esta impressão, quão arrojado seria ver
nas palavras de V. Exa. mais do que uma animação generosa. — A
tarefa da crítica precisa destes parabéns; é tão árdua de praticar,
já pelos estudos que exige, já pelas lutas que impõe, que a palavra
eloqüente de um chefe é muitas vezes necessária para reavivar as
forças exaustas e reerguer o ânimo abatido. — Confesso francamente,
que, encetando os meus ensaios de crítica, fui movido pela idéia de
contribuir com alguma coisa para a reforma do gosto que se ia
perdendo, e efetivamente se perde. Meus limitadíssimos esforços não
podiam impedir o tremendo desastre. Como impedi-lo, se, por
influência irresistível, o mal vinha de fora, e se impunha ao
espírito literário do país, ainda mal formado e quase sem
consciência de si? Era difícil plantar as leis do gosto, onde se
havia estabelecido uma sombra de literatura, sem alento nem ideal,
falseada e frívola, mal imitada e mal copiada. Nem os esforços dos
que, como V. Exa, sabem exprimir sentimentos e idéias na língua que
nos legaram os mestres clássicos, nem esses puderam opor um dique à
torrente invasora. Se a sabedoria popular não mente, a
universalidade da doença podia dar-nos alguma consolação quando não
se antolha remédio ao mal. — Se a magnitude da tarefa era de
assombrar espíritos mais robustos, outro risco havia: e a este já
não era a inteligência que se expunha, era o caráter. Compreende V.
Ex.a que, onde a crítica não é instituição formada e assentada, a
análise literária tem de lutar contra esse entranhado amor paternal
que faz dos nossos filhos as mais belas crianças do mundo. Não raro
se originam ódios onde era natural travarem-se afetos. Desfiguram-se
os intentos da crítica, atribui-se à inveja o que vem da
imparcialidade: chama-se antipatia o que é consciência. Fosse esse,
porém, o único obstáculo, estou convencido que ele não pesaria no
ânimo de quem põe acima do interesse pessoal o interesse perpétuo da
sociedade, porque a boa fama das musas o é também. — Cansados de
ouvir chamar bela à poesia, os novos atenienses resolveram bani-la
da república. — O elemento poético é hoje um tropeço ao sucesso de
uma obra. Aposentaram a imaginação. As musas, que já estavam apeadas
dos templos, foram também apeadas dos livros. A poesia dos sentidos
veio sentar-se no santuário e assim generalizou-se uma crise funesta
às letras. Que enorme Alfeu não seria preciso desviar do seu curso
para limpar este presepe de Augias? — Eu bem sei que no Brasil, como
fora dele, severos espíritos protestam com o trabalho e a lição
contra esse estado de coisas: tal é, porém, a feição geral da
situação, ao começar a tarde do século. Mas sempre há de triunfar a
vida inteligente. Basta que se trabalhe sem trégua. Pela minha
parte, estava e está acima das minhas posses semelhante papel,
contudo. entendia e entendo — adotando a bela definição do poeta que
V. Exa dá em sua carta — que há para o cidadão da arte e do belo
deveres imprescritíveis, e que, quando uma tendência do espírito o
impele para certa ordem de atividade, é sua obrigação prestar esse
serviço às letras. — Em todo o caso não tive imitadores. Tive um
antecessor ilustre, apto para este árduo mister, erudito e profundo,
que teria prosseguido no caminho das suas estréias, se a imaginação
possante e vivaz não lhe estivesse exigindo as criações que depois
nos deu. Será preciso acrescentar que aludo a V. Ex.a? —
Escolhendo-me para Virgílio do jovem Dante que nos vem da pátria de
Moema, impõe-me um dever, cuja responsabilidade seria grande se a
própria carta de V. Exa não houvesse aberto ao neófito as portas da
mais vasta publicidade. A análise pode agora esmerilhar nos escritos
do poeta belezas e descuidos. O principal trabalho está feito. —
Procurei o poeta cujo nome havia sido ligado ao meu, e, com a
