Mário Hélio
Translação
Em 1953 o poeta suíço Eugen Gomringer
publicava o seu livro Constelações e quase simultaneamente
lançava-se a poesia concreta no Brasil. Em 1957 César Leal publicava
Invenções da Noite Menor. Esses fatos aleatoriamente citados
poderiam, a princípio, sugerir dois equívocos: o erro de
excessivamente associá-los, ou desconhecer as origens e fontes em
que cada uma dessas poesias situa-se nesse razoável período de
trinta anos. E portanto, importante dar início a um estudo relevante
e de difícil consecução da poesia surgida nos anos cinqüenta no
Brasil. São tão diferentes os caminhos e propósitos de César Leal e
Eugen Gomringer que talvez só tenham em comum o título
Constelações, e mesmo assim entendida com sentido e objetivo
completamente distintos. Os interesses, métodos e critérios de César
Leal enquanto poeta diferem concomitantemente das galáxias
concretistas. É preciso também destacar e assinalar a atividade de
César Leal como crítico literário cuja sensibilidade tem servido
para revelar valores e orientar vocações. Aspecto de sua ação
intelectual também distinto de Gomringer e Concretos. Seu
trabalho enquanto ensaísta e professor é de especial interesse para
os que buscam compreender os rumos da crítica literária no Brasil
durante as últimas décadas. O que foi dito até aqui pareceria
excessivamente óbvio não fosse a desinformação em que geralmente
está imerso o nosso mundo literário. A inquietação do intelecto, do
movimento e da velocidade que marcam o nosso século, junto com a
capacidade esclarecedora deveriam nortear os caminhos do debate, da
discussão de idéias, do permanente intercâmbio num dinâmico
feed-back. Para que o Recife, ao contrário de Homero disputado
por sete cidades e de Camões que, igualmente, diversas cidades
pleiteiam a honra de terem sido o seu berço, a disputa pelo destaque
da mediocridade (que não é a áurea mediocritas horaciana) de
honra por posições mesquinhas adquiridas mais às custas de política
literária irrelevante do que pela justa conquista de relevância
intelectual. É necessário, portanto, abolir a "má consciência" e o
"ódio intelectual". A propósito leia-se o artigo "FAÇA UMA BOA AÇÃO
EM PROVEITO PRÓPRIO" de Waldo Lydeker publicado no último número da
revista "Escrita"; e onde houver São Paulo leia-se Recife,
substituídos os nomes dos bares e das personalidades literárias
teremos um jogo de interesses semelhantes aos da cidade maurícia.
Cabe, por isso, a quem se dispuser à tarefa de analisar uma obra a
sério, esquecer completamente os seus intentos políticos, num país
dominado pela má política, subliterária, onde as academias de letras
são sarcófagos mal dedetizados onde, com raríssimas exceções, surge
um faraó bem embalsamado. Salvo o blá-blá-blá da ABL temos as nossas
próprias Academias, cada uma mais alegre do que a outra. Quem dera
participássemos da árcade Academia dos Esquecidos! E que não
interfiram no julgamento questões dissociadas, pois, escritores
existem medíocres em todas as gerações, às vezes tão medíocres que
precisam de louvores fáceis a seus livros e de autores que
freqüentam o reduzido e desconfortante ambiente da conveniência e da
conivência e, para tornar o trocadilho ainda mais impróprio, da
convivência. Para os estudiosos sérios e competentes é claro que
cabe à tarefa de revelar para o público a importância da obra de
vários autores das mais diversas estaturas e tendências.
Conseqüentemente, o mundo cultural se fortalece a partir da
discussão aberta com o objetivo tão somente de elevar o espírito
humano e aproximar as obras dos leitores às vezes tão estupidamente
subestimados, e dos autores, evitando determinado tipo de crítica
que se considera tão auto-suficiente que dispensa inclusive o
próprio autor e obra, bastando-se a si mesma. É o bastante! E o
momento de amadurecer os conceitos, comprometidos com o homem e seus
problemas. Duas sugestões seriam: o questionamento honesto e
responsável do que representam a vanguarda, a democracia e os
quarenta anos de poesia concreta (tradição da ruptura?) E, outro: os
trinta anos de estréia em livro da poesia de César Leal completados
em 1987. E que, isto não fique apenas na circunstancialidade dos
aniversários, mas que a oportunidade que se anuncia sirva para
testar a instrumentalidade crítica: seu aparato teórico. O que seria
um questionamento do próprio papel da crítica.
