Márcio-André
TRECHO DA CONFERÊNCIA POESIA NOVA,
PROFERIDA EM ABRIL DE 2004, NA SEMANA DE POESIA DA FACULDADE DE
LETRAS DA UFRJ.
MANUEL ANTÔNIO DE CASTRO -
Titular de Poética da UFRJ, autor e organizador dos livros A
Construção Poética do real e Tempos de Metamorfose
Bem, eu vou agora falar sobre um de
vocês, que é o Márcio-André. Eu quero inicialmente fazer algumas
considerações para colocar alguns pontos que eu acho importante,
para finalmente tecer algumas considerações sobre a poesia de
Márcio-André no livro Movimento Perpétuo. Em primeiro lugar, eu
gostaria de me unir à voz da Cinda para elogiar a iniciativa desta
semana de poesia. Eu acho fundamental. Acho que devemos dar voz às
pessoas que estão produzindo. Acho que nós temos que chamar para o
centro do ensino e do aprendizado, na Faculdade de Letras, a poesia,
a arte, até porque a gramática, que aqui tomou uma preponderância
absurda e anormal, vive da poesia. Não há gramática sem grandes
obras. E me digam se existe. Eu não sei que exista, desde os gregos.
Então está havendo uma subversão total do lugar da poesia. Nós temos
então que retomar esse lugar. Em segundo lugar, eu gostaria de
elogiar também, no caso do livro do Márcio-André, as apresentações
da professora Gumercinda, as apresentações do professor Antônio
Jardim e da professora Luiza Lobo. Eu acho que eles tocaram em
pontos essenciais. Eu vou acrescentar algumas considerações, mas
quem ler essas apresentações já terá, assim digamos, um contato
fundamental com algumas des-questões que dizem respeito à poesia. Em
primeiro lugar, o livro do Márcio-André, Movimento Perpétuo, não é
um livro para ser só lido — isso é importante e depois eu vou
retomar essa temática — até porque ele já está fazendo um CD. Mas
acho que não basta. Em segundo lugar, uma coisa importante que eu
gostaria de chamar atenção, especialmente presente no livro do
Márcio-André, é uma observação que o meu amigo Antônio Jardim me fez
— eu aprendo muito com o Antônio, porque ele tem umas tiradas que me
ficam depois pondo em órbita – ele diz assim: “Manuel, eu quando
escrevo, ou escolho um poema para musicar, ou leio poesia, eu nunca
sei o que eles dizem”. Como pode não saber o que eles dizem? “Pois
é, eu nunca sei o que eles dizem, eu vejo é a musicalidade”. Quer
dizer, subverte normalmente tudo o que entendemos por poesia. E é
real. O que Antônio diz é fundamental. Então, nesse sentido é que eu
acho que é importante prestar atenção a este livro do Márcio-André.
E eu também fui constatar isso quando ele me convidou para declamar
um dos poemas. Porque aí vai um pouco de vida pessoal: eu estava em
Santos Dumont, no seminário dos Freis Franciscanos e... Eu vim de
Portugal, de uma aldeia lá no norte, perdida. Para vocês terem uma
idéia, não tinha água, não tinha luz, não tinha esgoto. Idade da
pedra mesmo. Vim cair no Rio de Janeiro, quer dizer, [eu e] onze
irmãos. Então eu fui para o seminário. E quando chegava na quarta
série, todo mundo tinha que se apresentar que era para criar um
pouco de fluência, a pessoa perder um pouco a vergonha. Eu fui o
último. Era tão envergonhado, que eu fui o último a se apresentar.
Aliás, com outro. Eram dois. Fomos escapando, escapando, escapando,
até que não teve jeito: tinha que se apresentar. Aí é o seguinte:
era frei Ismael que nos ensinava... Isso que Cinda estava dizendo é
o que nós tínhamos, que é fundamental. Esse frei nos ensinava a
declamar. Ele treinava conosco a leitura de um texto em prosa e a
declamação de poemas. O que eu acho fundamental que tenha aqui.
Interpretação de poemas eu faço com meus alunos. Isso eu faço. Eu só
não treino com eles a declamação. Mas eu posso até treinar, porque
eu aprendi. Aí, o que que ocorreu: sobramos nós dois. [O frei]
sorteou quem iria declamar um poema e quem iria ler um texto em
prosa. Sorteio: eu tinha que declamar um poema. Gente, eu fiquei tão
nervoso, que eu declamei e eles acharam tão bom, que passei a ser o
declamador oficial das festas. Agora, vê se pode uma coisa dessas?!
