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Maria Helena Nery Garcez





A poesia de Camilo Pessanha por um leitor brasileiro




 

A Clepsidra, de Camilo Pessanha (1867-1926), poeta simbolista português, foi objeto de uma sensível leitura no último livro de ensaios de Paulo Franchetti, Nostalgia, Exílio e Melancolia, recentemente publicado pela Editora da Universidade de São Paulo com apoio da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Se tais credenciais seriam suficientes para nos dizer da qualidade da obra, apenas a experiência de sua leitura nos diz da excepcional acuidade analítica a que foram submetidos alguns dos mais belos poemas de Pessanha e da língua portuguesa.

O simbolismo não é uma poética de grande público; não suscita entusiasmos fáceis. Exige um leitor atento às sutilezas do texto, perceptivo às suas menores inflexões, que não se deixe vencer, logo à primeira, por elipses, pelo modo simbólico levado ao extremo, pela concentração que lhe é habitual.

Exige um leitor paciente, reflexivo, intimista, habituado aos tons menores, às surdinas da sensibilidade - e esse tipo de leitor não é freqüente.

Simbolistas, de modo geral, são pouco lidos e conhecidos; some-se a isso que Camilo Pessanha pertence à literatura portuguesa e que esta já não é tão estudada e lida entre nós, e teremos uma idéia aproximada de o quanto esse sutil poeta é desconhecido por aqui.

Foi, portanto, um acontecimento importante para nosso mundo das letras, quer sob o ponto de vista da divulgação dessa obra, quer de um mergulho mais profundo em seu conhecimento, o encontro entre o excepcional poeta que é Camilo Pessanha e o não menos excepcional leitor que é o professor, pesquisador da Unicamp e poeta Paulo Franchetti.

Não sei, porém, se o termo encontro é o mais apropriado para dizer desse longo convívio que, desde há décadas, mantêm Pessanha e seu leitor brasileiro, pois sei muito bem que Franchetti não quis navegar nos meandros da Clepsidra antes de submeter a um exigente crivo os textos das edições disponíveis. Lembro-me de nossas primeiras conversas sobre seu projeto de doutoramento. Desejava fazê-lo sobre a poesia de Camilo Pessanha, mas via um grave óbice para sua realização: as edições que até então existiam - era por volta de 1989 - eram inseguras.

O poeta não tinha tomado a iniciativa da publicação de seus poemas e os admiradores que levaram a cabo tão delicada e difícil tarefa não dispunham de um aparato científico para fazê-lo. Eram amadores em dois sentidos (e nisso não vai censura ao trabalho que fizeram; sem eles essa belíssima poesia provavelmente não teria chegado até nós): amavam a poesia de Pessanha e não podiam conformar-se de que não viesse a público, mas não eram profissionais do trabalho editorial.

Acrescente-se às dificuldades inerentes a esse ofício que Pessanha era displicente no guardar e organizar o que escrevia. Modificava continuamente seus textos, mesmo depois de os ter publicado em jornais e revistas, muitas vezes não guardava cópia de poemas enviados a amigos, escrevia-os ora em papéis avulsos ora em cartas, ora num Caderno pessoal. De modo que, comparando as quatro edições da Clepsidra (1920, 1945, 1956 e 1969), havia tantas diferenças entre elas que, para construir um trabalho interpretativo científico, era preciso joeirar. Foi o que, então, Franchetti se propôs a fazer e o fez com paciência oriental.

Crítica genética
 

Da laboriosa pesquisa que realizou em bibliotecas de Portugal e no Arquivo Histórico de Macau, surgiu sua edição da Clepsydra, de 1994, defendida como tese na USP, publicada pela Editora da Unicamp e, no ano seguinte, acrescida de alguns documentos inéditos, publicada em Portugal pela Editora Relógio d'Água.

