Maria da Conceição Paranhos
A nau da (in)sanidade
"O impulso de
escrever livros está rodeado de insanidade". Esta declaração é de um
professor de História das Mentalidades em Stanford, Paul Robinson.
Em que circunstância foi enunciada, não sei. Onde a li, não estou
bem certa: provavelmente em periódico diário. Como coleciono
fragmentos, aforismas, provérbios, epigramas, já me deparei com
aquela afirmativa algumas vezes e, mesmo, escolhia como uma das
pequenas epígrafes de livro de contos e relatos de sonhos de minha
autoria (1995).
Tente-se
contextualizar o fragmento citado diante da chamada literatura de
criação, que prefiro denominar poesia – aqui incluindo obras de
ficção, de dramaturgia e de poesia propriamente dita conforme
terminologia da teoria dos gêneros. Conseqüentemente, poeta é aquele
tipo de escritor que labora naqueles discursos.
Quanto à declaração
de Robinson:
1. Terá ele se
referido a qualquer livro?
2. O "impulso" já
poupa o escritor da insanidade?
3. O "impulso de
escrever livros" é uma exceção à regra da insanidade?
4. O que há de
insanidade, ao redor do livro, é representado no discurso do livro?
5. O "escrever
livros" resgata o escritor da insanidade, ou, dizendo de outro modo,
cura-o?
Outras questões
poderiam ser levantadas, mas as acima formuladas são, por ora,
suficientes para pensarmos sobre as relações da poesia com a
loucura.
Tentarei refletir
sobre o tema, mobilizando as cinco questões propostas, a partir de
dois pressupostos: o de não pensar a insanidade a partir do
conhecimento científico e sistemático acumulado, aceitando que
existem, no mundo em que vivemos, estados mentais e emocionais que
justificam o uso do termo insanidade e seus sinônimos, dos quais
loucura se mostra o mais contundente e o mais sobrecarregado de
conteúdos culturais; o de não colocar aspas em termos tais como real
e realidade, desde já encarados como – cada um – representações
lingüísticas de conjuntos complexos, existentes ou não no mundo
exterior ao Sujeito, embora muitas vezes secundados pelo sensus
communis.
Um psicanalista, da
minha predileção, diz que uma severa deusa – a realidade – impõe a
uma certa classe de homens a tarefa de comunicar do que sofrem e em
que encontram alegria: os doentes nervosos, que esperam do médico a
cura por meio de tratamento psíquico. Continua, dizendo que aquela
classe de homens não comunica coisa diversa do que descobria nos
sãos. Ainda, falando de outra classe de homens, o mesmo psicanalista
declara que conhecem muitas coisas existentes entre o céu e a terra
de que nem sequer suspeita nossa filosofia. Tais homens são os
poetas, que, na Psicologia, acham-se muito acima dos homens comuns,
pois os poetas bebem em fontes as quais não são accessíveis, ainda
(diz ele), à ciência. Freud, o psicanalista, em O poeta e os
devaneios e na Gradiva, na seqüência acima, provoca-nos a reflexão,
como sempre e para sempre, possivelmente.
Deixando de lado a
questão – controversa em tudo – do que seria um homem comum, vejamos
se chega a um temporário acordo sobre o homem incomum segundo a
ótica da criação literária, abandonando-se outras classes de homens
incomuns, que as há.
Na série sinonímica
em que o termo incomum está inserido, há dois itens lexicais que nos
interessam mais de perto: a minoria e anormal, em oposição a a
maioria e normal. Cuide-se que o segundo item da primeira série vem
a coincidir, em muitos contextos, com insano ou louco, o que seria,
pensando-se nessa mesma série, a minoria. Chegamos, portanto, a um
mesmo conteúdo semântico da primeira referência a Freud (O poeta e
os devaneios), embora pelo caminho inverso. Logo, todos nós,
humanos, somos sãos e insanos, normais e anormais, lúcidos e loucos,
comuns e incomuns. Resta, entretanto, a questão da qual não daremos
conta com o pensamento lógico-causal: a questão das fontes onde os
poetas bebem, ainda não acessíveis à ciência (Gradiva), que se situa
na gênese da criação literária.
A aura que cercou o
poeta durante muitos séculos teria caído por terra no início da
Modernidade (Baudelaire, 1857). Contemporaneamente, a despeito da
polêmica sobre os cânones, sobre quem entra e quem não entra no rol
dos grandes poetas, parece que se continua a olhar o escritor/poeta
como um ser de exceção, incomum, portanto. Se incomum, fronteiriço
aos conjuntos de sinônimos que identificam, em língua portuguesa,
para só falar de nossa língua, os loucos.
Gosto muito da
sabedoria popular e me apraz transcrever um provérbio que todos
conhecemos: "De médico, de poeta e de louco, todo mundo tem um
pouco". Que leio da seguinte forma: todos nós, em determinadas
situações de nossas vidas, saímos do sério, isto é, do normal, ou do
padrão de normalidade vigente em nosso tipo de sociedade. Médico
incluído, o que parece complicar a questão.
Já que as línguas
naturais carregam dentro de seu espírito uma ambigüidade
incontornável, gostaria de sugerir que é possivelmente nesse
território que se situe uma das facetas do incomum no poeta. Sua
capacidade de ingressar na selva selvaggia da realidade exterior e
no mundo psíquico individual e coletivo – da mente e das emoções
humanas, e daí sair com um testemunho de seu convívio com tal
experiência: a obra. O poeta, trabalhando no coração da vida e da
linguagem torna-as insubstituíveis. O pensamento poético, por
semelhança ou por contraste (simulacro) pode reconstruir momentos de
angustiante insanidade, meio a uma pletora de impressões adquiridas
e uma integridade das imagens, evocadas pela rememoração, em forma
de uma ilha de harmonia estética na superfície da realização
artística, por meio da representação lingüística.
A energia criadora,
"o impulso de escrever livros" é o elemento vital da poesia, o seu
"puro real absoluto" (Novalis). A loucura de todos nós é
remobilizada no cadinho da inteligência e da vontade, da disciplina
e do ostinato rigore.
Cartografia do real
interior e exterior na devastação do continuum temporal. Assim é que
o dito homem comum alcança o que a criação poética lhe mostra, já
que reconhece, ali, suas próprias emoções naturais, seus demônios,
trasgos, vampiros e bruxas, seus momentos de exacerbação e de
multiplicação de fantasias que, em lugar da queda na neurose e na
psicose, encontram justificativa e alento no corpo artístico.
"O impulso de
escrever livros" (para voltar ao fragmento de Robinson), quando se
faz corpo e habita entre nós, nos redime do sofrimento da loucura.
Assim como de obra em obra o poeta sobrevive à insanidade, o leitor,
ao reconstruir em sentido inverso essa trajetória, percebe que
caminha acompanhado por toda a humanidade, sua loucura e sua
sanidade, sua sanidade ou sua loucura. Um dos problemas dos homens
sofredores, denominados pacientes mentais, será provavelmente o de
se encontrarem à deriva desse mundo de espanto e reconhecimento da
própria face, dentro de nau perdida no tempo e no silêncio.
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