Cláudia Nina
O apanhador de desperdícios
10.5.2003
Manoel de Barros tem a extraordinária capacidade de se repetir de
forma sempre inovadora
MEMÓRIAS INVENTADAS: A INFÂNCIA
Manoel de Barros
Planeta, 40 páginas
R$ 32
Das muitas frases que poderiam definir o mais recente
livro de Manoel de Barros, talvez a mais apropriada seja aquela que
traduz o itinerário tão peculiar ao poeta pantaneiro que fala das
coisas miúdas para tocar no universal. Em determinado trecho de
Memórias inventadas: a infância, ele escreve: ''Meu quintal é maior
do que o mundo. E as pedrinhas do meu quintal também são maiores do
que as pedras do mundo.''
Vasculhando as sucatas deste pequeno território
reinventado, que só se descobre depois de grande, à luz da
perspectiva do adulto que virou poeta, Manoel de Barros busca
material para seu primeiro livro de prosa. Na verdade, prosa é só a
ausência de versos, pois a poesia está lá, no mesmo estilo
encantador de sempre.
Manoel de Barros mostra mais uma vez sua admirável
capacidade de se repetir. Ele reescreve suas memórias, tantas vezes
já descritas em outros títulos, de uma forma tão bem elaborada que,
mesmo ao leitor atento, a impressão é a de que tudo é absolutamente
novo e original.
O poeta, que agora vira prosador, consegue se
aquilatar cada vez mais na habilidade de ''apanhar desperdícios'' e
''caçar achadouros de infância'', num exercício pleno de seu
voyeurismo de quintal. Os olhos do poeta de 85 anos se voltam para o
passado sem nenhuma ponta de nostalgia. Pelo contrário: a viagem é
alegre e filosófica até; uma sabedoria brejeira e cativante que faz
do diminuto algo universal: ''Prezo mais insetos do que avião'', ''e
tartarugas mais do que os mísseis.''
Em vez de sonhar com o que não possui, o menino que
brincava de brinquedos não-fabricados, mas sim de boizinhos de osso,
bolas de meia e automóveis de lata, brinca também de observar lesmas
naquele mesmo quintal revisitado. O poeta transfigura o mais reles
cotidiano ao definir a subida do bichinho na parede como uma troca
voraz com a pedra, um ''delírio erótico''.
Este mundo habitato por criaturas rastejantes é
também o celeiro escolhido pelo poeta como fonte de suas maiores
inspirações: ''Eu não via nenhum espetáculo mais edificante do que
pertencer do chão. Para mim esses pequenos seres tinham o privilégio
de ouvir as fontes da Terra.''
Como se não bastasse tudo isso, Memórias inventadas:
a infância tem um charme a mais: o livro, cuidadosamente editado
pela Planeta, vem dentro de uma caixinha em forma de presente, onde
os textos chegam acompanhados de iluminuras feitas pela filha do
poeta, Martha de Barros.
O poeta estará autografando exemplares numerados no
dia 17, próximo sábado, no estande da Planeta na Bienal (Pavilhão
Verde).
TRECHO
''Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a
cidade. A gente só descobre isso depois de grande. A gente descobre
que o tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos
com as coisas. Há de ser como acontece com o amor. Assim, as
pedrinhas do nosso quintal são sempre maiores do que as outras
pedras do mundo. Justo pelo motivo da intimidade. (...) Se a gente
cavar um buraco ao pé da goiabeira do quintal, lá estará um guri
ensaiando subir na goiabeira. Se a gente cavar um buraco ao pé do
galinheiro, lá estará um guri tentando agarrar no rabo de uma
lagartixa. Sou hoje um caçador de achadouros da infância. Vou meio
dementado e enxada às costas cavar no meu quintal vestígios dos
meninos que fomos (...).''
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