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Maria da Conceição Paranhos


 


Perguntas para Maria da Conceição Paranhos

Entrevista a Carlos Ribeiro




1. Delírio Do Ver reúne uma mostra de trinta anos da sua poesia. O que existe de comum em livros publicados em momentos tão diversos da sua vida, a exemplo de Chão circular, As esporas do tempo e Minha terra e outros poemas?

Sim, o Delírio faz uma coleta de alguma produção de minha lavra no decorrer de trinta ou mais anos de poesia. Muitos poemas esparsos foram deixados de lado por constrições editoriais. Creio que o que há em comum entre este e os outros livros é a devoção à poesia – o que, para mim, em um nível, corresponde à minha devoção à vida ela mesma, o ser humano como sua expressão maior. Num segundo nível, há a minha devoção à linguagem, à expressão poética (que não se confunde com “comunicação”, já que a poesia não é objeto de uso), a busca da melhor forma para veicular os conteúdos apreendidos pela percepção e sensações do poeta. Em todos os meus textos, em poesia ou em prosa, costumo dizer que as coisas e as pessoas “me atravessam”. Parada ou em movimento, de repente algo ou alguém está atravessando meu corpo – como se vê em alguns filmes que tratam de questões de espiritismo ou ficção científica. A leitura também desperta em mim essa sensação insólita. Outras vezes, uma palavra ou um verso se escande em meus ouvidos, e a sensação é a mesma. Às vezes esses momentos chegam a ser de dor, dor física mesmo, perco a respiração. Mas são frações de segundo ou de um tipo de tempo imensurável. Também pode acontecer o inverso: vejo através de objetos e pessoas. É meio assustador. Depois vem o poema ou o conto ou o que vier. Sempre foi assim comigo. Cada poema meu resulta de uma forte experiência vivida – seja mesmo pela rememoração. Isto sempre foi assim e me fazia sentir diferente, deslocada em meu círculo de amizades. Não havia a quem transmitir tais experiências. Então eu escrevia, escrevia e continuo escrevendo, muito. Daí o tal “delírio”. Sob este aspecto, meu primeiro livro, Chão Circular, de 1970, é o que mais me assusta, mesmo porque é uma garota de 20 anos que vê as ruas e as pessoas como ali está escrito. As Esporas do Tempo aconteceram em poucos dias, eu estava numa fazenda, de meu pai, e as experiências foram em muito de rememoração e de busca de ver o passado – por um lado, memória involuntária, por outro, voluntária. Minha Terra surgiu de uma experiência amorosa, que perdura, com a minha cidade, Salvador. O poema título é isto mesmo, um canto de amor à terra. Dentro dos poemas que o compõem, gostaria de destacar os “Cantos quânticos”, escritos de uma noite para uma manhã. E a “Ode a Anadiômena”, na qual trabalhei por três meses, em 2002, que também consta entre os poemas do Delírio do Ver. Acho que resultou numa ode à feminilidade ela mesma, séculos afora. Sua forma é enganosa: parece um templo neoclássico, mas este templo implode e explode, e se o vê (ou lê) nas suas ruínas. Assim o percebo. Tenho uma certa ansiedade em relação à ode. Gostaria que a crítica a percebesse. Isto me faria muito feliz.


2. Celina Scheinowitz aponta a característica erudita da sua poesia. Trata-se, diz ela, de uma poesia culta, mas que dá lugar à singeleza e à espontaneidade. Não temos dúvidas quanto à singeleza de muitos dos seus poemas, mas existe de fato uma espontaneidade? Ou ela é apenas aparente numa construção poética cujo esforço de elaboração é tão intenso num poema erudito, como “Ode a Anadiômena”, quanto no singelo “As três Marias”?