natural ansiedade que nos produz a notícia de um talento robusto,
pedi-lhe que me lesse o seu drama e os seus versos. — Não tive, como
V. Exa, a fortuna de os ouvir diante de um magnífico panorama. Não
se rasgavam horizontes diante de mim: não tinha os pés nessa formosa
Tijuca, que V. Exa chama um escabelo entre a nuvem e o pântano. Eu
estava no pântano, em torno de nós agitava-se a vida tumultuosa da
cidade. Não era o ruído das paixões nem dos interesses; os
interesses e as paixões tinham passado a vara à loucura: estávamos
no carnaval. — No meio desse tumulto abrimos um oásis de solidão. —
Ouvi o Gonzaga e algumas poesias. — V. Exa já sabe o que é o drama e
o que são os versos, já os apreciou consigo, já resumiu a sua
opinião. Esta carta, destinada a ser lida pelo público, conterá as
impressões que recebi com a leitura dos escritos do poeta. — Não
podiam ser melhores as impressões. Achei uma vocação literária,
cheia de vida e robustez, deixando antever nas magnificências do
presente as promessas do futuro. Achei um poeta original. O mal da
nossa poesia contemporânea é ser copista — no dizer, nas idéias e
nas imagens. Copiá-las é anular-se. A musa do Sr. Castro Alves tem
feição própria. Se se adivinha que a sua escola é a de Vítor Hugo,
não é porque o copie servilmente, mas porque uma índole irmã levou-o
a preferir o poeta das Orientais ao poeta das Meditações. Não lhe
aprazem certamente as tintas brancas e desmaiadas da elegia; quer
antes as cores vivas e os traços vigorosos da ode. — Como o poeta
que tomou por mestre, o Sr. Castro Alves canta simultaneamente o que
é grande e o que é delicado, mas com igual inspiração e método
idêntico a pompa das figuras, a sonoridade do vocábulo, uma forma
esculpida com arte, sentindo-se por baixo desses lavores o estro, a
espontaneidade, o ímpeto. Não é raro andarem separadas estas duas
qualidades da poesia: a forma e o estro. Os verdadeiros poetas são
os que as têm ambas. Vê-se que o Sr. Castro Alves as possui; veste
as suas idéias com roupas finas e trabalhadas. O receio de cair em
um defeito, não o levará a cair no defeito contrário? Não me parece
que lhe haja acontecido isso; mas indico-lhe o mal, para que fuja
dele. É possível que uma segunda leitura dos seus versos me
mostrasse alguns senões fáceis de remediar; confesso que os não
percebi no meio de tantas belezas. — O drama, esse li-o atentamente;
depois de ouvi-lo, li-o, e reli-o, e não sei bem se era a
necessidade de o apreciar, se o encanto da obra, que me demorava os
olhos em cada página do volume. — O poeta explica o dramaturgo.
Reaparecem no drama as qualidades do verso; as metáforas enchem o
período; sente-se de quando em quando o arrojo da ode. Sófocles pede
as asas a Píndaro. Parece ao poeta que o tablado é pequeno; rompe o
céu de lona e arroja-se ao espaço livre e azul. — Esta exuberância
que V. Exa com justa razão atribui à idade, concordo que o poeta há
de reprimi-la com os anos. Então conseguirá separar completamente a
língua lírica da língua dramática; e do muito que devemos esperar
temos prova e fiança no que nos dá hoje. — Estreando no teatro com
um assunto histórico, e assunto de uma revolução infeliz, o Sr.
Castro Alves consultou a índole do seu gênio poético. Precisava de
figuras que o tempo houvesse consagrado; as da Inconfidência tinham
além disso a auréola do martírio. Que melhor assunto para excitar a
piedade? A tentativa abortada de uma revolução, que tinha por fim
consagrar a nossa independência, merece do Brasil de hoje aquela
veneração que as raças livres devem aos seus Espártacos. O insucesso
fê-los criminosos; a vitória tê-los-ia feito Washingtons.
Condenou-os a justiça legal; reabilita-os a justiça histórica. —
Condensar estas idéias em uma obra dramática, transportar para a
cena a tragédia política dos Inconfidentes, tal foi o objeto do Sr.