Há exatos trinta anos T. S. Eliot
pronunciava na Universidade de Minnesota uma conferência traduzida
sob o título "Fronteiras da Crítica", onde ele analisa os principais
desdobramentos da crítica literária: "Há trinta anos atrás afirmei
que a função essencial da crítica literária era a elucidação das
obras de arte e a correção do gosto. Essa frase pode soar um tanto
pomposa aos nossos ouvidos em 1956. Talvez eu a pudesse simplificar
tomando-a mais aceitável para a época presente, dizendo que, seria
promover a compreensão e a apreciação da literatura. Acrescentaria
que está implícita aqui, também, a tarefa negativa de apontar o que
não deveria ser apreciado. Pois, o crítico pode, dada a ocasião, ser
requisitado a condenar o que é de segunda categoria e a revelar o
que é fraudulento, embora tal obrigação seja secundária ao dever de
louvar discriminadamente o que é louvável". Talvez o leitor tenha
achado bastante longa a citação e já esteja desconfiado de algum
cabalismo com o número trinta. Trata-se de trazer para o dias de
hoje considerações que são válidas como eram há trinta anos. Tal
citação remete a outra de um estudo publicado no mesmo livro (A
Musicalidade da Poesia), traduzido no Brasil pela Artenova com o
título A Essência da Poesia. O outro fragmento referido não tem
considerações assim tão exatas e faz lembrar uma colocação de
Novalis quando dizia que o jovem poeta não consegue ser ameno e
sensato (o próprio Novalis era jovem quando escreveu isto, havendo
falecido antes dos trinta anos), deveria ter servido como preâmbulo
ou epígrafe a este artigo: "Quando o poeta fala ou escreve sobre
poesia, ele tem qualificações ou limitações peculiares: se nós
fizermos uma concessão às últimas, poderemos apreciar melhor as
primeiras — um cuidado que eu recomendo tanto aos próprios poetas
quanto aos leitores daquilo que eles dizem sobre poesia", concluindo
mais adiante: "Em suma, o que o poeta escreve sobre poesia deve ser
estimado em relação à poesia que ele escreve". Este último aspecto,
questionável, talvez se aplique ao próprio Eliot mas que parece um
erro generalizar. O conhecimento teórico e a erudição não
comprometem a poesia nem limitam o alcance da visão de César Leal, o
contrário do que ocorre com o movimento concretista que tem uma
visão muito estreita em uma concepção aberta do poema, reduzindo-o
conscientemente às possibilidades, apesar das milhões de
combinações, e das probabilidades de infinitas leituras. O conceito
unilateral e o isolamento do signo parecem levar a um impasse para
onde o concretismo resvalou como arte poética. O que seria uma
molécula passou a ser o corpo, inexistência de essência. Mas,
especializados em teoria, os concretistas podem provar por alfa mais
ômega o contrário, só que, não há a rigor, uma obra concretista
realizada. César Leal evita que o peso e o teor impliquem na
radicalização e interfiram de modo tirânico na sua poesia. Sua
atividade crítica guarda, senão o máximo, o necessário
distanciamento, para não fazer das obras alheias um prolongamento
das suas curiosidades estéticas. Entretanto, sua poesia, não pode
ser compreendida nem explicada sem um profundo conhecimento de
certas áreas significantes. Apresenta, ainda, uma grande variedade
de temas para desafiar e satisfazer as pesquisas na área da
linguagem, e faz lembrar da época em que a formação clássica e
humanística, interdisciplinar, permitia ao poeta lançarem sua obra
princípios de Filosofia, Astronomia, Retórica, Cosmologia, História,
Teologia e Mitologia. É a ciência do sonho: de arúspides e
alquimistas, e aprendizes de feiticeiro.
O livro Constelações
recentemente lançado reúne toda sua obra poética publicada. Dois
temas são predominantes: o sonho, e a orientação cósmica e social.
Construído a partir de símbolos que ora se revelam ora se ocultam
propositadamente, como quasars, o livro é pleno de
modernidade. O cósmico nessa poesia não tem nada a haver com
supostas irmandades místicas, se refere antes a uma espécie de
sociedade (no sentido político do termo) a que o homem vive sujeito
no universo marcado pelo destino e pelo mistério, ou, dizendo
melhor: o destino do mistério (e vice-versa) é a grande orientação
trágica do ser humano, que ontologicamente, inseguro e frágil,
cansado de desafiar os deuses, após ser absorvido por processos
absurdos ante a fragilidade e insegurança, não ficará indeciso como
um pêndulo hamletiano entre o céu e a terra, a morte e a vida, mas a
instabilidade do estar. O ter nas mãos o próprio destino associa-o
mais a Factonte do que a Prometeu. É a partir dessa consciência que
devem ser lidas as Elegias D'Quinta Estação, que num jogo de
enumerações e simbolizações numéricas põem a nu a insegurança
kafkeana, o papel demiúrgico do poeta, o apelo agônico do poeta,
mago na era da civilização tecnológica, profeta de um futuro
duvidoso. Por sua tragicidade musical as Nove Elegias nada
ficam a dever as dez elegias de Rilke. Num mundo em que a máquina
tenta esmagar a alma, para onde vão os que "cultivam a Terra" e os
que "cultivam nuvens???"
