Marigê Quirino Marchini
O
tempo individual e coletivo em
“Catedral do Silêncio”
Em Catedral do Silêncio, o
pretérito, presente e futuro, em camadas poéticas que se
interpenetram, transformam o tempo finito em ressoar infinito. Os
poemas movem-se com fluidez entre o tempo real e o irreal, os
sonhos, as lembranças, e o vir-a-ser vislumbrado: a matéria poética
está pronta para edificar esta Catedral.
“Percorro o Bosque Sagrado do
Olimpo, / Parthenon, Palácio Cnosso, Pórtico de Cariátides, /
Acrópole de Lindos, Templo de Apolo, / Templo de Possêidon, o Templo
de Zeus, / e assumo formas de Touro, cisne, anfitrião, / chuva de
ouro para me aproximar de ti / como fizera Zeus com Europa, Leda,
Dannae e Alcmene.”
Há uma justaposição também entre o
tempo individual e o coletivo. A poeta elege o amor como seu tema
maior, mas compara essa vivência de quase êxtase às
situações-limite, tristes ou trágicas, que concomitantemente
acontecem a outras pessoas, e dessa constatação a autora extrai a
tensão poética, lançando os personagens de seus poemas ao paroxismo
do absurdo existencial. “As luzes se acendem. / No salão, a música
do cravo. / Dançamos as sonatas da guerra. / As me-sas estão quentes
/ com o calor de nossas mãos. / nas ruas da Reviera / mendigos
morrem de frio, fome e sede. / Nossa mesa está farta de escargot e
croissants. / Dançamos mais uma val-sa, / saboreamos café, bolo de
nozes, licor de pistache / e sorvete de passas ao rum. / Os soldados
morrem nos pântanos / Sem mesas, cardápios, talheres e licores. /
Eles morrem feridos a bala, de frio, / fome e sede pela pátria-mãe/
(...)”
A poeta está atenta ao “outro”.
Não só ao “outro” objeto do desejo amoroso, mas aos “outros”
olvidados, esquecidos, desprezados dentro de um contexto social.
Nesse sentido podemos falar que sua poesia tem em mui-tos “insights”
uma clara vocação humanista. “Tu’alma nas Muralhas da China, / teu
corpo no Muro das Lamentações, / teu sangue nos Templos sagrados. /
Teu coração, beleza de Vênus. / Estamos em plena tempestade de
amor”. (...) e “os mendigos morrem servindo as ruas livres.”
Várias vezes a poeta questiona,
interpreta e teoriza o absurdo existencial, justificando o “estar no
mundo” como um fazer poético, que também é prece, também é
participação. “Estou tão só dentre de mim / que até as estrelas
emudeceram”. (...) “Um milhão de pessoas ao meu redor / não vejo um
sorriso sequer”. (...)
A natureza, tão presente no livro
anterior de Rosani (De Corpo e Verde), em uma forma pessoal e
acentuadamente ecológica, neste último se corporifica ainda mais; a
poetisa como uma divindade mitológica veste-se do verde das
montanhas e vales em sua viagem poética, feita de lugares e ambiente
os mais diversos. Compartilham os seus sentidos tanto a altivez de
Itatiaia quanto a monocromia de uma paisagem egípcia, ou lugares e
figuras que falam de suas raízes árabes. (...) “chuva de seiva
banha-me / com o frescor do orvalho. / meu corpo, cáscara-sagrada, /
árvore que germina e fecunda. / Minh’alma, lótus-sagrado-egito”
(...). // “Por ti, transformar-me-ia em supersônico / voaria os céus
de nossas crenças e fés, / planaria sobre Madri e Damasco / para
descobrirmos nossas raízes, / o nosso sangue mouro.”
Mas nada é um estranhamento, antes
um reconhecimento de locais e situações, como se a poetisa, em
migrações poéticas sucessivas tivesse vivenciado todas as paisagens
da Ter-ra. E é dessa viagem ao imaginário que Rosani irá trazer para
a sua Catedral interior, ramos floridos e tapetes de ervas.
Interioriza toda a beleza terrestre em variados tons e a leva para
as arcadas, para os vitrais, para os pórticos de sua Catedral.
“Almejo minha fertilidade / dos tempos das cavernas, vilarejos, /
castelos, fazendas de engenho / “ (...) “Sou uma camponesa colhendo
/ tâmaras, pistache, / misk e snôbar. / Não sinto frio, teu corpo me
aquece. / Somos sementes florescendo nos campos.”
E o silêncio ai, então, são as mil
vozes que Rosani recolheu da Nature-za participante, que
sintonizadas fazem uma pausa, ou um vibrante “staccatto” para a
meditação e a aura da poesia. “Fertilidade: Caminho entre acácias,
papiros / ébanos orientais, ciprestes e alfarrobeiras. / Admiro a
beleza dos falcões, águias, cotovias e poupas. / Percorro o leito do
Nilo / montada em meu camelo alado / em busca de fertilidade, / não
é época das cheias. / Minha taça está vazia, preciso receber para
dar, / sem trocas não semeio tâmaras/”.
Catedral do Silêncio, Rosani Abou
Adal, João Scortecci Editora,
São Paulo, SP, dezembro 96.
Leia
obra poética de Rosani Abou Adal
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