Castro Alves, e não se pode esquecer que, se o intuito era nobre, o
cometimento era grave. O talento do poeta superou a dificuldade; com
uma sagacidade que eu admiro em tão verdes anos, tratou a história e
a arte por modo que, nem aquela o pode acusar de infiel, nem esta de
copista. Os que, como V. Exa, conhecem esta aliança, hão de avaliar
esse primeiro merecimento do drama do Sr. Castro Alves. — A escolha
de Gonzaga para protagonista foi certamente inspirada ao poeta pela
circunstância dos seus legendários amores, de que é história aquela
famosa Marília de Dirceu. Mas não creio que fosse só essa
circunstância. Do processo resulta que o cantor de Marília era tido
por chefe da conspiração, em atenção aos seus talentos e letras. A
prudência com que se houve desviou da sua cabeça a pena capital.
Tiradentes, esse era o agitador; serviu à conspiração com uma
atividade rara; era mais um conspirador do dia que da noite. A
justiça o escolheu para a forca. Por tudo isso ficou o seu nome
ligado ao da tentativa de Minas. — Os amores de Gonzaga traziam
naturalmente ao teatro o elemento feminino, e de um lance,
casavam-se em cena a tradição política e a tradição poética, o
coração do homem e a alma do cidadão. A circunstância foi bem
aproveitada pelo autor; o protagonista atravessa o drama sem
desmentir a sua dupla qualidade de amante e de patriota; casa no
mesmo ideal os seus dois sentimentos. Quando Maria lhe propõe a
fuga, no terceiro ato, o poeta não hesita em repelir esse recurso,
apesar de ser iminente a sua perda. Já então a revolução expira;
para as ambições, se ele as houvesse, a esperança era nenhuma; mas
ainda era tempo de cumprir o dever. Gonzaga preferiu seguir a lição
do velho Horácio corneiliano: entre o coração e o dever a
alternativa é dolorosa. Gonzaga satisfaz o dever e consola o
coração. Nem a pátria nem a amante podem lançar-lhe nada em rosto. —
O Sr. Castro Alves houve-se com a mesma arte em relação aos outros
conjurados. Para avaliar um drama histórico, não se pode deixar de
recorrer à história; suprimir esta condição é expor-se a crítica a
não entender o poeta. — Quem vê o Tiradentes do drama não reconhece
logo aquele conjurado impaciente e ativo, nobremente estouvado, que
tudo arrisca e empreende, que confia mais que todos no sucesso da
causa, e paga enfim as demasias do seu caráter com a morte na forca
e a profanação do cadáver? E Cláudio, o doce poeta, não o vemos todo
ali, galhofeiro e generoso, fazendo da conspiração uma festa e da
liberdade uma dama, gamenho no perigo, caminhando para a morte com o
riso nos lábios, como aqueles emigrados do Terror? Não lhe rola já
na cabeça a idéia do suicídio, que praticou mais tarde, quando a
expectativa do patíbulo lhe despertou a fibra de Catão, casando-se
com a morte, já que se não podia casar com a liberdade? Não é aquele
o denunciante Silvério, aquele o Alvarenga, aquele o padre Carlos?
Em tudo isso é de louvar a consciência literária do autor. A
história nas suas mãos não foi um pretexto; não quis profanar as
figuras do passado, dando-lhes feições caprichosas. Apenas empregou
aquela exageração artística, necessária ao teatro, onde os
caracteres precisam de relevo, onde é mister concentrar em pequeno
espaço todos os traços de uma individualidade, todos os caracteres
essenciais de uma época ou de um acontecimento. — Concordo que a
ação parece às vezes desenvolver-se pelo acidente material. Mas
esses raríssimos casos são compensados pela influência do princípio
contrário em toda a peça. — O vigor dos caracteres pedia o vigor da
ação, ela é vigorosa e interessante em todo o livro; patética no
último ato. Os derradeiros adeuses de Gonzaga e Maria excitam
naturalmente a piedade, e uns belos versos fecham este drama, que
pode conter as incertezas de um talento juvenil, mas que é com
certeza uma invejável estréia. — Nesta rápida exposição das minhas
impressões, vê V. Exa que alguma coisa me escapou. Eu não podia, por
exemplo, deixar de mencionar aqui à figura do preto Luís. Em uma
conspiração para a liberdade, era justo aventar a idéia da abolição.