"os que se exerci-
tam diariamente
no
campo das
palavras?.............?
/ / para onde seguem eles com
seus fortes instrumentos
(a pena) (o livro) o verso
(o linossigno)
a máquina da alma sempre alerta?"
Como se nota na sexta elegia a dor de
criar, fertilizar a terra para o próprio cadáver que a fertiliza, a
nuvem para que banhe os túmulos. As crianças, com seus objetos de
sonho, transitam aparentemente incólumes nessa estação, filhas do
onírico, como que ignorando o funeral "brincam deslembradas da
morte" e "capturam a vida entrevista nos sonhos" enquanto o poeta,
onívoro amante do onírico e lúdico reconhece:
"Eis o maior tormento em poesia
/............ / eis o maior tormento:
recusar idéias e tcorenias enquanto cai a chuva
recusar o abstrato
bebendo as
águas
da vida
as águas nuas da vida".
Ursa Maior é uma meditação
sobre a humanidade em face da linguagem e a relação do poeta em
permanente tensão não dispensa todos os jogos possíveis da técnica e
da pesquisa formal. Dilúvio e caos. Enumerações, entropias. Esse
discurso desconcertante como que anunciando alguma linguagem para
além do moderno, do pós, de todos os ismos e dimensões físicas e
metafísicas, senão a consecução daquilo preconizado pelo Rimbaud:
"Trouver une langue: — Du reste, toute parole étant idée, le temps
d'un langage universel viendra! (... ) Cette langue sera de l'âme
pour l'âme". Se o maior tormento em poesia é "recusar idéias e
teoremas ", o pecado do poeta é "o muito amor às teorias em um mundo
teórico", o poeta exorta à vida e à tragicidade desta, "todos os
estados aflitivos que atingem homens e animais", certo de fundar uma
nova linguagem das cinzas e do sangue da dor humana, sabendo-se
hábil para o exercício, certo de que "tudo isso é material para
poetas tudo isso é tema para poemas por isso aqui estou, aqui estou
para exercitar-me, aqui estou para cantar um novo tempo". Daí em
diante é um desfile de imagens, jogos, tudo no terreno da linguagem,
com uma técnica sofisticada. Do questionamento da linguagem do caos,
o jogo das vogais combinadas com colagens de fragmentos de Rimbaud
que fecharão também o poema como uma ouroboro numa crescente
orientação do intelecto para o espanto. O estável e o instável, a
entropia de causas, um trabalho complexo de dilúvio e ordem, até a
inédita utilização de signos que poderiam ser chamados de
fotogramas: personagens científicas como Dirac e Kepler, literárias
como Dante e Rimbaud, ou científicas e literárias como Goethe. Tal
recurso é altamente avançado e simples, e além de sugerências espaço
temporais, como stellas suplantam os experimentos para a
especialização do poema, consegue fundir num signo todo o excesso de
concretude e abstração; técnica e magia, como no estudo de Susan
Sontag e de Walter Benjamin sobre a história da fotografia, citando
Tristan Tzara: "Quando tudo o que chamava arte se paralisou, o
fotógrafo acendeu sua lâmpada de mil velas e gradualmente o papel
sensível à luz absorveu o negrume de alguns objetos de consumo. Ele
tinha descoberto o poder de um relampejar terno e imaculado, mais
importante que todas as constelações para o prazer dos nossos
olhos". O poema abre-se às janelas mais ousadas, permitindo o livre
transcurso de todas as formas de linguagem em "contínuo
exercitar-se", onde participam a abstração da ciência que se
aproxima do poético, a ciência que tanto fascínio exerceu em Dante e
Goethe: "Dante e Goethe viram muito porque muito observaram". É do
conhecimento geral que a ciência nutre-se da experimentação e da
abstração. Muito pode ser aprendido das relações entre a poética e o
mundo científico: parece ser esta a poesia do futuro: o jogo com a
ciência e suas conquistas tinido ao exame de imagens onde a poesia
emerge "entre as sombras e o sono a linguagem do sonho". O
sentimentalismo romântico parece definitivamente sepultado para dar
lugar à emoção cósmica de cada descoberta que modifica, altera e
transfere a ligação corri a natureza. Se é possível falar em
tecnologia do poético de César Leal é um exemplo fundamental, no
sentido estrito etimológico-semântico da palavra. E um poema que
consegue o universal, oferece um campo aberto para indagações e as
