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Maria da Paz R. Dantas


 


Bandeira e a isca do lugar-comum


 


 

Para a minha sensibilidade, entre os melhores poemas de Manuel Bandeira estão: “Sob o céu todo estrelado”, “O silêncio”, “A mata” e “Plenitude”. Eles me levaram a pensar que aquilo a que se dá o nome de inspiração e que leva ao ato de escrever é a conjunção de dois elementos: o inconsciente (de onde vem o ímpeto, o clarão que conduz a emoção via palavra), e o consciente, responsável pelo artesanato da forma ou arcabouço visível e audível daquele insight. São sínteses, espécies de visões-relâmpago, algo que não passou pelo processo demorado da busca; partiu de uma espécie de curto-circuito interno e foi em direção ao corpo-linguagem, configurando-se num certo complexo rítmicos feito de imagens sonoras e visuais.

Assim, os mais tocantes poemas líricos são aqueles que corporificam a conjunção de que falei. São feitos de imagens que mostram, que tornam presente a cena, o objeto d visão. Imagens que desdobram no tempo-duração da leitura o átimo da iluminação que desencadeou o poema. Às vezes o poeta consegue a síntese perfeita, visível na aglutinação das imagens. Outras vezes não atinge essa unidade, e as imagens ficam como que soltas, desamalgamadas de um todo orgânico, fazendo mais o papel de um peso morto.

Mas, se todo esse discurso partiu da leitura de Bandeira, a ele deve levar. Bandeira, o consagrado Manuel da Rua da União, sabia construir versos comoventes (poeticamente), mas nem sempre evitava a isca dos lugares-comuns. E como qualquer um de nós, caía em certas facilidades que comprometiam seus melhores poemas. Cito como ilustração do que digo a composição “Enquanto morrem as rosas”, do livro A Cinza das horas, na qual o poeta estabelece um paralelo analógico entre as rosas que se despetalam e o seu (do poeta) pressentimento de que o sonho da amada está morrendo. Não nego que o poema convence enquanto sentimento, e sentimento universalizado. O que cansa nesse tipo de imagem é a sua previsibilidade, sua falta de surpresa. E não pela alusão ao desfolhar das rosas, mas também ao crepúsculo simbolizando tristeza, morte. Outra associação não inusitada é aquela da água corrente com a idéia da vida passando, esvaindo-se. Está em “A estrada” e “Noturno de Mosela” ambos integrando o livro O Ritmo Dissoluto. A mesma imagem da água corrente sugerindo o escoar do tempo em direção ao envelhecimento é encontrada também na composição “Enquanto a chuva cai” (no livro A cinza das horas.

Diferente, porque menos convencional, embora concebido em estrofes de versos alexandrinos, é o poema “Plenitude”. Sente-se nele a exalação de uma força que brota das raízes do ser, da experiência real transfigurada em linguagem. E é essa transfiguração que dá ao poema um alcance para além do fato biográfico, numa tensão que é, paradoxalmente, uma coisa pessoal e ao mesmo tempo de uma abrangência que ultrapassa o meramente individual. Nesse caso, o acidente biográfico é reconhecível na referência à falta de saúde, decorrente da tuberculose que manteve o poeta recluso num sanatório durante anos. Mas esse dado não pesa diante da plasticidade que as palavras adquirem na expressão poética do objeto ao qual foi dada uma configuração ao mesmo tempo emotiva e racional. E é esse objeto de desejo – a saúde como sinônimo de vida – embocando-lhe escancaradamente por todos os sentidos, que o poeta expressa impetuosamente e de tal modo palpável que não é mais um desejo, é já a realização dele. Sim, porque quando ele diz, nas duas últimas estrofes:

E nesse curto instante em que todo me exalto
de tudo o que não sou, gozo tudo o que invejo,
e nunca o sonho humano assim subiu tão alto
nem flamejou mais bela a chama do desejo.
E tudo isso me vem de vós, Mãe Natureza!
vós que cicatrizais minha velha ferida...
vós que me dais o grande exemplo de beleza
e dais o divino apetite da vida!

 

mostra-nos um desejo que deixou de ser abstrato para se tornar concreto.

As imagens convencem sobretudo pelo seu teor de realidade; porque quase não se nutrem de metáforas; as palavras, estas sim, são tomadas em sentido concreto:

O ar é como de forja. A força nova e pura
da vida embriaga e exalta. E eu sinto, fibra a fibra,
avassalar-me o ser a vontade da cura.
a energia vital que no ventre profundo
da Terra estuante ofega e penetra as raízes,
sobe no caule, faz todo galho fecundo
e estala na amplidão das ramadas felizes,
entra-me como um vinho acre pelas narinas...
arde-me na garganta... E nas artérias sinto
o bálsamo aromado e quente das resinas
que vem na exalação de cada terebinto.

 

A força do poema está no ímpeto, no registro de tudo o que preenche o momento – a falta representada pelo desejo – mas um desejo agora plenificado por tudo aquilo com que a “Mãe Natureza” cumulou a falta, a ausência (no caso a falta de saúde, de energia vital).

É importante uma consideração, endereçada especialmente aos candidatos a poeta: ninguém se engane pensando que o poema citado convence pelo tema. Não fosse o tratamento dado, chegaria a ser deprimente. O texto nos comove pela visualização do que é descrito com cores e formas, sabores, aromas. Os verbos utilizados são todos de intensidade: ofega, vibra, penetra, arde-me, estua, gozo etc. Transborda desse texto uma libido selvagem, uma sensualidade que dificilmente (não fosse o hábil manejo das imagens) se enquadra nas regras do verso de cadência regular, padronizada.

Há um verso (o último da sexta estrofe) que, no meu entender, compromete o texto de Manuel Bandeira: a metáfora desgastada e de mau gosto: “Nem flamejou mais bela a chama do desejo”. Verso de conteúdo redundante e desnecessário, além de inexpressivo na utilização do adjetivo. E, já que o motivo é “desejo”, possível é encontrar verdadeiras jóias, imagens raras na produção poética bandeiriana. Como esta do soneto “Vita Nuova”: “Bandeiras tatalavam no alto mastro / do meu desejo.”
Sem dúvida, este verso e todo o primeiro quarteto dão ao soneto uma excelência que o compensa da queda na vulgaridade do segundo terceto.
Tudo isso me torna permeável à convicção de um certo leitor que costuma dizer-me a propósito de leituras: “Mesmo os melhores autores são fracos em 70% de sua produção. Só 30% são aproveitáveis”.

Tirando o exagero, vale o alerta para que sejamos mais desconfiados com relação às” sereias”; sobretudo aquelas que cantam no nosso próprio inconsciente.

 



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23/08/2006