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Maria da Conceição Paranhos



SANCTUS


¡Ay, qué larga es esta vida!
¡Qué duros estos destierros,
esta cárcel, estos hierros
en que el alma está metida!
Sólo esperar la salida
me causa dolor tan fiero,
que muero porque no muero.

“Vivo sin vivir en mí”.
Santa Tereza D’Ávila.




É o planger desse som e o breviário,
odor de incenso percorrendo o ar:
joelhos macerados no calvário
e a visão dos mistérios no olhar.

Que segredo se esconde entre essas linhas?
Falo? Quem ouve? Para quem falar?
Ó Deus, se escutais, por que tão longe?
Por que estais ocluso nesse altar?

Procuro Vossa face na cidade,
Vossa voz nesse canto (ouço cantores),
mas outros, que não eu, têm santidade,
isentos de pecados – e eu, Senhor?

E nós? De que matéria somos feitos,
nosso corpo é errado, esse errador?
O que fazer do corpo, então, Senhor,
tão dúbio na vertigem e desespero?

Mas os santos, tão puros, que segredos?
Pureza é que convive com Amor –
então, Senhor, um corpo para quê,
casa de tanto erro e tanta dor?

O amor, rito de vestes e metais,
entrevisto ao sopé desses altares,
na bela e poderosa liturgia,
nos proíbe do Santo e nos exila!

Nosso espírito se abre à voz dos monges,
e nós, neste desterro, neste adro.
O canto que sabemos vem do corpo,
mas, esta alma de carne e dor e sangue?

E tangem os sinos e sinos só tangem,
e ver, então, que nada nos desdoura,
pois tudo é Cristo em corpo, amen, amen,
é o Corpo de Jesus em nosso corpo.

(Anima Christi, sanctifica me.
Corpus Christi, salva me.
Sanguis Christi, inebria me.
Aqua lateris Christi, lava me.
Passio Christi, conforta me..1)

...que estamos a naufragar,
que soçobra nossa nave
nas profundezas do mar!

Todos silentes, todos tão ordeiros,
dentro das igrejas, e esta capela
e esta roupagem então? É esta, a que tenho,
joelhos tenros postados no lenho,

expiar. Mas o quê? Que mal fizemos?
Nascemos já marcados para o nada:
nada sabemos, nada consentimos –
ébrios de Deus, mas prestes a pecar.

Sangue de Cristo, vinde e revertei-nos
a Vós. Sem Vossa mão, não há salvar-se
do pecado insensato – não saber
das dores da Paixão de Vosso amar.

Sanctus, Sanctus, Sanctus,
Dominus Deus Sabaoth.
Pleni sunt caeli et terra gloria tua.
Hosanna in excelsis.
Benedictus qui venit in nomine Domini.
Hosanna in excelsis.2



1 Alma de Cristo, santificai-nos./Corpo de Cristo, salvai-nos./Sangue de Cristo, inebriai-nos./Água do lado de Cristo, lavai-nos./Paixão de Cristo, fortalecei-nos.
2 Santo, santo, santo, / é o Senhor, Deus dos exércitos!/ O céu e a terra estão cheios da Tua glória./ Hosana nas alturas/. Bendito o que vem em nome do Senhor./ Hosana nas alturas.
 

 
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Rubens Sanzio de Turbino, Transfiguração, detalhe

 

 

 

 

 

Maria da Conceição Paranhos


 

REMEMORARI


¡O lámparas de fuego,
en cuyos resplandores
las profundas cabernas del sentido
que estava obscuro y ciego
con estraños primores calor y luz dan junto a su querido!
San Juan de la Cruz.



Da rua vinham vozes e segredos,
as aulas matutinas, mas o medo –
as grades e essas ruas, deslumbrando,
a visão de vitrines – quê comprar?

Passam freiras no pátio dos canteiros
(os da infância, tão bons nos seus sossegos,
mas, estes, de formosos e esmerados,
confrangem a alma, tão desacordada).

As mãos cheias de terra, já me lembro
daquele cheiro denso e do vapor
das horas tênues no fragor do tempo,
ah, se me lembro, e quanto é o pensamento

da terra, terra, terra – tu es pó,
e ao pó reverterás em dia a vir,
tão próximo, a pulsar nesta carótida –
e estes ventos lunares, ventanias,

as mortes antevistas nas gravuras
nas paredes da casa, nas fissuras
do tempo consumido, ah, ainda ontem
olhávamos os rostos das pessoas!

Sem despedidas partiam a mirar-nos
perenes, altas, mãos de tochas frias,
e das ruas revinham vozes fartas:
manhã a pino, ouviam-se cantigas.

A morte assim não se assemelha à outra,
na Paixão vislumbrada, luz de fogo,
porque o Filho do Homem abriu a porta,
a porta estreita e a dor por nos salvar.

Soluçam e gemem no verão de tons
flavos no amanhecer de resplendores
e o tempo trota tonto em seu tropel
de sibilos e sustos, seus ginetes.

Visitando os filósofos, tão cedo,
ingressando nos templos, a buscar
os nexos em suas rimas, rumas, remas
de sons provocativos, solfejar.

Os ouvidos se apuram, e o verbo ausente,
dos dicionários. Uns mínimos verbetes
permitiriam o humano soletrar
e sempre mais e mais, sempre cantar

aos ouvidos cerrados dos incrédulos,
a tudo o que se ouvisse e se quisesse
em folha de papel, essa hora branca
(soluça essa memória, agora estanca).

Ouviu-se um som fulgente, e ledos versos
que se escreviam e iam, sem parar,
beleza movediça – levantando
dilatados espaços – nas procelas.

Desejo de partir, entrar na esfera
de um mapa-múndi ileso. Os oceanos
plenos de água mortal, gelo e punhal
atravessando o ser que freme e geme.

Em momentos assim, por que poesia?
Rumor aceso, sempre, recorrente –
esta lâmpada, em fogo, alumiando
as profundas cavernas do sentido.

Anima mea, e esta voz em surtos
desde a primeira ação – tirar do caos
um outro mundo, e deste, mais e mais,
descortinando vidas, tão ocultas,

com o poder que me destes de plasmar
com estes barros e lamas esquecidos,
escondidos, mas fartos no pulsar
de uma artéria recôndita. Ó vida,

que estás a nos chamar, doces esquinas
de onde se vê o coração sangrando
de um ser imaculado, a nos pedir
para darmos à luz coros de anjos.

A limpeza dos dias, os mais puros,
qualquer que seja a força dessas luas,
que podem nos lançar em noite obscura,
pedra e limo na boca de recursos

muito cedo entrevistos, mas atados,
a esta escassez humana. Ah, que vôos
privados de umas asas, em alar-se
para abrigo ou canção, um nosso porto,

que estava obscuro e cego o meu farol.
E os estranhos primores descerraram-se,
no calor e na luz dos meus amores
a face rutilante como sol.

Mas existem as âncoras suicidas
e mergulho pesado para o orco,
ralentando o fadário de uma vida
sem tempo e espaço – é hibernal tesouro.

Ó barca, vida desmemoriada,
ilhas do Amor, além do navegar!


 

 

 

Ticiano, Magdalena

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Weydson Barros Leal

 

 

 

09/10/2006