injuções do intelecto. A entropia figura com segurança entre os
diversos elementos que se reúnem na operação de Ursa Maior e por
intenção na poesia de César Leal que desde a A Quinta Estação
com suas repetições e sua pontuação organizada oferecendo infinitas
possibilidades de leitura — aqui as indagações e o espaço em aberto
das constelações em todos os sentidos e direções a poética da
modernidade e em especial a de Rimbaud comentada por Luiz Costa
Lima: "A obra poética se caracteriza pela combinação de cheios e
vazios, de enunciados plenos que, ao mesmo tempo, contém fissuras,
que aí se colocam — não digo conscientemente — para serem
preenchidas pelo leitor". Ao contrário do que supõe Costa Lima tal
orientação é realizada conscientemente em Rimbaud e, em César Leal é
utilizada não apenas de maneira consciente mas criteriosamente
aplicada e de forma transparente e objetiva quando se refere à
entropia. Trata-se, portanto, de uma obra aberta, no dizer de
Umberto Eco: "Mas se a entropia é a desordem em seu máximo grau e —
em seu seio — a coexistência de todas as probabilidades e de
nenhuma, então a informação dada por uma mensagem organizada
intencionalmente (mensagem poética ou comum) apresentar-se-á apenas
como uma forma muito particular de desordem: uma desordem enquanto
parte de uma ordem preexistente". A organização inicial de Ursa
Maior sugere essa interação claramente e é também uma paródia dos
mecanismos usados pelos poetas: "a voz concisa e contida, a
congruência da fala — expressada sempre direta — sempre em fuga ao
sonho, o estilo roto, o-passado-o-presente-e-o-futuro sempre
separados": Note-se a ironia e o paradoxo dos três tempos amarrados
por hífens, entretanto separados, pois se é euclidiano o espaço, e
seu espaço não é euclidiano, o tempo é einsteiniano: "Claro que hoje
o tempo é outro mas não anula o velho tempo". Antes se combinam e
onde cabem a nave Apolo do cântico de Dante. Mesmo porque as
conquistas espaciais não desprezaram "o túnel de sombras de Kepler".
O poeta procura o amplo espaço em jogo "com a entropia, a entropia
flecha do tempo — e flecha do tempo" que atinge o alvo
conscientemente, pois em não atingir o alvo infinito consiste o
pecado do poeta, e, cabe não esquecer que o sentido etimológico da
palavra pecado é "errar de alvo". Se fosse em busca de um "teorema
único de uma única matriz, um só termo, um espaço de uma única
dimensão real" o teorema aprovar-se-ia. "Mas o nosso espaço é outro"
e exige novas ordens: "(e onde há ordem não há desordem, por isso,
como a desordem dominasse o banquete, a Lady disse a Macbeth: "vá em
qualquer ordem!"), como também são outros o banquete, a Lady e
Macbeth. A desconfiança da aparência como se mostra e a insatisfação
com os terrenos conquistados levam o homem e o poeta em busca de
novos horizontes e sóis, bem como de novas sensações de outras
descobertas. A épica que tinha sido antes o louvor dos heróis de
certa forma subjugados ao destino e tendo como pano de fundo para as
suas ações a guerra, no futuro será a dessas novas descobertas, e os
Ulisses, Aquiles e Enéias serão substituídos por novos Gamas
conquistadores do Universo e novos Dantes exploradores da alma. Por
enquanto a poesia mais heróica (e também trágica) é essa da luta
pela paz e o destino humano, tendo o poeta um papel totalizador que
vai da "tristeza que atormentou o cão a quem a raiva exilou todo
amor ao dono", à "corça ferida", aos "meninos cujos berços ruíram ao
punho dos bombardeiros". O que é material para poetas (em todos os
sentidos ambíguos da palavra) a ordem do intelecto, a desordem da
dor, a pesquisa formal, o caos de outra entropia do homem diante de
si mesmo, dos seres da terra e das constelações que participam
também do seu destino:
"Uma constelação é um elemento de ordem: portanto a poética da
abertura, ainda que implique na pesquisa de uma fonte de mensagens
possíveis provida de uma certa desordem, procura contudo realizar
essa condição sem renunciar à transmissão de uma mensagem
organizada: oscilação pendular, dissemos, entre um sistema de
probabilidade já institucionalizado é a desordem pura: organização
original da desordem". E ainda, no dizer de Eco: "A tendência à