Olha, Carlos, escrevo com a minha história, a história de minha experiência vida afora, o que inclui a minha experiência com a literatura, minhas leituras. Se um poema se mostra – como a Celina comenta, e eu concordo, sem dúvida – “erudito” é porque essa erudição faz parte de minha experiência de vida. Tudo, portanto, é “espontâneo”. O “esforço de elaboração” , como você diz, existe, sim, mas é necessidade de cada artista diante do material de que dispõe na busca de uma forma que considera adequada a uma determinada percepção do mundo. Leonardo Da Vinci referia-se ao ostinato rigore, o rigor obstinado. E este é o meu lado apolíneo. Diga-se de passagem, que Apolo, em minha produção, me instiga a fazer aquilo a que Mallarmé se referiu tendo em vista a retórica vazia, e que eu, aqui, vejo como o meu Dioniso: torço-lhe o pescoço. Já em relação a Eros, sou mais complacente, haja vista minha produção, em grande parte inédita. Essa fascinação por Eros – sem dúvida o regente das artes – foi que me conduziu à realização do próximo livro a ser publicado, os Poemas Místicos. A “Ode a Anadiômena”, ela mesma, conduz as duas forças de modo equânime. Talvez esta ode seja, ao lado dos “Quatro Sonetos Cardinais” e alguns outros, a minha vitória contra as forças do caos. A singeleza de alguns de meus poemas, por outro lado, corresponde a meu sentimento em relação a aspectos da vida, surgem espontaneamente, como os considerados eruditos. Não vou em busca da poesia. Ela me busca e me rapta. Consinto. Às vezes, até, resisto, e ela insiste. O que nunca se modificou, em minha produção, foi o cuidado com a forma. Você gostaria de ir para rua ou para uma reunião social sem camisa, despenteado e descalço, por exemplo? Claro que não. São os rituais da apresentação, os códigos e leis, que, no caso da poesia, atravessaram milênios. Mesmo quando você os transgride é a eles que você está se reportando. Não se faz poesia – ou qualquer expressão artística – com boas idéias ou temas atraentes. Tais idéias e temas só se tornam artísticos – se se tornarem, pois o artista nunca sabe disto de antemão – se encontram a forma que os faça ter vida própria no mundo paralelo ao mundo real, que é o mundo artístico. Tais mundos interseccionam-se, sempre, em relação de reciprocidade.


3. No poema “Fábula”, o “eu lírico” define-se como um lobo – um lobo que excedeu o mundo e o perdeu; um lobo tocado pela solidão, pelo repúdio (não diz do quê) e por uma ânsia de águas virgens. Esta é também uma boa definição da escritora e da mulher Conceição Paranhos? Ela é um lobo em pele de cordeiro ou, ao contrário, um cordeiro em pele de lobo?

Não há pele. Maria da Conceição Paranhos é cordeiro e é lobo, como todos nós, humanos. E somos muitos outros animais. Veja os bestiários, que desde sempre atraíram a atenção dos escritores. Recentemente me referi a este aspecto do ser humano – ao comentar o livro Estranhuras, de Fernando da Rocha Peres. Quanto a meu “lobo”, ele define a voracidade pela vida ela mesma, a gula de fruir a maravilha que é estar viva entre meus semelhantes, irmãos. A solidão, o repúdio são as conseqüências diretas da celebração da vida sem disfarces, a vida como Nietzsche a entendeu – em sua força atordoante, que ultrapassa essa realidade brutal para a qual somos empurrados pelas armas mortíferas do sistema capitalista. E o “repúdio” não é “do quê”, é “de quem”: de quem compactua com a farsa de um existir depauperado dos mais altos valores do ser-se humano – inclusive os valores do “cordeiro”, valores de uma paz e de uma harmonia que emanam da alegria amorosa de estar vivo e deleitar-se com a doce graminha do cotidiano vivido com inteireza e beleza. Porque a verdade, meu amigo, esta pertence a Deus, já que só temos rápidos flashes dela em nosso caminhar por essas bandas terrenas. Um dos meios de divisar a face dessa verdade é a beleza.


4. Em “Insônia”, um dos seus poemas que mais gosto, você fala das perdas, das “[...] sobras de um dia já perdido”, e faz um apelo ao “subúrbio encantado da memória” para que lhe traga de volta um amor. Seria inconveniente perguntar sobre que perdas marcaram e impulsionam sua sensibilidade de poeta?

Perdas... Tudo é viver. O que fica no “subúrbio encantado da memória”, isto sim, é um tesouro para sempre. Esse poema, “Insônia”, foi feito quando eu era bem jovem. Já sentia, desde então, a realidade cruel da perda. Perda do quê? Talvez do próprio instante que, inelutavelmente, passa. Se há um impulso revertido em favor de minha poesia será sempre um movimento vital, contra as forças de Tânatos. Se o que sobra é entendido como o que excede, não há perdas. O excesso de dor também é lucro nesse sentido.


5. Você arriscaria uma definição pessoal da poesia? Lembrando a evocação do “subúrbio encantado da memória”, citada acima, pode-se dizer que fazer poesia é uma forma de não esquecer?