Neste trajeto, hoje em dia eu sou professor. Então, é pra vocês
verem como das vezes um pequeno empurrão é fundamental. Então, é
importante ver isso. Isto a propósito da necessidade da
musicalidade. Quer dizer, não basta só você tentar apreender a
idéia. Esse é um elemento fundamental, mas não basta. Agora, Cinda
também já fez referência que o novo entrou aí na semana e no tema de
hoje mais como um marketing, porque na realidade... para mim, o novo
tem aspectos positivos e aspectos negativos. Eu leio o novo aí, no
sentido de novas vozes — isso que é importante — novas
experienciações do real. Porque as gerações novas têm que
experienciar esse real. Agora, na minha perspectiva, não é a
realidade virtual, técnica, industrial, que fazem a experienciação
do novo, são vocês. São vocês com essas vozes. Porque as pessoas não
percebem o real. Eles vivem o simulacro. Se vocês não preencherem o
real com as suas vozes, não haverá uma experienciação nova do real.
Daí essa importância fundamental. E segundo, é que, na realidade,
essas experienciações, através das vozes de vocês, são as
manifestações de e no tempo. Não há tempo sem essas experienciações.
É uma ilusão. Hoje, o maior problema da ciência, sabe qual é? O
tempo. Eles não sabem o que fazer com o tempo. Aliás, eles não têm a
menor condição ou paciência de refletir sobre o tempo. Mas aqui o
tema não é “ciência e tempo”. Vamos em frente. Por outro lado, o
maior equívoco que eu acho na faculdade aqui, tirando o ensino
massacrante da gramática, [cujo objetivo] é soterrar a poesia, que é
a origem de toda gramática e de todas as gramáticas, é o ensino da
estética e da teoria literária. Aqui se ensina a silenciar a poesia.
Isso é trágico e, por incrível que pareça, isso começou com
Aristóteles. E eu só faço uma pergunta – Aristóteles é o primeiro a
estabelecer as regras poéticas das produções artísticas do ocidente
– aí eu pergunto a vocês – ele falou, classificou, analisou, matou a
tragédia – e eu pergunto a vocês: qual é o parágrafo da Poética de
Aristóteles que fala sobre o canto e sobre a dança? E eu pergunto a
vocês: qual foi a tragédia grega que não era declamada, dançada,
cantada? Então vocês aprendem tudo sobre a tragédia, o que
não deveria ser aprendido. O que deveria ser aprendido vocês não
aprendem. Então, a teoria literária aqui tem a tarefa de matar,
silenciar a poesia. Por isso nós temos que dar voz à poética. Não à
aristotélica. Que poética, então? A poética segundo cada voz de
vocês. Por isso eu vou falar um pouquinho sobre a poética de
Márcio-André. Outra coisa importante, a partir dessa pergunta sobre
Aristóteles, é uma coisa que já faz parte da poética de
Márcio-André. Ele procura integrar todas as manifestações. Aliás,
abrindo o livro de Márcio-André, a primeira coisa que aparece na
produção dele: uma pauta de música. Na primeira página. Depois tem
outras cá no meio. Então, isso aqui já diz da inovação poética. É
claro que, para o leitor acostumado a ler e a reduzir as
manifestações artísticas à escrita, leva um choque. Mas acho que tem
soluções e nós podemos apontar, então, outras manifestações. Agora,
o seguinte: nós vivemos, hoje em dia, e é um dos temas do livro do
Márcio-André, numa realidade virtual. Mas nessa realidade virtual, a
não ser através da voz de vocês, das experienciações de vocês, eu
pergunto, nessa realidade virtual, onde está o silêncio da floresta?
