Majela Colares
Os dias de António Salvado
Percebe-se em toda obra de António
Salvado uma trajetória marcada por notável equilíbrio aliado à
qualidade que, desde suas primeiras experiências literárias,
asseguram-lhe um destacado lugar dentro de sua geração e no próprio
cenário das letras portuguesas. Seus versos, finos e consistentes,
exibem imagens poéticas de uma luminosidade quase palpável. Em Os
dias, cujo título sintomaticamente sugere certa claridade rumo a
novos horizontes, Salvado mantém o mesmo diapasão, demonstrando,
sobretudo, habilidade no jogo com as palavras, que, quase sempre,
culmina com imagens de elevado teor poético.
Poeta de uma obra já densa em
qualidade e quantidade, António Salvado, nascido em 1936, estreou na
poesia em 1955, época que em Portugal afirmavam-se grandes poetas
que os historiadores costumam rotular de Geração de 1950. Ora
reunidos em torno de Cadernos de Meio-Dia e de Árvore, revistas
surgidas naquela década, ora na revista Poesia 61, poetas como José
Gomes Ferreira, Casais Monteiro, Saul Dias, Carlos de Oliveira,
Jorge de Sena, Eugénio de Andrade, João José Cochofel, Raul de
Carvalho, Egito Gonçalves, Ramos Rosa, José Terra, Alexandre ONeil,
David Mourão Ferreira, Fernando Echeverria, Fernando Guimarães,
Jorge de Amorim, Pedro Tamen, Herberto Helder, Cristovam Pavia, João
Rui de Souza, Maria Teresa Horta etc. , a exemplo do que se deu com
Salvado, tiveram suas obras marcadas mais por um caráter de
individualidade estilística e aproveitamento temático do que a opção
por uma tendência uniformizadora. Cada um, a seu modo e dentro do
seu tempo de amadurecimento, procurou ter voz e matiz próprios.
Além de uma preponderância não
exclusivista pelo tom lírico, há na poesia de António Salvado uma
reiterada prática de composição que consiste em desmontar as
palavras para que, a partir dos inesperados resultados, possa
reconstruir um mundo imaginário, que poderíamos chamar de “o seu
mundo ou universo poético”. E no logro desse traço de originalidade,
cremos, reside a dificuldade a que se acham inexoravelmente tentados
a superar todos os grandes poetas. Tudo se passa como se não fossem
suficientes as infinitas sugestões do mundo que nos cerca. Ao
criador de sonhos e quimeras parece não restar outra saída, a não
ser a necessidade de fundar novos cominhos e, se possível, instaurar
universos poéticos que só a ele cabe inaugurá-los pelo milagre da
poesia.
O poema “Malogro”, em grande parte,
revela o clímax de um estado imaginário, no qual, a cada verso, de
maneira envolvente e até misteriosa, sente-se a presença do poeta
que urde conscientemente a reconstrução das imagens evocadas:
As paredes são outras os andares
treparam ate onde o céu termina,
o talhe das janelas e o telhado
que a vista não enlaça descortina,
tintas diversas quase emparelhadas
imagens confundindo na retina,
a porta de metal sempre fechada
semelha um muro que repele oprime:
a frieza rasgando-lhe contornos
alonga-se feroz imperturbável
e chispa lume de desprezo e ódio.
aqui venho eu em exangue de saudade
a demandar olores que estão mortos,
a julgar ter um tempo que não está.
A poesia de Antonio Salvado, portanto,
se estrutura em cuidadosas sintaxes gerando versos que, ora se
mostram com um rigor técnico apurado, muitas vezes expostos com
rimas perfeitas ou toantes, ora em versos soltos, circunstâncias que
denunciam o seu seguro domínio formal na hora de compor o poema. Tal
processo, via de regra, nunca dispensa utilização de raras figuras
de estilo e de pensamentos refinados, como, por exemplo, ficam
sugeridas nestes versos:
Janela aberta, parte.
e noite, deixa-me no meu canto
a olhar o papel branco
que se encolhe e se rasga.
Assim, em os dias, um dos mais
recentes livros do poeta de Castelo Branco, constatamos a
confirmação das mesmas virtudes presentes em suas principais obras
anteriores, tais como Na margem das horas, Face atlântica,
Certificado de presença, Castália, A plana luz do dia, entre outras.
Todas com o selo marcante da profundidade, do conhecimento e do
domínio da linguagem poética.
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