Só então Paulo Franchetti, de posse da problemática suscitada pelos textos de Camilo Pessanha e, tanto quanto possível, resolvida segundo critérios da crítica genética, julgou que podia registrar por escrito suas reflexões de muitos anos. E, ao termos frente a nós Nostalgia, Exílio e Melancolia, verificamos que, com as suas leituras, sucedeu algo análogo à depuração a que submeteu as edições da Clepsidra: após tão prolongada decantação, vieram à tona maduras, extremamente coesas e, de tal forma impregnadas do convívio, que camilianas... "transforma-se o amador na cousa amada..." como Camões já o havia dito.

O longo trato com os poemas, as repetidas leituras, as pesquisas, confrontos e raciocínios na hora de julgar entre as diferentes versões qual, de fato, corresponderia à vontade do autor, tudo isso constituiu um silencioso e laborioso exercício de identificação, que fez de Paulo Franchetti o leitor privilegiado da poesia de Pessanha. Não é verdade que há algo de chinês na paciência desse leitor tão detalhista, tão sutil em suas leituras minimalistas? Paulo Franchetti, não sendo de ascendência oriental, sabe ler e traduzir o japonês. É um excelente criador de haikais. E parece-me agora que, com essa imersão no complexo mundo sino-lusitano de Camilo Pessanha, Paulo Franchetti alargou o seu próprio âmbito de interesses de modo a incorporar além da herança lusitana, que nos é quase conatural, muito da tradição chinesa pelo viés Camilo Pessanha. O próprio método de abordagem em close reading deixa ver isso.

Importa também salientar que suas leituras aliam uma extraordinária atividade raciocinante à sensibilidade frente ao texto. Não são, de forma alguma, leituras emotivas, sentimentais, impressionistas. São leituras que conseguem o difícil feito de unirem o sensível ao cerebral. Pertencendo à linhagem dos que podem dizer: "o que em mim sente 'stá pensando ...", Franchetti raciocina o tempo todo, com grande lucidez. Rastreia caminhos e descaminhos dos textos sobre os quais se debruça, atento às mínimas e complexas inflexões de sentido, como, por exemplo, quando, ao analisar o poema "Imagens que passais pela retina", num momento luminoso, distingue que "seu sentido se constrói pelo choque das várias hipóteses parciais de decifração e pela incapacidade de conseguirmos um ponto de vista único no qual elas se resolvam completamente. É o que, muitas vezes, chamamos de sugestão, ou seja, tudo aquilo que, sem ser a linha central de significado (e mesmo aquilo que não se ajusta com ela), se faz presente num texto: fios de significação que se vão tecendo à margem do desenho principal ou dominante, e que por isso mesmo não são passíveis de demonstração, restando à análise compreensiva revelá-los por meio da tentativa de reprodução de uma experiência complexa de leitura.

É claro que, no momento da leitura, essas hipóteses interpretativas acorrem em simultaneidade, deixando pequenos traços de sentido que se iluminam e harmonizam de um modo que a análise não consegue reproduzir (...)" Paulo Franchetti, unindo sensibilidade e raciocínio, levantou esses fios de significação que, na poesia de Pessanha, se vão tecendo à margem do desenho principal e, com eles, teceu as filigranas de suas leituras num belíssimo trabalho de ourivesaria, minimalista, chinês. E embora nós, leitores e admiradores da poesia de Pessanha, possamos ter leituras e interpretações diferentes para alguns poemas, possamos discordar de Franchetti quando diz recusar, em seus ensaios, qualquer leitura totalizante (parece difícil encontrar leitura mais totalizante!), devemos saudar este acontecimento extremamente auspicioso: Camilo Pessanha encontrou, enfim, seu grande leitor! No Brasil!


NOSTALGIA, EXÍLIO E MELANCOLIA: LEITURAS DE CAMILO PESSANHA, Paulo Franchetti. Edusp, 168 págs., R$ 17,00.

Maria Helena Nery Garcez é professora de Literatura da USP
 



Paulo Franchetti, 2003
Leia a obra de Paulo Franchetti