Neste alarido da realidade virtual? Porque há muitas falas, muitas
músicas, mas puro alarido. O que eu pergunto [é] onde, nesta
realidade virtual, está o sentido de ser e não-ser, o sentido
de Eros e Tanathos. Porque isso é o que se perdeu. A concepção
orgânica do homem, a concepção orgânica da obra matou a morte. E a
morte não pode ser morta. A morte é o sentido de toda vida. A morte
é o horizonte onde Eros se pode erguer. A morte é o sentido para o
qual nós tendemos. Não como aniquilamento, porque isso já é uma
interpretação da vida como sendo meramente orgânica, mas como sendo
a tensão de contrários e complementares. E isso se faz presente em
toda e qualquer grande obra. Eu poderia citar, por exemplo,
Guimarães Rosa. Está na entrevista dele, que eu acho que vocês todos
devem conhecer. Se não conheçam, procurem e vejam o seguinte, na
página 32: “Vida, morte. Tudo é, no fundo, paradoxo. Os paradoxos
existem para que se possa exprimir algo para o qual não existem
palavras”: isso é a arte, isso é a poesia. Por isso, eu acho que nós
temos que prestar atenção à limitação do novo, ao que o novo
implica. O novo é tributário do tempo linear e falso progresso. Isto
é uma das limitações maiores da modernidade. O novo, em poesia,
nunca pode ser novo. Se for poético, será originário. Se for
originário, será experiência inaugural. Se for inaugural, será
acontecer poético. Heidegger o chama é erreignen, o acontecer
apropriante, onde o acontecer poético não seria do poeta, mas da
poesia. Por isso, numa outra passagem, ele diz o seguinte: “A
linguagem fala, não o homem, o homem só fala quando corresponde à
linguagem”. E eu dei uma versão para nós: “A poesia fala, não o
poeta, a poeta só fala quando corresponde à poesia”. Mais uma
versão: “A poesia fala, não o intérprete, não o crítico, o
intérprete e o crítico só falam quando correspondem à poesia”. Por
isso, eu pergunto a vocês: será que Heráclito, por ser poeta e
pensador, não é sempre novo? Eis o que ele diz no fragmento 50:
“Auscutando, não a mim, mas ao logos, é sábio concordar que tudo é
um”. Por isso, eu acho que um dos temas da poesia de Márcio-André,
que é o make it new, pode estar sendo tributário da tradição
metafísica ocidental, que define a coisa, como matéria e forma.
Então, se forma uma falsa antinomia: ou predomina o conteúdo, ou
predomina a forma? Ou predomina a forma para haver conteúdo? Nem uma
coisa, nem outra. Porque o essencial, na minha perspectiva, é deixar
a coisa falar. Deixar a coisa falar. Como? Deixar-se assediar pelo
silêncio da coisa. Deixar-se assediar pela memória, a mãe de todas
as musas. Deixar-se assediar pela linguagem, a mãe de todas as
línguas. Por isso, é importante ver o percurso que cada um está
fazendo. Porque, afinal de contas, ninguém nasce feito. A liberdade
não existe! A liberdade não existe! A liberdade é uma conquista. Só
há libertação. E isso eu concordo inteiramente com a professora
Cinda. Nós fizemos este percurso das Invasões Bárbaras, não é
Cinda? Quer dizer, nós temos que conquistar esta liberdade, ela
nunca nos é dada de antemão. Nós também não vamos pensar que no
final ela nos vai chegar. Ela nos chega a cada segundo, a cada
momento, a cada poema que vocês fazem. Isso é exercício de liberdade
enquanto libertação. Por isso, nesse sentido é que eu me permitiria
ao André, ao Márcio-André, fazer, então, algumas considerações de
necessidade de aprofundamento, de amadurecimento, de caminhada de
libertação e que estaria, sobretudo, no título, com “Movimento
Perpétuo”. O que ocorre aqui é o seguinte: se vocês perceberem, esta
palavra é fundamental. Ele já está localizado no tempo, mas ele não
quer o tempo cronológico. Mas aí é interessante acentuar que é o
seguinte: já desde os gregos, e não há novidade nenhuma nisso, o
tempo, o movimento, é tema fundamental, só que eles já distinguiram
quatro tipos de movimentos: o movimento local, que é a mudança de
lugar. Alguém pode estar cheio do que estou falando e ir embora.
Mudou de lugar. O movimento quantitativo, isto é, aquilo que rege a
nossa sociedade. Antigamente, havia um filme famoso, que era O
homem de seis milhões de dólares... É, O homem de seis
milhões de dólares, que era assim, riquíssimo. Hoje em dia, é o
homem de alguns bilhões de dólares. Onde é que vai parar? Não sei,
porque é um movimento quantitativo. E a poesia não é por aí.