Sim, poesia é lembrar-se, sem dúvida, ou esquecer para lembrar, como queria Drummond. O instante que passa, sobretudo no poema lírico, é captado pelo poeta, é transposto para matéria verbal, e assim se eterniza, evitando a queda no esquecimento. Mas há algumas definições que me dizem como a poesia pode ser: “poesia é linguagem de linguagem”, de (se não me engano) Roman Jakobson; outra é a de Baudelaire: “poesia é linguagem carregada de sentido”. Fazer poesia – arte, de modo geral – quer dizer não tanto dar forma a um conteúdo espiritual como, antes, formar uma matéria, dar uma configuração a um complexo de palavras, sons, cores, pedras. Isto significa reconhecer que a obra de arte é, antes de tudo, um objeto sensível, físico e material, e que fazer arte quer dizer, antes de qualquer outra coisa, produzir um objeto que exista como coisa entre coisas, exteriorizado numa realidade sonora e visível.
Penso, eu mesma, que uma das definições de poesia poderia ser: “poesia é pensar e sentir a linguagem com o idioma nativo”. Os conteúdos pré-lingüísticos, os dados da percepção poética são acolhidos pela língua-mãe, experiência visceral na infância, que todos vivenciamos, a da infância e de sua trajetória rumo à aquisição de linguagem.


6. Nesses trinta e poucos anos de poesia, que diferenças mais marcantes existem, não somente na poeta, mas também na leitora de 1970 e na de 2004? Suas referências literárias e espirituais continuam as mesmas?

Aguçaram-se meus instrumentos de percepção talvez. . No Antigo Testamento, lê-se no Livro dos Provérbios que “conhecimento sem sabedoria é loucura”. Talvez eu tenha chegado um pouco mais perto da sabedoria e tenha percebido que o conhecimento desinformado da experiência da vida ela mesma – o lado estéril da erudição, digamos assim – não vale a pena. A “leitora de 1970”, como você diz, esta, era voraz como o lobo de que falamos antes; a de agora fica mais para o lado do cordeiro. E o cordeiro continua a fruir a doce graminha do cotidiano. Minhas referências, algumas permanecem as mesmas, outras fui incorporando ao meu paideuma tempo afora. Sempre li muito, inicialmente da biblioteca de meu pai, muito rica e diversificada. Meu pai sempre foi um homem de muita leitura, e autodidata, de excelente gosto literário. Depois, pelo fato de ser plurilíngüe, tive acesso a algumas obras fundamentais em minha vida. Pelo fato de ter feito Doutorado em Literatura Comparada, fora do Brasil, fui me aproximando de algumas leituras fundamentais para mim, obras literárias, quero dizer. Mas autores como Horácio, Shakespeare, Camões, Fernando Pessoa e Jorge de Lima nunca estarão ausentes de minha memória e leitura.


7. Que balanço você faz da sua geração literária? Quais foram, até agora, as maiores perdas? E os maiores achados?

Pertenço a uma geração de extraordinário poder combativo, crítico e criador. É uma geração de produção esfuziante. Embora mais próxima, em idade, à década de 70, comecei a publicar muito cedo, e a geração 60 me seqüestrou. Aliás, seqüestro consentido, pois meus valores se identificam com os desta década. Trata-se de uma época de luta e de resistências política e intelectual sem precedentes no século XX. As perdas de maior vulto foram realmente as mortes e as torturas inomináveis, vergonhosas para uma nação. Nossos sonhos pareceram acabar. John Lennon chegou a dizê-lo. Mas a luta estudantil, o movimento operário, toda a experiência vivida por nossa geração criou os fundamentos para a retomada da democracia e das liberdades no Brasil. Nossa luta foi fundamental para andarmos rumo a uma democracia, e os nossos jovens encontraram um país melhor. Nós não nos calamos nunca. Apenas abaixamos por algum tempo nosso tom de voz, digamos assim, para sobrevivermos e podermos dizer que “o sonho não acabou” – e este é o nosso maior trunfo.
Em relação às características estéticas de minha geração, vejo-as, efetivamente, como o início de uma nova geração literária no Brasil. Há uma forte inquietação espiritual, a procura de uma estética renovadora e redentora, uma tendência a metaforizar tanto o eterno como o trivial. A renovação da poesia ocorre no que Owen Barfield denomina a sua “dicção”[1] : a poesia assume o épico sem renunciar ao lírico, embora também haja a tendência a um impulso narrativo, no qual o eu-lírico interfere na primeira pessoa da enunciação. Há, inclusive, uma nova maneira de fazer poesia, que vai suscitar o surgimento de outras tendências que farão parte do melting pot de diversas vertentes literárias, inclusive no debruçamento sobre o próprio fazer poético e o seu questionamento – que originou o metapoema, os manifestos poéticos, anunciando uma nova estética. Nada havia de estático então, pois os escritores aprenderam que a história da literatura está imbricada à história dos povos e das nações, particularmente à história e à história literária de sua própria nação. Mudam-se os tempos, mudam-se os costumes, inclusive os poéticos. Ocorreram, então, diversas estéticas de vanguarda, tanto na literatura quanto nas outras artes, inclusive na Bahia (mais especificamente em Salvador), com dominantes temáticas voltadas para o social, sem, no entanto, desistir do veio lírico, vastamente cultivado. Alguns de nós, por não estarmos aliados a nenhum programa estabelecido – trabalhamos no que viria a se constituir uma das dominantes da geração, a saber, a invenção formal sobre seu próprio fazer, singular, sem pagar tributo a nenhuma “escola”, mas tomando conhecimento do que foi feito antes, marcadamente no Brasil, e do que pode ser feito a partir daquele momento. T.S. Eliot dizia que nenhum escritor tem significado pleno sozinho; creio que essa reflexão é particularmente verdadeira para a Geração 60.


