Maria da Paz R. Dantas
O engenheiro que sonhou Recife e
Olinda calculou Brasília
Joaquim Cardozo via na arquitetura uma forma de poesia
Como engenheiro especializado em cálculo de
estruturas, Joaquim Cardozo exerceu também o ofício de professor da
Escola de Engenharia, no Recife, durante a década de trinta. Foi no
final da década que um episódio revelador da mentalidade acanhada
que então predominava na política local determinou sua mudança para
o sul do país. Essa mudança colocou-o em contato direto com o
arquiteto Oscar Niemeyer, nascendo daí uma parceria ideal para
tornar possível o sonho da arquitetura com A maiúsculo. Brasília foi
uma das expressões dessa parceria. Nela, o papel do calculista foi o
de garantir ao arquiteto as liberdade de imaginar as formas que
quisesse e elas seriam trazidas para o concreto.
Tudo porque o homem das ciências exatas era também um
poeta. Ele via na arquitetura uma forma de poesia.
Mas, quem era o poeta Joaquim Cardozo? Um topógrafo
de labirintos do próprio eu? Ao contrário.. Joaquim Cardozo preferia
falar das coisas que eram do mundo concreto de todos, entre elas a
cidade (o Recife).Mas essas coisas, embora não fossem patrimônio
particular, tinham o selo de uma sensibilidade inconfundível.
Recife, mas o da “Tarde no Recife”. É esse locus do observador
interiorizado, que mescla ao presente cinético, em trânsito para o
porvir, as imagens da memória do passado histórico, do ”Recife
romântico dos crepúsculos das pontes, / dos longos crepúsculos que
assistiram à passagem dos fidalgos holandeses “. Não somente nos
envolve a aura da tarde, mas a da noite, da madrugada, da
decrepitude de certas ruas antigas. O poeta sonha consciente, como
num apalpar do ilusório nas águas do rio de hoje, da urbe
atravessada pelas luzes de néon que “dão a impressão de uma
catedral imersa,/ imensa, deslumbrante, encantada”; caminha
pelas velhas ruas onde vagam fantasmas, almas de heróis da história,
ao encontro do “espírito coletivo das gerações passadas”,
contempla os mangues, as vielas alagadas de sombra. Tem no olhar
todo um cenário composto para fazer emergir a presença do que
somente uma alma possuída pela solidão e em convívio íntimo com o
silêncio seria capaz de libertar. Como no poema “Olinda”:
Olinda,/das perspectivas estranhas,/dos imprevistos horizontes,/das
ladeiras, dos conventos e do mar.// Sábio silêncio do Observatório /
quando à noite as estrelas passam sobre Olinda. / Muros que brincam
de esconder nas moitas,/calçadas que descem cascateando nas
ladeiras.
Como sábio e incansável estudioso das ciências, da
matemática, o professor Joaquim Cardozo não se rendia à mediocridade
do ensino oficial, à pobreza dos currículos universitários de então.
Dotado de uma visão de mundo que abrangia diversos ângulos da
realidade, movia-se dentro do que hoje se denomina visão holística;
um modo de encarar cada coisa dentro de um todo orgânico, não
isoladamente. Era esse o olhar do pensador dotado de percepção
poética e científica; do discernimento histórico necessário à
análise objetiva dos fenômenos. É o caso das considerações feitas
por ele num ensaio publicado na revista Módulo, nº 26, intitulado
“Observações em torno da história da cidade do Recife, no período
holandês”. Nesse ensaio, Cardozo reflete sobre os procedimentos de
sua busca das origens e desenvolvimento urbano do Recife, mas sem
deixar de lado o método de pesquisa que o leva a tirar certas
conclusões de natureza histórica.
Mediante o exame minucioso e comparativo da numerosa
documentação existente sobre a forma topográfica do Recife, e onde
se vêem os diferentes aspectos de paisagem urbana que a cidade veio
adquirindo através do tempo, o engenheiro cita como documentos mais
valiosos para a busca de informações sobre o primeiro período de
formação do Recife, as plantas, quadros e desenhos executados pelos
holandeses durante o tempo de sua permanência no Brasil e em anos
posteriores.
Confrontando as informações contidas nesses
documentos e as obtidas no Inventário das Armas e Petrechos Bélicos
que os Holandeses deixaram em Pernambuco e dos Prédios edificados ou
Reparados até 1654, observa, entre outras coisas, que:
Nas duas plantas que figuram no livro de Barléu, a
antiga povoação do Recife foi representada em dois estados de
desenvolvimento que muito diferem um do outro. A mais primitiva das
duas mostra-nos o Recife de 1637, data da chegada do príncipe
Maurício de Nassau. O centro urbano estava tão localizado na
extremidade da pequena península ligada a Olinda, quando ainda eram
raras as casas na ilha de Antônio Vaz, hoje bairro de Santo Antônio.
Numa série de observações ricas de capacidade
analítica, Joaquim Cardozo compara o legado urbanístico de
portugueses e holandeses, demonstrando a excelência destes últimos,
em palavras que merecem citação:
Os holandeses, não apenas por um instinto natural de
defesa, mas, sobretudo, por uma melhor compreensão da vida urbana,
iam construindo suas casas sempre alinhadas e bem distribuídas ao pé
das fortalezas; as cidades portuguesas, quase sem discrepância,
faziam-no com o estabelecimento de novos núcleos de habitação, em
torno dos pátios das igrejas. Apesar desse plano urbanístico
holandês, tão claramente delineado e já em começo de realização, ser
a solução mais lógica indicada pelo tráfego, foi inteiramente
abandonado, como se pode facilmente reconhecer, olhando-se o bairro
de Santo Antônio, nas plantas posteriores. Nestas, têm influência
preponderante os pátios das igrejas; pátio do Carmo, do Paraíso, do
Livramento, do Terço, etc., e as igrejas em geral mal localizadas,
criavam um sistema de ruas estreitas, tributárias de outras não
melhor orientadas.
Na povoação do Recife, no entanto, onde os holandeses
obedeceram mais ou menos as linhas indicadas anteriormente, os
paralelamentos das casas, mesmo as construídas durante a ocupação,
mantiveram-se quase sem alteração até o princípio do século atual.
Cumpre, aliás, salientar a extraordinária expansão desse bairro no
septênio do governo do príncipe Nassau.
Estas são algumas das conclusões tiradas por Joaquim
Cardozo em suas incursões pela história do Recife, visto do ângulo
da edificação da cidade.
Leia a obra de Joaquim Cardozo
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