desordem, que caracteriza positivamente a poética da abertura,
deverá ser tendência à desordem dominada, à possibilidade abrangida
por um campo, à liberdade velada por germes de formatividade
presentes na forma que se oferece abertas às livres escolhas do
fundo". Essa poética aberta a todas as possibilidades não rejeita o
científico, o físico, pois o que é tema para astronautas, físicos,
cosmólogos e também para poetas que são convocados para cantar o
novo tempo, pois "é preciso lançar o mundo antigo pelas novas
janelas da Galáxia". As indagações sobre temas, estilos e métodos
também ponteiam a Ursa Maior onde a investividade delineada não deve
permitir ao poeta o afastar-se do humano e de tudo que interessa,
pois às vezes: "vosso pecado é tanto que até esqueceste que o mundo
é dos homens". O poeta cobra um compromisso de quem não se conforma,
e vai em busca de novas formas desde Invenções da Noite Menor,
quando diz: "Se vem linguagem nova não hesito/ inda que a
consciência não distinga/ a forma dessa luz misteriosa/ que salta e
voa se me chega à língua./ Nas coisas que se criam a priori meu
olhar de Caronte jamais pára". O poeta sabe-se portador do mistério
e tem aquela certeza que aparece em Safo, Horácio, Shakespeare e
Baudelaire, da garantida posteridade) " — venha hoje a palavra —
amanhã, glória. Atiro-me sereno à grande altura/ — como a longínqua
estrela em alto vôo/ que poema sem mistério é prosa pura".
Convicção igualmente demonstrada em Carta aos Rinocerontes.
Determinação que se acentua em Ursa Maior seja pela convicção da
perenidade dos seus achados, seja pela ânsia constante de renovação:
"... mas o que pertence ao homem se funda sempre em novas formas,
novos horizontes, busca incessante de novos campos celestes para
semear a luz, a luz que faz crescer as plantas, que faz crescer os
meninos e seus animais". Preocupação de preservar o sonho que
atravessa e fertiliza a mente, e está presente em O Tambor Cósmico:
"a liberdade é mito e o mito é nada/ só o sonho é real" (o que faz
recordar os versos de Pessoa: "o mito é o nada que é tudo") e também
acompanha O Triunfo das Águas onde a vida tem origem e se perpetua,
e nas canções de Invenções da Noite Menor, particularmente a
primeira.
Essa poesia que se inscreve nas dimensões do sonho, da ciência e da
renovação da linguagem detém preocupações políticas e até de crítica
e costumes. Partindo de livros de diferentes épocas, encontram-se
dois poemas, um de O Triunfo das Águas — "Teoria Setorial do
Crescimento Urbano", outro de Invenções da Noite Menor — "Canção ao
Sul da Linguagem", que se assemelham mais do que pela forma, ritmo e
disposição em redondilhos, rimados e não, mais do que pela simples
inclusão da expressão "nutrido rebanho" e "nutrido cigarro" que se
associam à "obesa sociedade", e sim por essa poesia de crítica
política e social trazer o questionamento da condição humana e
poética, em considerações que talvez contenham a síntese no verso d'O
Tambor Cósmico: " ao lixo ao lixo ao lixo ao lixo a gorda poesia".
Note-se que essa poesia gorda servirá à obesa sociedade, assim como
o "estilo gordo tem ligações como rei", em contrário sentido
encontrado o "gigantesco cisne de alvíssimas plumas" de luz que é
invocado a vir aos "ressequidos campos" e as "tranqüilas águas" onde
sobre a nudez "voam as levíssimas gaivotas", águas que como os
campos guardam tanta dor, superlativa. Não excluindo o sonho, o
mistério, as emoções e sentimentos humanos, com seus acordes blakeanos dos sonetos de "Inocência e Experiência", que vão da leve
insinuação keatsiana do primeiro verso do "soneto esdruxulo II" aos
sonetos acrobáticos, acento blakeano que nota-se desde o poema
"Capital de Cangaceiros" que sugere o tigre nos sexto e sétimo
versos, e os sonetos com seus catorze versos parecem conter as
catorze perguntas que habitam O Tigre das canções de Blake.
A literatura do novo mundo terá em César Leal um arauto, e sem a
preocupação de autuar os integrantes de sua geração, ela está
próxima do novo, dos novos, e será convenientemente visitada e
revisitada, lida e estudada pelos melhores artífices das gerações
seguintes.
Leia César Leal
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