8. A Academia de Letras é um bom lugar para um escritor? Digo bom no sentido de ser um lugar de criatividade, mobilização, intercâmbio, motivação e incentivo cultural. Qual o seu conceito a respeito dessa instituição, principalmente aqui na Bahia?

As academias de letras deveriam ser um espaço aprazível e profícuo para o escritor, sem dúvida. Mas, infelizmente, acabam por ser arredias e, mesmo, hostis aos escritores – dadas as concessões de ordem política que se vão fazendo em suas histórias, bem como a insistência em preservar alguns rituais anacrônicos – embora eu ache serem os rituais indispensáveis às instituições de modo geral. A nossa academia não é exceção: o que parece é que lá não existem (em oposição ao seu passado) mais vagas disponíveis para criadores – em prosa ou em poesia – a despeito de acadêmicos de valor que ali se encontram. No entanto, não se configura como uma academia “de letras” em sentido restrito. Nossa academia pode até ter algumas das características que você evoca como desejáveis, mas não é, certamente, um lugar de criatividade. Além da tolíssima vaidade de ser acadêmico. O fato é que reúne pessoas de várias áreas do conhecimento e ação: ciências, jornalismo, política, administração, judiciário, clero, promotores de cultura, etc., além de alguns poetas e escritores em ficção e poesia, que são minoria, no entanto. Não sei muito bem onde andam as “letras” por ali.


9. Como a condição de professora universitária influenciou na sua condição de poeta e ficcionista? Você concorda com a ênfase dada, nos últimos anos, aos Estudos Culturais e às questões de "gênero e sexualidade", ou acha, como Harold Bloom, que isto faz parte da presunção de grupos fechados, afeitos a um "discurso artificial, cheio de chavões, vocabulário profissional acessível apenas aos iniciados"?

Como professora, minha experiência foi largamente enriquecida pela convivência com meus alunos, principal e soberanamente foi isto, e continua a ser assim em minha vida. Há a mágica de você estar colaborando para o estudante perceber o fenômeno literário em sua beleza e magnitude. E o que eles devolvem, sempre, é a grande razão de minha função como professora. Quanto aos Estudos Culturais, nada tenho contra, mas este é um dos modos de abordar a cultura. Entre nós, tornou-se, nas últimas décadas do século passado, como que uma seita de iniciados, que passaram a encarar as outras abordagens como ultrapassadas. Concordo com o Bloom, embora com a ressalva de que os Estudos Culturais, no seu melhor, trouxeram uma relevante contribuição às culturas-alvo. O jargão, sim, este é detestável, insuportável, sempre, porém não é “privilégio” dos Estudos Culturais. Cada vertente teórica se implanta com uma terminologia específica que, no entanto, se torna tediosa no seu epigonismo.
Em relação à literatura, no entanto, lidar com o texto literário, com o texto poético, iluminá-lo com a crítica que assim pode ser chamada deveria ser a grande tarefa das faculdades de Letras. E as vitórias neste trabalho é o que mais deslumbra os estudantes e os seus mestres.


