Marcos A. P. Ribeiro
Leitura e refinamento
O escritor alemão Ernst Jünger
(1895-1998), ao conhecer um homem de espírito extremamente refinado,
considerou que tal condição só poderia advir de uma longa
ociosidade.
Durante muito tempo, a leitura foi
praticamente o único modo de se obter refinamento intelectual.
Certamente, as conversações inteligentes e as viagens seriam modos
complementares.
Em nossa época, pragmática e veloz,
furiosamente antielitista, refinamento pode soar como má palavra.
Sobretudo, se essa característica depender da ociosidade, palavra
ainda mais contrária aos valores, contemporaneamente incensados, do
trabalho e da produtividade.
Particularmente, creio numa
justificativa fisiológico-existencial para o refinamento: (1)
compensar a perda de frescor e intensidade da experiência sensorial
(captada pelos sentidos); sabe-se que os receptores sensoriais,
particularmente as papilas gustativas, involuem com a idade –
hambúrguer e refrigerante dão imenso prazer aos 15 anos porque tanto
o paladar quanto o espírito encontram-se frescos, virgens.
Prazer equivalente só poderá ser
obtido por uma pessoa de 50 anos por meio do estímulo de suas
cansadas papilas gustativas, pela refinada combinação de sabores da
cozinha francesa, por exemplo. (2) Auxiliar a exploração sensorial
do mundo: o refinamento permite apreciar as imensas possibilidades
oferecidas pela natureza e pela cultura.
Por que utilizar apenas as cores
primárias se a natureza e a cultura são capazes de produzir
variedades quase infinita de tons? Por que comer apenas arroz,
feijão, bife e fritas, se alguém, em algum lugar do planeta, se deu
ao trabalho de preparar peito de pavão ao molho de figo, por
exemplo? Refinamento é a capacidade de distinguir sutilezas.
SOCIEDADE DE CONSUMO – Falemos então de conhecimento, ou, se
ainda quisermos manter o substantivo, refinamento da consciência.
Desde a difusão em larga escala dos
livros até aproximadamente a Segunda Guerra Mundial, a leitura
prevaleceu como fonte de obtenção de conhecimento e educação. A
palavra escrita e a expressão verbal eram cultivadas por todos que o
podiam, particularmente pelas elites. A biografia de qualquer figura
proeminente, da segunda metade do século XIX, por exemplo, mostrará
que as pessoas que a conheceram deixaram registros escritos sobre a
impressão que lhe causaram, análises da personalidade, de grande
sofisticação no uso da palavra. Uma aristocrata, cujo nome – et pour
cause – não recordo, referiu-se ao escritor francês Marcel Proust
(1871-1922) como “meu pequeno psicólogo de porcelana”.
Essa predominância da palavra escrita
vem sendo derruída desde o fim da Segunda Guerra Mundial, com a
ascensão da cultura pop, que é basicamente audiovisual. Nessa
cultura, à qual se engajam preferencialmente as massas,
desenvolveu-se uma visão de mundo e um estilo de vida em que a
expressão verbal foi reduzida a uma mera função objetiva de
comunicação de necessidades básicas, elementares. A linguagem verbal
sofisticada, capaz de expressar nuanças perceptivas, estados de
espírito complexos, conceitos abstratos, tornou-se desnecessária,
anacrônica, obsoleta.
A leitura perdeu espaço para os meios
de comunicação audiovisuais e até mesmo para o turismo de massa.
Nessas atividades, o mundo é representado, sobretudo, por imagens e
símbolos não-verbais, prescindindo-se o uso de textos.
Um clipe, por exemplo, difunde idéias,
valores, estilo de vida, recorrendo basicamente a imagens, que serão
reproduzidos através de outras imagens, atitudes, comportamentos,
roupas, um ou outro slogan, sem propriamente a utilização da
linguagem verbal.
