Maria
da Conceição Paranhos
REMEMORARI
¡O lámparas de fuego,
en cuyos resplandores
las profundas cabernas del sentido
que estava obscuro y ciego
con estraños primores calor y luz dan junto a su querido!
San Juan de la Cruz.
Da rua vinham vozes e segredos,
as aulas matutinas, mas o medo –
as grades e essas ruas, deslumbrando,
a visão de vitrines – quê comprar?
Passam freiras no pátio dos canteiros
(os da infância, tão bons nos seus sossegos,
mas, estes, de formosos e esmerados,
confrangem a alma, tão desacordada).
As mãos cheias de terra, já me lembro
daquele cheiro denso e do vapor
das horas tênues no fragor do tempo,
ah, se me lembro, e quanto é o pensamento
da terra, terra, terra – tu es pó,
e ao pó reverterás em dia a vir,
tão próximo, a pulsar nesta carótida –
e estes ventos lunares, ventanias,
as mortes antevistas nas gravuras
nas paredes da casa, nas fissuras
do tempo consumido, ah, ainda ontem
olhávamos os rostos das pessoas!
Sem despedidas partiam a mirar-nos
perenes, altas, mãos de tochas frias,
e das ruas revinham vozes fartas:
manhã a pino, ouviam-se cantigas.
A morte assim não se assemelha à outra,
na Paixão vislumbrada, luz de fogo,
porque o Filho do Homem abriu a porta,
a porta estreita e a dor por nos salvar.
Soluçam e gemem no verão de tons
flavos no amanhecer de resplendores
e o tempo trota tonto em seu tropel
de sibilos e sustos, seus ginetes.
Visitando os filósofos, tão cedo,
ingressando nos templos, a buscar
os nexos em suas rimas, rumas, remas
de sons provocativos, solfejar.
Os ouvidos se apuram, e o verbo ausente,
dos dicionários. Uns mínimos verbetes
permitiriam o humano soletrar
e sempre mais e mais, sempre cantar
aos ouvidos cerrados dos incrédulos,
a tudo o que se ouvisse e se quisesse
em folha de papel, essa hora branca
(soluça essa memória, agora estanca).
Ouviu-se um som fulgente, e ledos versos
que se escreviam e iam, sem parar,
beleza movediça – levantando
dilatados espaços – nas procelas.
Desejo de partir, entrar na esfera
de um mapa-múndi ileso. Os oceanos
plenos de água mortal, gelo e punhal
atravessando o ser que freme e geme.
Em momentos assim, por que poesia?
Rumor aceso, sempre, recorrente –
esta lâmpada, em fogo, alumiando
as profundas cavernas do sentido.
Anima mea, e esta voz em surtos
desde a primeira ação – tirar do caos
um outro mundo, e deste, mais e mais,
descortinando vidas, tão ocultas,
com o poder que me destes de plasmar
com estes barros e lamas esquecidos,
escondidos, mas fartos no pulsar
de uma artéria recôndita. Ó vida,
que estás a nos chamar, doces esquinas
de onde se vê o coração sangrando
de um ser imaculado, a nos pedir
para darmos à luz coros de anjos.
A limpeza dos dias, os mais puros,
qualquer que seja a força dessas luas,
que podem nos lançar em noite obscura,
pedra e limo na boca de recursos
muito cedo entrevistos, mas atados,
a esta escassez humana. Ah, que vôos
privados de umas asas, em alar-se
para abrigo ou canção, um nosso porto,
que estava obscuro e cego o meu farol.
E os estranhos primores descerraram-se,
no calor e na luz dos meus amores
a face rutilante como sol.
Mas existem as âncoras suicidas
e mergulho pesado para o orco,
ralentando o fadário de uma vida
sem tempo e espaço – é hibernal tesouro.
Ó barca, vida desmemoriada,
ilhas do Amor, além do navegar!
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