10. Apesar de ter publicado 11 livros, entre poesia, ficção e ensaio, e do reconhecimento da crítica, você tem ainda um grande número de trabalhos inéditos. Fale desses trabalhos e do que podemos esperar futuramente da poeta, ficcionista e ensaísta Conceição Paranhos.

É verdade, tenho muitos inéditos. Tudo indica que em 2004 alguns irão a público. Vou me esforçar para isto – o que, para mim, não é fácil, pois não freqüento vida literária e não disponho de meios para chegar a editoras famosas – o que todo escritor almeja.
O que tenho pronto: Poemas Místicos, Coita de Amor, Estudos de Geometria Espacial, Poemas da Rosa, Poemas da Puberdade – todos de poesia. Os primeiros são místicos como o título indica; será, provavelmente, o primeiro a ser publicado. Os dois seguintes são de poemas líricos e lírico-eróticos. No terceiro, todos os poemas se voltam para a temática da rosa, em vários aspectos e possibilidades, e o último são poemas muito precoces, escritos da primeira para a segunda adolescência – até os 21 anos. Embora eu me considere predominantemente poeta, já publiquei livro de contos e há um outro livro volumoso pronto, de contos também, O Frasco de Máximo Augusto, composto de narrativas relativamente longas e uma noveleta, talvez, “Um Coração Singelo”, que estabelece um diálogo com o magnífico conto longo de Gustave Flaubert, Un Cœur Simple, cuja personagem central é a Felicité; a minha personagem é a Maria dos Prazeres. Finalmente, um livro volumoso de teoria e crítica, Os Trabalhos de Hércules na Oficina de Orfeu: este livro trata dos diferentes modos de aproximação do poeta à realidade efetiva ou à experiência empírica. Tenho, além disso, dois romances inconclusos – e talvez assim permaneçam: Os Escombros da Cidade e Meu Pé de Pau-Brasil. Digo que talvez assim permaneçam, porque perdi a motivação para continuá-los. São narrativas longas, que demandam muita palavra. E cada vez mais desconfio da palavra nesta sociedade em que nos foi dado viver testemunhando a impossibilidade de sobrevivência de vasta margem da população. Verdade é que temos de falar pelos que têm sua voz emudecida. Mas isto se resolve com poucas palavras, mesmo para evitar leis que não se cumprem e decretos que nada resolvem: é de ação que precisamos.
Para finalizar, peço permissão para transcrever, abaixo, dois poemas de Poemas da Rosa – coincidentemente sonetos, mas o livro contém poemas de formas as mais variadas.
 

ROSA BRANCA


Fugiu a pomba do país das nuvens
sonho ou miragem da estadia humana -
é aquela rosa lívida e mimosa,
Branca de Neve, parecendo morta.

Em barca de cristal se vai, contida,
denso aroma e fulgor ali se movem
para o momento incerto da descida,
ao derramar-se o aroma da corola.

E mais se encerra a rosa em seu retiro
frágil, tão frágil, parecendo morta –
e a sua essência aérea e luminosa

queda divina em oração, transida,
grácil, tão grácil, parecendo viva,
e o vento empurra o carrilhão das horas.



ROSA VIOLADA

A minha dor não mora em minha casa,
mas num jardim de séculos correndo
em seu tropel mordaz. O tempo abrasa,
e o engenho dessa hora vai sofrendo.

Nas avenidas largas da cidade
os carros atravessam a linha torta
– cavaleiros em motos, sem idade
vieram me abordar à minha porta.

Um levou-me o relógio, outro o anel,
o meu cordão de ouro se partiu,
e o quarto bandoleiro me sorriu,

ao ter o meu olhar dentro do seu.
Sacou da cinta uma arma enrubescida,
beijou-a e deu-me a rosa e a minha vida.
 


[1] Adotando a definição de Coleridge – “as melhores palavras na melhor ordem”. As palavras são selecionadas e organizadas de tal maneira que seu sentido excita a imaginação estética. Barfield (em Poetic Diction) fala de sua própria experiência de leitor. Ele percebe que o sentido conduzido pela “dicção poética” engendra uma mudança do estado de consciência habitual, permitindo ao leitor um tipo de experiência sob uma luz “nova e estranha” Essa mudança radical da imaginação estética assinala a passagem do plano da consciência imediata para outros planos.numa espécie de expansão da consciência pelo qual o ser humano experimenta o mundo e a arte.

 



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