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Manuel da Costa Pinto


 


O rito da forma


(in Folha Ilustrada, 22 de abril de 2006)


 

"É preciso que venha de longe/ do vento mais antigo/ ou da morte/ é preciso que venha impreciso/ inesperado como a rosa/ ou como o riso/ o poema inecessário."

"No funil da noite seu vórtice de estrelas/ despenhamos para o alto, extasiados./ Olhos tornam-se estrelas no mesmo brilho/ estelares os corpos que se afastam/ trapezistas agora/ ou a terra para sempre os perdeu/ no negro mosaico da noite constelada?"

Os versos reproduzidos nos parágrafos acima são partes de poemas pertencentes a dois livros de Dora Ferreira da Silva - poeta que morreu em São Paulo no último dia 6, aos 87 anos.

Os primeiros foram extraídos de "Nascimento do Poema", do seu livro de estréia, "Andanças", publicado em 1970 e também incluído em "Poesia Reunida" (Topbooks, 1999). Os outros são do poema "Mosaicos da Noite", de uma de suas últimas obras, "Cartografia do Imaginário" (T. A. Queiroz, 2003).

Não é difícil notar semelhanças entre eles: ambos celebram algo que vem de longe ("do vento mais antigo ou da morte") ou que pode transportar para além de si (esse o sentido do "êxtase"); e, em ambos, temos um tom ao mesmo tempo solene e visionário, oscilando entre mito e sonho (que é um tipo de mitologia interior).

O remate desses dois poemas aponta para imagens opostas, porém complementares: ao final do primeiro (que narra a gênese da inspiração), o poema "desperta para o rito da forma lúcida"; no segundo (que descreve o processo onírico), a queda para o alto equivale ao "desvario de subir espaços sem usar escada".

Essa brevíssima leitura serve para mostrar a coesão da obra da escritora -que se torna mais eloqüente se considerarmos que "Andanças" reúne poemas escritos a partir de 1948. Ou seja, ao longo de quase 60 anos, Dora Ferreira da Silva (1918-2006) se manteve fiel a suas obsessões, como se houvesse um magma estável, uma substância fundamental que garantisse a unidade dessa dialética entre fundo e forma, essência e aparência.

Autora de "Retratos da Origem" (1988) e "Poemas da Estrangeira" (1995), Dora Ferreira da Silva foi também tradutora das "Elegias de Duíno", de Rilke, da poesia de Hölderlin e Saint-John Perse, de místicos como San Juan de la Cruz e Angelus Silesius e do pensador suíço Carl Gustav Jung (criador de uma teoria psicológica permeada pela filosofia da religião, com conceitos como arquétipo e inconsciente coletivo).

Essas referências "antimodernas" (pois calcadas numa imagem mitologizante do mundo), somadas à matéria intemporal da poesia de Dora, de certo modo explicam o relativo desconhecimento de sua obra.

Em geral, a crítica detecta nela uma vocação "demiúrgica", uma concepção do poeta como parteiro de novos mundos. Num dos ensaios publicados em "Poesia Reunida", por exemplo, José Paulo Paes vê em Dora um caso de hierofania, de "ato da manifestação do sagrado". E essa tendência ao transcendente, por sua vez, sintoniza-a com alguns valores estéticos da Geração de 45 -que acabou sendo uma vertente recalcada na memória do modernismo.

De fato, Dora compartilha com autores como Péricles Eugênio da Silva Ramos ou Bueno de Rivera a retórica elevada, o tom elegíaco e as referências eruditas ou espiritualistas. Ao contrário deles, porém, não se nota em sua poesia uma preocupação com o artesanato do verso (metrificação, rima) ou em perseguir as formas fixadas pela tradição.

Melhor dizendo, a atenção para procedimentos técnicos fica num segundo plano em relação ao cerne dessa poesia, que está na "visão sacramental da realidade", como observa Luiz Alberto Machado Cabral no prefácio de seu último livro, "Hídrias" (editora Odysseus, 2004).

Ao lado de "Talhamar" (1982), essa obra traz o traço mais marcante de Dora: a tentativa de conectar cada vivência pessoal a um imaginário impregnado por seus estudos da cultura grega. Estudos que transformaram a casa de Dora e de seu marido, o filósofo Vicente Ferreira da Silva (morto em 1963), num espaço para tertúlias e que, ao lado das revistas literárias por ela editadas ("Diálogo", "Cavalo Azul"), marcaram diversas gerações de poetas "panteístas" -constituindo um veio subterrâneo da poesia brasileira.

 

 



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24/04/2006