Luís representa o elemento escravo Contudo o Sr. Castro Alves não
lhe deu exclusivamente a paixão da liberdade. Achou mais dramático
pôr naquele coração os desesperos do amor paterno. Quis tornar mais
odiosa a situação do escravo pela luta entre a natureza e o fato
social, entre a lei e o coração. Luís espera da revolução, antes da
liberdade a restituição da filha; é a primeira afirmação da
personalidade humana; o cidadão virá depois. Por isso, quando no
terceiro ato Luís encontra a filha já cadáver, e prorrompe em
exclamações e soluços, o coração chora com ele, e a memória, se a
memória pode dominar tais comoções, nos traz aos olhos a bela cena
do rei Lear, carregando nos braços Cordélia morta. Quem os compara
não vê nem o rei nem o escravo: vê o homem. — Cumpre mencionar
outras situações igualmente belas. Entra nesse número a cena da
prisão dos conjurados no terceiro ato. As cenas entre Maria e o
governador também são dignas de menção, posto que prevalece no
espírito o reparo a que V. Exa aludiu na sua carta. O coração
exigira menos valor e astúcia da parte de Maria; mas, não é verdade
que o amor vence as repugnâncias para vencer os obstáculos? Em todo
o caso uma ligeira sombra não empana o fulgor da figura. — As cenas
amorosas são escritas com paixão: as palavras saem naturalmente de
uma alma para outra, prorrompem de um para outro coração. E que
contraste melancólico não é aquele idílio às portas do desterro,
quando já a justiça está prestes a vir separar os dois amantes! —
Dir-se-á que eu só recomendo belezas e não encontro senões? Já
apontei os que cuidei ver. Acho mais — duas ou três imagens que me
não parecem felizes: e uma ou outra locução suscetível de emenda.
Mas que é isto no meio das louçanias da forma? Que as demasias do
estilo, a exuberância das metáforas, o excesso das figuras devem
obter a atenção do autor, é coisa tão segura que eu me limito a
mencioná-las: mas como não aceitar agradecido esta prodigalidade de
hoje, que pode ser a sábia economia de amanhã? — Resta-me dizer que,
pintando nos seus personagens a exaltação patriótica, o poeta não
foi só à lição do fato, misturou talvez com essa exaltação um pouco
do seu próprio sentir. É a homenagem do poeta ao cidadão. Mas,
consorciando os sentimentos pessoais aos dos seus personagens, é
inútil distinguir o caráter diverso dos tempos e das situações. Os
sucessos que em 1822 nos deram uma pátria e uma dinastia, apagaram
antipatias históricas que a arte deve reproduzir quando evoca o
passado. — Tais foram as impressões que me deixou este drama viril,
estudado e meditado, escrito com calor e com alma. A mão é
inexperiente, mas a sagacidade do autor supre a inexperiência.
Estudou e estuda; é um penhor que nos dá. Quando voltar aos arquivos
históricos ou revolver as paixões contemporâneas, estou certo que o
fará com a mão na consciência. Está moço, tem um belo futuro diante
de si. Venha desde já alistar-se nas fileiras dos que devem
trabalhar para restaurar o império das musas. — O fim é nobre, a
necessidade é evidente. Mas o sucesso coroará a obra? É um ponto de
interrogação que há de ter surgido no espírito de V. Exa. Contra
estes intuitos, tão santos quanto indispensáveis, eu sei que há um
obstáculo, e V. Exa. o sabe também: é a conspiração da indiferença.
Mas a perseverança não pode vencê-la? Devemos esperar que sim. —
Quanto a V. Exa, respirando nos degraus da nossa Tijuca o hausto
puro e vivificante da natureza, vai meditando, sem dúvida, em outras
obras-primas com que nos há de vir surpreender cá embaixo. Deve
faze-lo sem temor. Contra a conspiração da indiferença, tem V. Exa
um aliado invencível: é a conspiração da posteridade.
publicada no Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 1 de março de 1868
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