A principal dificuldade para o leitor
contemporâneo é a ausência de tempo psicológico para a leitura. A
vertiginosidade da vida urbana não favorece a ocorrência de um certo
vazio de sensações e sentimentos que serve de anteparo à projeção do
texto escrito.
O tempo livre – avidamente disputado
pela indústria do entretenimento e do lazer – é preferivelmente
gasto em atividades que requerem menor disposição psicológica e
demandam menor esforço intelectual que a leitura. Ademais, a
ascensão profissional, social e material tornou-se possível sem a
necessidade da leitura.
PERCEPÇÃO DO MUNDO – As pessoas, particularmente os jovens,
tendem a pensar que suas experiências, suas opiniões, suas
intervenções no mundo, podem ser realizadas sem a linguagem
literária, cada vez mais associada a um mundo antigo, ultrapassado.
A comunicação por imagens, através da linguagem corporal, de
recursos fisionômicos e gestuais, da intensidade e entonação na
pronúncia de determinadas palavras, é considerada mais importante e
expressiva que o texto literário em si.
Não surpreenderia se encontrar alguém
que foi aprovado no vestibular, percorreu todo o curso
universitário, graduou-se, obteve sucesso, sem ter lido um único
livro! Teria recorrido apenas a apostilas, resumos, capítulos
fotocopiados, websites.
Ler uma grande obra literária,
filosófica ou histórica, escrita há 100 ou 150 anos, por exemplo, é
um dos modos mais eficazes de se conhecer o ritmo, a percepção do
mundo, a mentalidade das épocas nas quais essas obras foram
escritas.
Mas o leitor contemporâneo tende a
resistir à cadência do texto escrito em outras épocas, e luta contra
ele, tentando impor seu ritmo de citadino apressado a, por exemplo,
um texto que se passa no campo russo em meados do século XIX. O
resultado desse conflito é o desinteresse pelo livro, considerado
lento, maçante, arrastado. O leitor deve se adaptar ao texto e não o
contrário. Que sentido teria a leitura dinâmica da obra de Proust?
Talvez haja basicamente dois tipos de
leitores:
Ao primeiro (leitor não-literário),
interessa a objetividade do texto: o prazer da leitura provém do que
positivamente está escrito. Não importa como a informação ou o
sentimento é transmitido. O que esse leitor busca é se instruir, se
emocionar – sentir medo, desejo –, visitar tempo e lugar que não
conhece e que talvez nunca possa conhecer. Para esse leitor, a
linguagem deve ser a mais simples possível para não se interpor
entre ele e o prazer do texto, não estorvá-lo. A linguagem
afigura-se como um mal necessário, óbice, obstáculo a ser
transposto, algo que algumas vezes o aborrece.
Ao segundo (leitor literário), importa
a fruição estética do texto, seus aspectos subjetivos: o prazer da
leitura advém do ritmo de uma frase, da estrutura de um parágrafo,
da adjetivação precisa, da beleza e originalidade de uma metáfora.
São as palavras e suas combinações o que realmente conta. A história
narrada, aquilo de que trata o texto, o enredo, os acontecimentos
são, de certa forma, secundários, mero pretexto para o exercício da
arte literária.
Naturalmente os dois tipos de leitores
podem coexistir numa mesma pessoa. E alguns livros são capazes de
agradar a ambos.
Ler é conectar sua consciência a outra
que, por sua vez, escreve a partir de sua conexão a uma pluralidade
de consciências dispersas no tempo.
A leitura é um meio ineludível de se
ter acesso à experiência humana e insubstituível na obtenção de
refinamento intelectual.
Mas para isso é preciso ser dócil:
permitir que o autor nos tome pela mão e nos conduza, assumindo os
riscos, através de seu mundo de céus e infernos.
Marcos A. P.
Ribeiro é escritor, autor de Vagas obscenidades (poesia),
A Faculdade de Medicina da Bahia na visão de seus memorialistas
(1854 -1924) (história) e Todas as coisas são iguais
(romance).
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