Terceiro, o movimento qualitativo, ou alteração. Alguém pode se
alterar e, então, você tem como que um depuramento e uma
qualificação. Isso até profissionalmente, ou não. Porque eu acho que
o quarto movimento sobre o qual eles pensavam resume os outros três,
e é o farol das artes, o movimento substancial. Entende-se aí,
substancial, no sentido daquilo que é propriamente poético. Agora,
neste sentido, então, é que eu gostaria de fazer uma observação em
cima desta questão do tempo na nossa sociedade. Por incrível que
pareça, nós vivemos numa sociedade onde há muito movimento. Vocês
vêem que as modas se sucedem. Os ismos se sucedem e assim vai
por aí afora. Nós não temos nem tempo de consumir toda produção,
todas aquelas possibilidade que nos são oferecidas pela sociedade de
consumo. Se vocês observarem, são tantas as vivências que nos são
oferecidas, que nós não temos tempo nem de experienciá-las. Então,
eu queria que vocês refletissem, eu queria propor aqui como um dos
elementos fundamentais da obra de Márcio-André, esta diferença
fundamental: vivemos numa sociedade onde as vivências estéticas são
ofertadas em abundância, mas o convite à experienciação do que cada
um é, isso não é solicitado, porque não vende. Esse é o problema.
Então, eu acho que a questão fundamental para nós nos debruçarmos e
voltarmos para o que é arte, o que é poesia, é prestarmos atenção ao
que que significa a presença em nossas vidas da experienciação. E o
Márcio-André, ele faz uma concentração muito grande destas
possibilidades de vivências, mas muito mais de experienciações. Por
isso, eu diria que no texto dele há uma intertextualidade, há uma
hipotextualidade e há uma hipertextualidade. Mas eu tenho muito medo
de acabar chamando a atenção mais para as nomenclaturas e esquecer
propriamente o que é poesia. Por isso, eu não vou me deter mais
nestas explicações de nomenclatura, que não levam muito longe, e
prefiro começar a apontar rapidamente algumas epifanias na poesia de
Márcio-André. A palavra epifania, do grego ep, para cima, e
phainos, aparecer, então, é aquilo que se dá à experienciação.
Isso que é uma epifania. Toda epifania, ela só se dá, na medida e na
proporção em que há um desvelamento em tensão com um velamento. Todo
aparecer só se dá no conter-se, no se retrair. Então, nessa dimensão
é que eu vou escolher alguns trechos, alguns textos do livro do
Márcio-André e chamar a atenção para esses momentos de epifania. Por
exemplo, na página 19, nós temos o seguinte:
estar só é
estar entre todos
só entre todos é estar
Esta é uma das características da
poética de Márcio-André: ele incrusta algumas epifanias e elas têm
que ser apreendidas e experienciadas. Não se pode ler o livro de
cabo a rabo. A página 23:
silêncio entre
sons
vazio entre linhas
poesia
no branco recriado do papel
Outra epifania. Isto aqui não pode ser
continuado a ler. Tem que ser retirado e experienciado. Página 24,
“Movimento perpétuo: oito pecados”:
no meio do
jardim a raposa olha a videira
ela comeria no cacho a carne das uvas rochas
Só aqui daria para falar meia hora
sobre o hipotexto deste texto. Melhor é vivenciá-lo como epifania.
41:
em excesso toda
virtude acaba em vício
tudo que tiver ascensão terá cheda
na mobilidade das coisas sobre o vazio
Finalmente, página 52, e eu gostaria
de ler um poema, aí mais longo, onde há diversas epifanias, mas que
eu vou ler inteiro, porque foi o poema que ele me pediu e eu acabei
declamando para o CD que ele está preparando: “Vazios vãos”
Para terminar — faltam quatro minutos
— primeiro uma observação: o Márcio está fazendo um CD do livro,
porque ele precisa de juntar, não só escrita, [mas] todas as
possibilidades de manifestações poéticas. Então, minha sugestão,
Márcio, você tem que transformar num DVD, com imagens, música,
oralidade, escrita, tudo. É o seu livro, se não se perde em 90%.
Segundo, eu concordo inteiramente com a passagem da apresentação da
professora Gumercinda, dizendo que poesia, arte, é enigma.
Heidegger, depois de pensar e muito pensar sobre arte, de
revolucionar todas as teorias em torno da arte, porque não quer
fazer nenhuma, ele diz no posfácio da sua Origem da obra de arte:
“longe de mim querer solucionar o enigma que é a arte”. Então, isso
aqui se faz bem presente. O artista multifacetado que é Márcio-André
nos lança nesse limiar, que é todo enigma. Há uma integração entre a
vida e o artista em Márcio-André, que é uma outra característica
fundamental. E uma das facetas que ele está desenvolvendo, num
projeto que ele está desenvolvendo comigo, é que ele está unindo
tradição, tradução e inauguração. Parabéns, Márcio-André.
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