Márcio-André
AS FORMAS DO
MOVIMENTO
CINDA GONDA - Professora de literatura Portuguesa da UFRJ,
organizadora do livro 8 Poetas, Editora da UFRJ.
Uma poética em busca da totalidade,
capaz de integrar todas as linguagens. Esse parece ter sido o
desafio lançado por Márcio-André em seu livro Movimento Perpétuo. No
título a associação música/tempo, a lembrança da música como tempo e
a sua natural irreversibilidade. Não por acaso, no manifesto que
abre o livro, a reflexão sobre o Nada Absoluto: “Não morrer jamais.
É expressamente proibido morrer ou fazer pactos com a morte.
Aproveitar o dia não por ser curto, mas eterno”.
Num mundo marcado pelo excesso: da
velocidade, da imagem, da informação, a obra irá incorporar,
condensar, levar esse excesso ao paroxismo. Como resultado, uma
espécie de explosão cósmica, em que partículas, estilhaços ou
fragmentos se articulam, comunicam, nos devolvendo novos sentidos,
ritmos, em um novo andamento, variações:
viver é ver um pedaço de mundo
parte dos cem-mil olhos que o vêem
pedaço de tempo
dos cem-mil pés que o pisam
pelo Odeon já passou
gente que ria e andava de bonde
Trabalhado com rara habilidade e
sensibilidade, cada poema é um universo a ser pesquisado e
compreendido, com finais inesperados, recortados ora pela ironia,
ora pela melancolia:
este farol
durará mil anos e eu
apenas esta noite
Som e silêncio, sinal e grafia aí
convivem, por entre cordas de violino, pautas musicais, teclados de
computador, metrônomos, haikais, alfabetos... E tudo se conjuga, se
confunde, se prolonga, ganha forma, impacto visual, dimensão na
página/tela, escrita/palavra – poema.
Com a habilidade do afinador — o
violino é uma de suas paixões — Márcio-André capta sons,
investiga-lhes o peso, a densidade, decompõe palavras. É o que se
observa em “movimento perpétuo: Lutheria”, a incidência das
consoantes c/r a nos devolver o movimento/som do serrote cortando a
madeira:
artesão da lasca eleva um rastro
/mãos que contestam o estático/
certus cernitur in re incerta
serragem pressupõe trabalho
síntese
a sobra
da madeira:
música
A disposição das palavras na folha
dão autonomia ao poema, dispostas em colunas, cada uma significa,
violino e arco, tensionadas cordas.
De forma dinâmica e experimental o
poema fala ao poema num procedimento metalinguístico inesgotável:
e Deus fez o homem à sua imagem:
<p><img src=”file:
///C:/WINDOWS/amatéria.Desktop/serhumano.gif”
width=”34” height=”30”
alt=”serhumano.gif (891 bytes)”></p>
</body>
A presença da “biblioteca”, das
referências culturais do autor, o jogo intertextual percorrem a
obra: filosofia, música, pintura ali convivem.
Mas é no espaço dos afetos, abrigados
na memória, como no poema “Movimento Perpétuo: vazios vãos”,
dedicado à avó, que um certo tom nostálgico, intimista, comum aos
adágios tem lugar:
e
setenta anos de
desencontros
e cartas
deixadas a ponta da pena
nem amor nem justiça são cegos
só
a saudade — indivisível forma
de futuro e passado
não esconde verdades nem desculpas
durante vasto em depois tão curto
Em sua Pequena Estética, Max Bense
nos alerta para o caráter não acabado da estética, segundo ele “uma
ciência aberta que deve continuar sempre completável, sujeita à
revisão”, daí que seu campo semântico pertença ao princípio da
pesquisa. É o que nos parece referir o último verso com que
Márcio-André fecha seu percurso: “Se a vida não oferece muito que ”.
Ali, ainda uma vez a noção de movimento.
Convém não esquecer que a arte possui
um caráter enigmático. Ao resolver um enigma, apenas acrescentamos
um enigma a outro enigma. Márcio-André o sabe, tanto que
Rio, novembro de 2002.
ANTÔNIO JARDIM
Compositor, professor de Estética da UERJ e de Teoria Literária da
UFRJ, criador do grupo Música Surda
Em seu incessante movimento perpétuo
de sons e articula-sons e suas respectivas ausências, semiais e mais
semiais pluri-multi-voco-aurais-estruturais, este trabalho se
des-dobra, isto é, se estabelece do sine-plex ao cum-plex, num muito
amplo espectro de realizações e desrealizações poéticas que
con-vertem cada momento em movimento e cada movimento em momentos
onde kairós e áion se misturam e surpreendem qualquer tipo de
cronicidade. O tempo se suspende. Pára. O espaço se suspende,
encolhe e toma lugar a perpetualidade.
A plurivocidade é característica
determinante desta poética de espácio-temporalidades que se
conformam a partir de uma tentativa de pan-linguagem que se dis-põe
para o horizonte das possibilidades de quem puder percebe-las.
Assim, caminham os caminhos constituídos da poiesis, da mousiké, da
prosa, lado a lado com a des-poiesis, a des-música e a des-prosa,
numa re-ligação ensandecida, numa re-linguagem tão inaugural quanto
atual. A atualitas não é por si. É em si, enquanto ato restaurador
do que na poesia é a origem que jamais pode estar perdida. Os
caminhos de Márcio-André se fazem caminhos e abrem caminhos onde
cada passo funda o próprio caminhar e o caminhar, é caminhada da
configuração de múltiplos direcionamentos. Dessa maneira: é verdade!
Na verdade o que se tem é uma poesia re-constituindo o que é próprio
ao saber do poeta-cantor originário, isto é, o con-solidar e
con-siderar de uma philo-poiesis como princípio.
RICARDO PINTO
Poeta, editor e professor de Teoria Literária na UFRJ
Em márcio-andré encontro aquela
antiga tradição da poesia ocidental, a dos criadores de mundo.
Vilipendiada, impraticável(izável), abandonada, esta poesia acaba
sendo aquela que nos proporciona o retorno para o conforto de um
terreno que reconhecemos, pois o ponto de partida para a maioria que
se joga às palavras: este não-lugar de coisas e agentes que se
elidem, sua substância insegura e insegura passagem pelo mundo
através das palavras.
Um poundeano convicto, tem
consciência plena de que a poesia é (re)criação. Sua voz chega até
mim como a de um sábio (o velho Pound, o velho chinês, o Jokerman),
mas sábio real: o que ritma a vida para que esta não vitime,
dançando com as palavras, invocando/evocando estas forças divinas ou
humanas.
O "movimento perpétuo" de
márcio-andré é um primeiro livro que faz a aposta generosa na
imaginação humana, ainda mais em tempos como os nossos, de penúria e
cansaço. Tudo isto torna "movimento perpétuo" mais que primeiro
livro, livro primevo: durante o movimento, o início de todo
movimento, os deuses acorrentados na imaginação.
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